Por José Tubio
O debate de investidura que conduziu à nomeação de M. Rajoy como presidente do governo espanhol dou para ver um capítulo mais de “democracia representativa” e estatolatria.
No discurso do candidado a proclamada “transparência” ficou contradita pela vaguidade e generalidade programática apresentada. Observa-se, porém, a vontade de renegociar o “Estado de bem-estar”, reduzível à palavra de ordem: mais por menos. Trabalhar mais e durante mais tempo, produzir mais, pagar mais impostos, em troca de menos serviços e menos dinheiro na aposentadoria. Mais imposição do castelhano (parcialmente disfarçada de bilinguismo), mais jacobinismo, mais dinheiro público para setores privados (com destaque para o financeiro), mais exenções fiscais para os maiores volumes de tributação empresarial, e ainda mais controlo estatal da agricultura e da pesca, são outros pontos do programa “popular”.
O discurso, carregado de construção nacional não isenta de nostalgia (“La España que hemos dejado atrás no va a volver”), faz ênfase da necessidade de reduzir o déficit das contas públicas, concretizando-o no objectivo de diminuir até 16.500 milhões de euros a diferença entre ingressos e gastos em 2012. As formas de contenção do gasto público não se determinam além de se indicar que se vai proceder a redimensionar o setor público e à congelação da oferta de emprego público, com exceção do âmbito dos corpos e forças de segurança do Estado. Apela-se ao desenho e mantenimento de uma política esterior neo-expansionista acordada com o PSOE, partido político com o que se pactuará a política de defesa. O reconhecimento do trabalho das Forças Armadas sem nenhuma outra referência à situação do gasto do Ministerio de Defensa é conforme com a blindagem de crítica alcançada pelo estamento. Aquele reconhecimento não foi acompanhado de nenhuma previsão de redução do desorbitado orçamento e de controlo da política de gasto do Ministerio; embarcado num expansionismo de dívida principado na etapa do PP, continuado e potenciado na do PSOE e mantido agora, conforme à política de monopartido PPSOE.
Convém colocar os dados disponíveis[*] que dão conta do volume de endividamento e gasto do Ministerio. Nas últimas legislaturas Defensa contratou sistemas armamentísticos por valor de 24.000 milhões de euros. Após o desvío sobre o valor contratual inicial e a falta de previsão do custo de manutenção, Defensa afirma que o custo total vai chegar aos 36.800 milhões de euros (mais do 3% do PIB espanhol), a maior parte ainda sem pagar. Parte do dinheiro nem sequer foi directamente reflectido no orçamento deste Ministerio, através da ocurrente fórmula de créditos assinados com o Ministerio de Industria (até um total de 15.000 milhões de euros) a juro zero. Os mandos de Defensa reconhecem ademais a “notable situación de debilidad de la propia Administración en la gestión de los programas [de armamento], que propicia que los contratistas adquieran un excesivo poder“; e que “No se ejerce un control riguroso, siendo habituales los retrasos y los sobrecostes, sin que esa dinámica implique exigencia de responsabilidad y depuración de la misma“.
Em agosto de 2011 Defensa levava pagos 5.000 milhões e teve de renegociar a dívida (na altura de 26.000 milhões de euros) que não podia acometer, correspondente ao seguinte material bélico: 4 fragatas F-100 (2.000 M-milhões de euros), 68 aviões de combate (9.254 M), 235 carros de combate (2.390 M), 27 aviões de transporte (4.442 M), 100 equipos de comunicações UME (59 M), 190 blindados (786 M), 1 buque estratégico (374 M), 24 helicópteros de ataque Tigre (1.517 M), 767 mísseis ar-ar (285 M), 4 submarinos S-80 (2.135 M), 70 equipos de artilharia remolcada (196 M), 43 mísseis ar-terra Taurus (60 M), 1 fragata F-105 (822 M), 4 buques de ação BAM (389 M), 1 buque de provisões (228 M), 260 mísseis contra carros (364 M), 45 helicóteros de transporte (1.260 M), 4 helicóteros de transporte Cougar (76 M), 2 aviões contra-incêndios (40 M).
Este ano 2011 o Ministerio de Industria habilitou um crédito de 1.000 milhões ao de Defensa para enfrentar o pagamento da anualidade aos contratantes. Conforme ao plano de endividamento, até 2015 as quotas são “pequenas”, para se incrementarem depois. Face à incapacidade de pagamento, Defensa começou a renegociação da dívida alongando o prazo de 2025 para 2030, mas o Ministerio já anunciou que isso não resolve o problema, propondo que se crie um novo ente público que se encarregue de gerir essa dívida.
O nível de gasto e dotação bélica ainda podiam ter alcançado outras quotas. Após a dotação das fragatas F-100 com “tecnologia” (sistema de combate Aegis) das mais avançadas na OTAN, Defensa ia também adquirir do Pentágono mísseis Tomahawk no marco da prórroga da utilização das bases militares em 2009, mas a crise fez com que finalmente se anulara a encomenda que viria a converter o Reino de Espanha no terceiro Estado do planeta em dispor destes mísseis, junto do que os inventou e do Reino Unido.
A dificuldade de obter financiamento exterior para o deficit público (que inclui uma parte importante correspondente à defesa), fez com que o Estado espanhol comprara e esteja (auto-)comprando dívida própria através do Fondo de Reserva das aposentadurias. O que, simplificando os complexos mecanismos utilizados, significa que hoje as classes assalariadas do Estado estão “investindo” o dinheiro das suas aposentadurias no finaciamento duma política expansiva de gasto militar sem precedentes.
No arco de partidos das Cortes, pouco ou nada cabia esperar do PPSOE. Ora, é clamoroso o silêncio dos partidos catalães, entre outros, e das auto-proclamadas esquerdas, em particular do Bloco, para o caso galego. As esquerdas, estatolátricas a mais não dar, submidas na chorandela pela redução do gasto público associada a diminução do “Estado de bem-estar”, são incapazes tão sequer de discernir sobre a questão e colocá-la no debate parlamentar. É legítimo denunciar que não se reduza o nível de serviços estatais pago com impostos (em aumento) e que de jeito mais notável vai afectar às classes assalariadas? Com certeza. Mas sendo conscientes de se tratar de uma demanda circunstancial, não de uma solução, e de que se está, ao mesmo tempo, a legitimar o sistema de dependência das pessoas do aparato estatal, no canto da sua soberania. Além disto, essa demanda tem de vir sempre acompanhada da de redução das demais verbas públicas que, com mais nitidez, não fazem parte do “Estado de bem-estar”, sem se poder omitir algumas fundamentais, se o pacifismo alegado por alguns partidos não queda submetido à sua estatolatria. Não se esqueça que o Ministerio de Hacienda (e os seus precursores) existe pela necessidade de dotar de recursos ao de Defensa -da Guerra, na sua denominação tradicional e disfemística-, criado muitas décadas antes dos que hoje servem de álibi para legitimar o ente estatal, como Sanidad ou Educación, com a propaganda do bem-estarismo.
Essa estatolatria das auto-proclamadas esquerdas é a prova de que não se concebe nada fora do Estado (e por extensão, contra o Estado, encerrando o círculo de Mussolini), dada a consideração que têm sobre a incapacidade das pessoas de viverem sem ele, até o ponto de não se mostrar nem a vontade de propor modelos alternativos de sociedade, senão sempre a mesma trécola contrária: expandir a hipertrofia estatal até que todos e cada um dos espaços da esfera humana sejas preenchidos através dum serviço “público”, em verdade, apenas estatal. A causa última é a coincidência com o resto de partidos (e com o que o Estado procura das pessoas) na essência do sistema: o produtivismo. Os máximos níveis de produção e consumo (e impostos, portanto, e gasto militar e políticas expansionistas, por conseguinte) trazer-nos-ão a felicidade plena (e obrigatória, sendo subministrada pelo Estado) às pessoas, concebidas como fator produtivo/consumista. Tal coincidência converte o sistema de partidos políticos no sistema de partido único, já que o exclusivo debate de fundo existente é o de decidir quanta parte da execução da programação vital do indivíduo (mão-de-obra) desenhada pelo Estado lhe corresponde levar para a frente ao capitalismo de Estado e quanta ao capitalismo privado.
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http://politica.elpais.com/politica/2011/08/12/actualidad/1313163003_049342.html