João Rasteiro, poeta e ensaísta, nasceu no Ameal, em Coimbra, em 1965. Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra, vive e trabalha na cidade do Rio Mondego. Autor de vinte livros, entre os quais A Rose is a Rose is a Rose et Coetera (Edições Sem Nome, 2017), Levedura (Edições Sem Nome, 2019) e Governadores de Orvalho (Edições Húmus, 2020), obteve diversos prémios literários, nomeadamente a “Segnalazione di Merito” Premio Publio Virgilio Marone, em 2003 (Itália), e o Prémio Literário Manuel António Pina, em 2010 (Portugal). Foi um dos 20 finalistas do Prémio Portugal Telecom de Literatura em 2012 (hoje Prémio Oceanos), na vertente de Poesia. Integra, também, diversas antologias, revistas e obras colectivas, em Portugal e no estrangeiro, sendo presença assídua em festivais literários nacionais e internacionais.
Actualmente, integra a Direcção do P.E.N. Clube Português e o Conselho Editorial das Revistas DEVIR – Revista Ibero-americana de Cultura, Oficina de Poesia e Folhas – Letras & Outros ofícios. Convidámo-lo a responder a nove perguntas.
1 – O mundo de hoje, assoberbado pela tecnologia e pelo ruído, ainda tem lugar para o ritmo da literatura? Porquê?
Felizmente que sim. Atrevo-me a dizer que não só tem lugar, como tal ritmo é absolutamente fundamental, mesmo que possa ocorrer eventualmente numa escala menor do que no passado. O importante é que tenha lugar, independentemente do espaço abarcado. Quando, e espero que isso nunca venha a ocorrer, a literatura e a arte em geral deixarem de penetrar um ser humano, então a humanidade, em suas virtudes e erros, em sua probidade e equívoco, ou seja, em sua “alma”, perecerá! Salamah Mussa afirmou que “não é a beleza, mas sim a humanidade o objetivo da literatura” e Fernando Pessoa que “A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta“. Daí acreditar que a literatura será sempre um corpo vivo de humanidade, pois ela antecipa sempre a vida, não a transcreve, molda-a aos seus intentos, como diria Oscar Wilde.
2 – Quanto ao lugar do escritor no espaço público, como é encarado por ti?
Essa é uma questão bastante pertinente. A verdade é que um escritor é, acima de tudo um indivíduo no gozo pleno dos seus direitos e deveres civis e políticos de um estado livre ou, aparentemente, livre. E isso traz, ou deveria trazer, uma enorme responsabilidade, pois um verso, um poema, um livro são sempre um ato político, sempre um ato de intervenção. Eu, não o pugnando de forma programática, procuro por vezes que os meus textos espelhem as minhas convicções e valores sobre o mundo que me rodeia. Por vezes, fazendo-o de forma indirecta nos textos ou tentando criar algo que possa eventualmente perturbar o leitor, de forma a que este se sinta perturbado e o leve a reagir, concordando ele ou não com o que o texto lhe oferece. Para além da beleza estética, um escritor ou artista, e tenho pena de não o conseguir mais vezes, seja por incapacidade literária ou até por “momentâneas covardias”, deveria ser sobretudo um “provocador de ideias”. Como maravilhosamente afirmou Delacroix, “O mais belo triunfo do escritor é fazer pensar os que podem pensar”.
A verdade é que um escritor é, acima de tudo um indivíduo no gozo pleno dos seus direitos e deveres civis e políticos de um estado livre ou, aparentemente, livre. E isso traz, ou deveria trazer, uma enorme responsabilidade, pois um verso, um poema, um livro são sempre um ato político, sempre um ato de intervenção.
3 – Como foi o teu processo de despertar para a criação literária?
Curiosamente, eu venho de uma família de um estrato social humilde do ponto de vista económico-social onde, não faltando o calor humano e afectuoso, não só não havia qualquer livro, como os meus pais, a quem tudo devo, não tinham praticamente nenhuma valência escolar, pois a sua vida desde novos foi trabalhar e sobreviver com a comodidade e dignidade possíveis. No entanto, mal entrei na escola primária, uma biblioteca muito especial, um paraíso, como diria Borges, que todos os meses visitava as aldeias dos campos do Mondego, e falo das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, produziu em mim um encantamento, um mundo de magia e sonhos abismais. Hoje atrevo-me a afirmar, mesmo não tendo tido durante muitos anos essa consciência, que foi aí, nesse precoce encantamento e enamoramento pela leitura, que terei começado a despertar para o que designas de “despertar para a criação literária”. Aos dezoito anos já tinha lido quase todos os clássicos, nomeadamente de língua inglesa, francesa e russa. E é então, por volta dos vinte anos, que começo a escrever as primeiras “remessas literárias de gaveta”, nomeadamente pequenos e medíocres contos de mistério e alguns frágeis poemas, muito mergulhados em vagas e fragâncias clássicas. Por fim, quando entro na Universidade, já em idade adulta e como trabalhador estudante, e “encontro” a Oficina de Poesia coordenada pela Professora Graça Capinha, já nada poderia travar esta torrente e sortilégio, cada vez mais sopro de vida, embora também cada vez mais sopro aterrador, dos olhos e braços da escrita em seus misteriosos e mágicos labirintos. Em sua, por vezes, ilusão de divindade perante a fatal morte do verbo, pois inevitavelmente breve será Inverno.
Mal entrei na escola primária, uma biblioteca muito especial, um paraíso, como diria Borges, que todos os meses visitava as aldeias dos campos do Mondego, e falo das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, produziu em mim um encantamento, um mundo de magia e sonhos abismais.
4 – Fala-nos um pouco das tuas motivações criativas. O que te impele?
Penso que tal como para muitos criadores, a minha motivação é sobretudo e cada vez mais vital um sopro de vida, é mesmo uma espécie de “fala e respiração orgânica” perante a impotência de um Deus, ou face à sua ausência e indiferença para comigo. Eu já não consigo estar sem escrever, mesmo se o meu corpo reaja organicamente pela necessidade da escrita de forma dolorosa e difícil até por mim de entender. Eu posso estar um mês sem escrever um verso ou um parágrafo sem qualquer dilema, mas quase sempre quando escrevo mais do que um poema, me vejo obrigado a, durante dias sem parar, sob uma perturbação brutal, que passa mesmo por dor mental e física, a escrever quase alucinadamente, até que “algo” me diga para parar! Naturalmente que quase sempre, embora por vezes não o descortine inicialmente, reajo a motivações que me circundam, sejam elas lâminas que irrompem de dentro de mim, sejam lâminas que os contextos, mais aproximados ou distantes que me rodeiam, e que inexoravelmente perfuram a minha invisível crosta de corpo frágil e finito. O meu trabalho, desenvolvido na Casa da Escrita, espaço cultural do Município de Coimbra, antiga habitação do poeta João José Cochofel, e onde o contacto com escritores e artistas em geral é frequente, por vezes é motivação para eu escrever, mas também sucede ser motivação frequente para não o fazer!
5 – Com que outros artistas – desde escritores, pintoras, músicos, cineastas, etc. – procuras dialogar nas tuas obras, quais são as tuas grandes referências?
Como já referi, a leitura desde cedo foi o meu deslumbramento. Eu continuo a pensar, e intrigam-me deveras os escritores que não o afirmam, de que para se ser escritor, independentemente do género, tem de se ser essencialmente um grande leitor! Daí que eu leia bastante, sobretudo poesia, e nomeadamente a poesia portuguesa desde os finais dos anos 60 até à actualidade. Claro que Jorge Sena, Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny, António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, Al Berto ou António Franco Alexandre me acompanham ciclicamente, contudo, acima de todos e de forma avassaladora e sufocante, irrompeu e infiltrou-se de forma arrasadora no meu corpo Herberto Helder. Continua vivo em mim como no primeiro momento em que o “vislumbrei”, com tudo o que de positivo e negativo possa ter na minha poesia, na minha “fala” poética! Também a poesia grega, desde a clássica à contemporânea, como Yannis Ritsos ou Konstantinos Kavafis, alguma poesia de língua inglesa, nomeadamente T. S. Eliot, o mais aproximado de Herberto nesses anzóis que se cravam ferozes na minha carne. Poesia tradicional japonesa, nomeadamente Matsuo Bashō, e muita da poesia do século XX espanhola e italiana, etc. Naturalmente que a ficção, menos do que eu gostaria, continua presente. Desde os clássicos até a nomes como Milan Kundera, Yasunari Kawabata, Virgínia Woolf, Umberto Eco, Javier Marías, José Saramago ou Mário Cláudio. Nos últimos tempos, o que não acontecia muito nos primeiros anos, tenho dialogado com a música, pintura ou escultura, nomeadamente com a Maria João Pires ou Bob Dylan, Paula Rego, Bosch ou João Cutileiro. Mas, e porque a resposta se alongou demasiado, na última década tenho empreendido, umas vezes consciente, outras inconsciente, um diálogo imenso, e que penso se perpetuará, com a Bíblia, nomeadamente com o Evangelho de João e o Libro de Job. E, embora de forma menos frequente, o diálogo com obras e com seres humanos, artistas e não artistas com quem me cruzo, alguns desmedidos verbos de erudição, conhecimento, dádiva e permanente espanto, é algo para mim maravilhoso e vital, seja como escritor, seja sobretudo como ser humano.
Claro que Jorge Sena, Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny, António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, Al Berto ou António Franco Alexandre me acompanham ciclicamente, contudo, acima de todos e de forma avassaladora e sufocante, irrompeu e infiltrou-se de forma arrasadora no meu corpo Herberto Helder.
6 – O teu último livro é Governadores de Orvalho, pela Edições Húmus. O que gostarias de partilhar sobre ele connosco?
Eu, e penso que grande parte dos escritores e artistas, não gosto muito de falar sobre a “intenção” de um livro. Exceptuando o meu livro de 2017, “A Rose is a Rose is a Rose et Coetera”, que me tinha a mim e à minha mãe como personagens principais sob a facínora língua do Alzheimer, e aí eu tinha mesmo a intenção primária de realçar o tema, normalmente eu espero que o leitor possa eventualmente avistar a ideia primordial do texto, encontrando e seguindo caminhos diferentes do autor ou narrador, ou até mostrar a estes, o que eles próprios, no meio do vendaval, nem sequer tinham descortinado! De qualquer forma, e até porque se trata do meu primeiro livro de contos, um género talvez um pouco mais “transparente” sobre o coração do texto, sempre posso dizer que “Governadores de Orvalho” é um conjunto de contos em que irrompem espaços temporais mais ou menos balizados, mas onde a ficção, muito pincelada por um imaginário fantástico, estranho e temido quase de forma religiosa, da minha e das aldeias circundantes dos campos do Mondego dos anos 60 e 70, dificilmente se destrinça da realidade. E aproveitando, o autor e/ou narrador para “salpicar” os textos com alguns factos e nomes de pessoas dessa “aldeia dos amieiros”, muitos deles até de gerações recentes, apenas com o intuito de uma evocação e/ou homenagem. Pois, como afirma impotente o autor ou narrador ainda hoje presos a esse mítico lugar dos amieiros, no conto “O misterioso canteiro de flores”: “Todos desapareceremos como se o abismo do mundo fosse o lugar onde o verbo arde por inteiro”.
7 – Como escritor que escreve em português, consideras importante manter o diálogo com autores de outros países e regiões de língua portuguesa? Porquê?
Se é verdade que Fernando Pessoa afirmou: “Minha pátria é a língua portuguesa”, também afirmou: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.” De qualquer forma, esta é uma pergunta que, à partida, terá sempre a mesma resposta: Sim! Penso que, embora talvez por questões políticas, nomeadamente no que concerne à ideia plenamente enraizada de que o poder continua a estar enlaçado na língua inglesa, esse diálogo é não só necessário, como absolutamente inevitável. E eu que, para além do fantástico e proveitoso diálogo, literário e afectivo, ao longo dos anos deste meu “percurso literário” com um infindável número de escritores/as e artistas dos espaços e/ou países de língua portuguesa, sou ainda licenciado precisamente em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra, afirmo convictamente que este recíproco aprofundar das relações literárias e afectivas é extremamente importante para nos continuarmos a redescobrir sob esse “manto”, tantas vezes mal tratado e incompreendido, que é a “portuguesia”, pois prefiro utilizar esse termo em vez do termo “lusofonia”. Até tendo em conta que a língua portuguesa é actualmente já uma das cinco mais faladas do mundo, esse diálogo entre os escritores e artistas, e sobretudo dos seres humanos do espaço de e em língua portuguesa, é sem dúvida um pilar de futuro. Como disse Arnold Wesker: “A língua… é uma ponte que te permite atravessar com segurança de um lugar para outro.”
8 – O que conheces da cultura galega, tens alguma referência que gostasses de destacar?
Conhecendo e reconhecendo a cultura galega como uma cultura de uma riqueza e importância extraordinária, começo por afirmar algo triste e impensável: nunca estive na Galiza! A cultura galega irrompe dos primórdios do(s) território(s) peninsulares, desses míticos kallaikoi. Claro que durante o império romano a cultura romana ganha uma dimensão extraordinária, que se consolida em enorme notoriedade, quer seja devido ao início das peregrinações a Santiago de Compostela, quer seja nos campos linguístico e literário com a chamada idade de ouro da Idade Média, com a extraordinária criação lírica de autores como Martin Codax ou Afonso X, O Sábio. Mais tarde, com o surgimento dessa mítica Universidade de Santiago de Compostela, e já próximo do século XX com o surgimento de nomes como Eduardo Pondal ou a maravilhosa Rosalía de Castro, a cultura galega ganhou e mostrou definitivamente uma projeção universal. Como já se percebeu, gosto muito de Rosalía de Castro, mas também a sua música e os seus cantores me acompanham regularmente. Nos dois últimos anos ainda não percebi como o CD “Federico García Lorca Poeta en Galicía” do fantástico Amancio Prada não se estragou de tanto uso! Mas os Milladoiro ou a Uxía são também acompanhantes habituais. Tenho também mantido contactos e diálogos com poetas e escritores galegos actuais, como Yolanda Castaño, Miro Villar ou Montserrat Villar Gonzalez. Inclusive, já traduzi para uma revista brasileira poesia do Miro, sobretudo porque eram poemas imbuídos de uma linguagem bastante regionalista sobre a pesca e o mar. Também tenho publicado em algumas revistas galegas, como Dorna, Elipse ou Palavra Comum.
Nos dois últimos anos ainda não percebi como o CD “Federico García Lorca Poeta en Galicía” do fantástico Amancio Prada não se estragou de tanto uso! Mas os Milladoiro ou a Uxía são também acompanhantes habituais. Tenho também mantido contactos e diálogos com poetas e escritores galegos actuais, como Yolanda Castaño, Miro Villar ou Montserrat Villar Gonzalez.
9 – Por fim, como encaras a relação entre a Galiza e Portugal e como pensas que poderia evoluir?
Sendo talvez exagerado, pelo menos na forma, o termo “Portugaliza”, que foi como no passado alguns escritores e intelectuais portugueses exacerbaram esse cordão umbilical entre Portugal e Galiza, assente na presumível pretensão e convicção de uma unidade cultural, linguística, histórica e geográfica entre os dois povos, a verdade é que, de certa forma, grande parte dos portugueses e galegos ainda hoje sentem o outro como sua casa, como seu corpo! Então, e como alguém já afirmou, no coração da raia o corpo respira o mesmo ar, alimenta-se do mesmo chão, chora com o mesmo verbo! Muitos consideram o português e o galego línguas irmãs, derivadas do galaico-português e alguns vão ainda mais longe, considerando-as apenas variantes ou dialetos de uma mesma língua. Curiosamente até acho, mas aí talvez por uma questão de afirmação política pelos galegos em relação a Espanha, que eles ainda realçam mais esta irmandade. Penso que a maior parte dos portugueses desconhece o facto de que todos os partidos, da esquerda à direita, exigiram a Madrid que se passasse a ver televisão portuguesa na Galiza e que o ensino do português nas escolas galegas se efectivasse.
Penso que a maior parte dos portugueses desconhece o facto de que todos os partidos, da esquerda à direita, exigiram a Madrid que se passasse a ver televisão portuguesa na Galiza e que o ensino do português nas escolas galegas se efectivasse.
Por isso, deveriam ser redobrados os esforços e convicções dos dois lados, talvez hoje um pouco mais do lado português, para que esta relação umbilical seja mesmo irmanada de comunhão de futuro. Claro que, mais do que aguardar dos políticos a construção dessas pontes de diálogo e permuta, confraternização e parceria que existem e sempre existiram de forma natural, fomentadas sobretudo pelas pessoas, nomeadamente as guardiãs da raia, caber-nos-á a nós, poetas e escritores, pensadores, artistas em geral, transpor alguns dos obstáculos, os físicos e os da dormência ou esquecimento, e fortalecer as pontes que existem desde os primórdios de um coração uno e singular no chão da Ibéria. É importantíssimo que entendêssemos todos que as relações galaico-portuguesas são absolutamente fundamentais para valorizarmos os territórios de ambos os lados de um corpo espantosamente uno. Tão uno, se inclusive pensarmos que até essa tão estranha, melancólica e mítica “saudade” é igualmente galega! Quando se proclama essa indizível particularidade do português, convém igualmente lembrar ou expor que também os galegos se afadigam a debater a “saudade” como sentimento muito seu, espalhando a sua mítica indizibilidade. E saboreando as palavras de Rosalía em seu lamento – “Adeus, rios; adeus, fontes; adeus, regatos pequenos; adeus, vista dos meus olhos; não sei quando nos veremos” – penso comigo: Galiza, vista daqui, não sei mesmo quando nos veremos!