O projeto de criação de um memorial às vítimas da escravatura na cidade de Lisboa foi proclamado no passado dia 27 de novembro como um dos vencedores do orçamento participativo da câmara municipal. A proposta partiu da Djass-Associação de Afrodescendentes que visa assim “colocar Lisboa no mapa da história da escravatura”. A proposta do projeto agora aprovado não é um episódio isolado. O debate sobre a herança colonial, o racismo e a escravatura tem-se intensificado nos últimos meses no discurso público em Portugal. As declarações que o presidente da república fez na sua visita em abril do presente ano à antiga casa de escravos na ilha de Gorée, em frente a Dacar, que esteve sob domínio português antes de passar ao domínio holandês, de que Portugal tinha dado já um sinal de humanismo em tempos do marquês de Pombal, quando este aboliu (parcialmente) a escravatura em 1761 não passaram sem contestação na opinião pública. A reação apontou para a persistência do mito do português como “colonialismo suave” e deu sinal de que não são poucos os que querem trazer a público outras leituras sobre a expansão portuguesa. A realidade dos factos que alguns historiadores se apressuraram em relembrar é que as medidas do marquês de Pombal só proibiram a escravatura em território português, onde o mercado estava abastecido com a descendência dos escravos já radicados no território e não eram de esperar protestos dos traficantes, enquanto o tráfico continuou no resto do império. A abolição total da escravatura em todas as colónias só aconteceu em 1878, mais de cem anos depois, e, ainda mais, as condições de trabalho escravo, o trabalho forçado, sob o estatuto de contratado ou serviçal, continuaram em muitos territórios sob jurisdição portuguesa até à sua independência em 1974.
Fazer memória da escravatura só começou a interessar aos historiadores portugueses no século XIX, no contexto da pressão britânica sobre o estado português para a abolição do tráfico. Estes primeiros escritos tinham uma intenção apologética em favor de Portugal e tencionavam neutralizar o protagonismo dos portugueses no início do tráfico transatlântico com o argumento de que a escravatura já existia com anterioridade na Europa e o de que os portugueses já encontraram instituídas as redes de comércio de escravos a sul do Sarai. Este intuito de diluir ou mesmo ocultar esta história menos positiva para a imagem de Portugal continuou durante o salazarismo, com as diferentes versões do português como “colonizador brando”, incluída a do “lusotropicalismo” do brasileiro Gylberto Freire. Os estudos que começaram com a implementação do novo regime democrático após o 25 de abril foram motivados não só pela mudança do regime mas também pela necessidade de acompanhar a investigação que se estava a fazer sobre o tema em âmbitos académicos internacionais. Ainda assim, o volume de produção de conhecimento científico sobre a escravatura em Portugal continua a ser muito pequeno se comparado com o que se tem feito no Brasil e noutras metrópoles de impérios escravagistas.

Livros recentesii têm divulgado entre o público não especializado panoramas de conjunto sobre a história do tráfico. Vale a pena resumir alguns factos pouco conhecidos para o público galego. O avanço das caravelas portuguesas na costa africana sob o patrocínio do Infante D. Henrique marca a inauguração do tráfico de escravos no Atlântico. O monopólio dos traficantes portugueses durou 180 anos, entre 1444 e 1621, ano da fundação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Este comércio abriu o caminho para uma diferença radical na história da escravatura, o da racialização da condição de escravo. Na Antiguidade ou durante a Idade Média não havia qualquer associação direta entre etnia e escravatura, mas com este comércio “negro” passou a ser sinónimo de escravo na Europa e na América.
As colónias espanholas da América foram, junto com o Brasil, os maiores recetores deste tráfico. Cobriam assim a demanda de mão de obra para a economia de plantação (açúcar, mas também tabaco e café) e mais tarde para a mineração. Estima-se que uns doze milhões de africanos tenham sido vítimas do tráfico numas 36.000 viagens feitas durante algo mais de quatrocentos anos. Deles uns dois milhões terão morrido nos porões dos navios, tais eram as condições do transporteiii. A memória dos escravos e o seu comércio também tem estado ausente da formação histórica escolar fornecida pelo estado espanhol, apesar de ser basilar para entender a vida económica e social da América espanhola e estar ligada a factos tão importantes como a tardia independência de Cuba e as migrações de galegos à ilha ou ao facto de ser o tráfico, já no século XIX, a origem de algumas das grandes fortunas do estado. A escravidão só foi abolida na Espanha em 1886, dois anos antes que no Brasil, o último estado ocidental a abolir a escravatura.
Outros dados importantes para os que nos achegamos pela primeira vez a este tema são que na Lisboa do século XVI os escravos perfaziam a décima parte da população, a maior concentração de população africana na Europa do momento, que as ilhas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, desabitadas à chegada dos portugueses, foram habitadas como entreposto do tráfico, ou que quando Luanda passou a ser o centro do comércio no século XVII quase toda a população da cidade estava relacionada de alguma maneira com o tráfico. Tudo sob a cobertura do estado e os argumentos legitimadores da Igreja.
O primeiro desembarque de escravos africanos, aconteceu em Lagos, no Algarve, em agosto de 1444. No leilão dos 235 africanos trazidos nas caravelas portuguesas estava presente o Infante D. Henrique, que iria receber uma quinta parte do negócio de venda, vendo assim finalmente alguma recompensa aos seus esforços económicos na empresa das navegações. A cena do primeiro leilão de escravos africanos em solo europeu ficou registada com grande dramatismo por Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné. É um testemunho único, pois descrições assim só se encontrarão nos séculos seguintes nos relatos de viajantes que, de passagem por Lisboa, nalgum momento presenciaram leilões semelhantes ao de Lagos de 1444. Alguns historiadores dizem que a cena se tornou tão banal que, apesar da sua crueldade, só surpreendia aos visitantes.
Há um ano que foi musealizado o local em que segundo a tradição teve lugar essa primeira venda. O “Mercado de escravos. Núcleo rota da escravatura”, insere-se no projeto “Rota do escravo” da UNESCO. A ideia do núcleo de Lagos foi avivada quando em 2009, durante as obras de construção de um parque de estacionamento, foram descobertos 158 esqueletos que os arqueólogos identificaram como sendo de proveniência africana. Os corpos estavam dispostos de maneira que denotava que não tinham tido qualquer tipo de enterramento, que simplesmente tinham sido para lá atirados. O núcleo de Lagos é uma primeira amostra do muito que ainda há por fazer para marcar os lugares da memória africana em território português.
A consciência e o reconhecimento do sofrimento da secular história da escravatura e do trabalho forçado são necessárias para identificar as novas formas de escravidão, pois ainda que ela não exista legalmente existe de facto, afeta de maneira particular às mulheres e assenta em relações sociais e imaginários de inferiorização bem vivos. É preciso compreender como foi aceite e naturalizada esta hierarquia da humanidade em função do fenótipo e como passaram invisíveis tanta infâmia e violência sem haver quase vozes em contra nem alarme social. Conhecemos facilmente algumas maneiras de construir a inferiorização: a identificação do inferior com a pobreza e a carência, a assimilação com a natureza… É preciso identificar, nós sabemos, que todos estes discursos de inferiorização não existem para eles próprios, “dentro dos limites da história intelectual”, são sempre suporte de algum objetivo económico e um programa políticoiv.
Ainda, este conhecimento histórico alterou o meu entendimento do espaço abrangido pela língua portuguesa, a começar pela própria ideia que tinha de Portugal. Existe uma comunidade de referentes sociais e culturais entre a Galiza e Portugal cuja análise está cheia de tabus e preconceitos do tempo atual, não dos momentos em que foram gerados. Mas também é certo que o estado português não se entende sem estes muitos planos de relacionamento, o político, o social, o demográfico, o cultural, com o continente africano. Entendendo que a sociedade galega tem outros eixos gravitacionais para além da língua, ou parafraseando a Castelão, não sendo só galegos pelo idioma, mas também por uma tradição ideológica que contesta diversas formas de domínio, temos muito trabalho a fazer para encontrar o nosso lugar no espaço abrangido pela língua portuguesa. A construção da nossa inferiorização dentro do estado espanhol também não é só um debate intelectual e não sairemos dela só com elogios identitários. Como deixou escrito Viqueira há quase cem anos, “o galego é algo que se faz, que se cria, não algo feito”.
Notas:
i Jorge Fonseca, “A historiografia sobre os escravos em Portugal”, Cultura, Vol. 33 | 2014: https://cultura.revues.org/2422
ii Como os do historiador Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e traficantes no Império português. O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX, 2013, ou o mais recente Escravos em Portugal. Das origens ao século XIX, 2017. De ambos os livros tomei as referências históricas sobre a escravatura deste artigo. Já para a cidade de Lisboa o livro do historiador Jorge Fonseca, Escravos e senhores na Lisboa quinhentista, 2010, autor também de outras monografias e artigos sobre a presença de escravos em diferentes cidades e regiões de Portugal.
iii Estes e outros dados estão disponíveis na página http://www.slavevoyages.org/, base de dados mundial sobre o tráfico trasatlântico.
iv Essa é a tese central da completa monografia de Francisco Bethencourt, professor português no King’s College de Londres, publicada originalmente em inglês em 2013 e traduzida em 2015 para português com o título Racismos. Das cruzadas ao século XX.