Mari Fidalgo é vizinha de Compostela, ativista, psicóloga especializada em género e quem está detrás do projeto Biodança Cheia de Vida, um projeto de promoçom da saúde para o bom viver desenhado polo antropólogo Rolando Toro nos anos 60. Em relaçom com a língua, tem muitos registros; quanto à ortografia, escolhe escrever grafando em galego reintegrado.
Mari nasceu em Brasil, numha família galega migrante. Qual é a ligaçom entre a Galiza e o Brasil para ti?
Nasci em Salvador de Bahia no ano 76. Os meus avós maternos, junto com a minha mae e umha tia, sendo ainda muito pequenas, haviam partido da Canhiça no ano 1954 para viver com o meu bisavô, que levava toda a vida emigrado no Brasil. O meu pai era da mesma aldeia e emigrou de moço para trabalhar com um irmao. Ainda nom devia ter 20 anos quando chegou a Salvador. Ele e a minha mae conheceram-se na casa do meu bisavô materno, que em datas especiais promovia encontros, especialmente para aqueles moços que estavam longe da família em datas como o Natal.
De algum modo Galiza esteve sempre presente. Na relaçom com a família daqui, nos costumes, na fala. Os meus avós e o meu pai nunca deixaram de falar galego, só que era um galego com um sotaque diferente e algum léxico bahiano. As crianças da família pensávamos que falavam português errado. Porque Galiza estava e ao mesmo tempo nom estava. Nom como uma realidade nacional, cultural e identiária. A minha família nao era politizada, só muitos anos depois é que a minha mae achegou-se um pouco ao tecido sociopolítico galego. De pequena as referências a Espanha e “Galicia” (como chamavam) eram confusas. O mesmo pasava com a lingua. Nao tinha claridade de que lingua falavam.
Os meus avós e o meu pai nunca deixaram de falar galego, só que era um galego com um sotaque diferente e algum léxico bahiano. As crianças da família pensávamos que falavam português errado.
No ano 1999 consegui uma bolsa para um intercambio de um ano na USC. Naquela altura nom fui consciente de porque queria tanto viver essa experiência e porque escolhi vir para cá. Tardei anos em descobrir que precisava vir para cavar. Cavar profundo para entender quais eram as minhas raízes, de onde vinha. Para encher lacunas de cousas nom ditas, entender e entender-me. Tem que ver com a pertença cultural e linguística mais também com a classe. Cavando resgatei as origens camponesas da minha família, a forma de vida que tinham antes de emigrar e pude entender muitas coisas sobre a minha identidade.
Regressei a Salvador ao rematar o intercambio mas em fevereiro de 2002 estava cá de volta. Puxou-me um relacionamento e também o fato de que naquela altura estávamos em pleno apogeu das políticas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso, com o que isso repercutia nas condiçons de vida e possibilidades de futuro.
Como foi para ti o tránsito de Brasil para Galiza a nível linguístico?
Foi convulso porque estava carregado da minha história familiar e de lacunas, daquilo que desconhecia da realidade linguística, cultural e política deste território. Cheguei conhecendo e manejando o idioma espanhol, além do português. A minha parelha daquela falava galego, igual que a sua família, e animavam-me a falar na minha fala, ao meu jeito. Mais no contexto acadêmico (eu rematei a licenciatura aqui) ou para buscar emprego usava o espanhol. Daquela considerava que nom sabia falar nem escrever em galego e nem se me ocorria empregar o português, ainda que no contexto familiar e de amizades sim que o usava.
Com o tempo fui abraçando o galego e um dia me animei a falar, devia levar uns dous anos aqui. Começava a participar em espaços, nomeadamente no Foro da Inmigración, e desde ai foi medrando o contato com o tecido associativo de Compostela. Sentia-me mais estimulada a empregar o galego. Nessa altura começo a participar ativamente numa associaçom de pessoas latinoamericanas -a Casa Latinomericana en Galicia-, que foi muito importante para mim como escola sociopolítica e para a construçom de afetos, de alianças e do sentimento de latinoamericanidade. Na entidade participavam também pessoas galegas e galegofalantes com vínculos com Latinoamerica e também foram anos de aprender muito sobre a língua e sobre Galiza. Mais também foi maravilhoso impregnar-me da língua melodiosa das minhas compis de Colombia, Chile, Cuba, Bolivia, Argentina, Paraguai. Estou-lhes muito agradecida por toda a experiência e os saberes que adquiri nos anos que esteve viva a Casa Latinoamericana.
Quando comecei a empregar o galego falava e escrevia seguindo a nomativa ILGA-RAG, apesar de que nunca fiz um curso. Deve fazer uns 4 anos que passei a empregar o galego reintegrado de forma pública. Com as pessoas próximas sigo usando o baianês.
Houvo algumha cousa que che sorprendesse da situaçom sociolinguística ao chegares aqui?
O primeiro foi a diferença teritorial de uso do galego. O meu primeiro ano na Galiza foi em Vigo, ali escutava muito pouco galego. Porém em Compostela estava muito mais normalizado, principalmente no âmbito social. Também me chamou muita atençom o componente de gênero na socializaçom linguística das crianças: na aldeia dos meus pais e entre a família é frequente que as pessoas adultas galegofalantes mudarem para o espanhol ao falar com as criaturas e mais ainda com as meninas. É como se o espanhol estivesse no pack da feminilidade que as nenas devem aprender. Outra cousa que me chamou a atençom e o segue fazendo ainda hoje, é que muitas pessoas galegofalantes nativas (nom as neofalantes ou que estudaram galego na escola) ao me escutarem falando-lhes em galego mudem ao espanhol. Creio que identificam a minha fala como estrangeira e para falar com uma estrangeira nom se usa o galego. Entendo que deve-se a às condiçons políticas e linguísticas que de repressom que viveu essa geraçom.
Também me chamou muita atençom o componente de gênero na socializaçom linguística das crianças: na aldeia dos meus pais e entre a família é frequente que as pessoas adultas galegofalantes mudarem para o espanhol ao falar com as criaturas e mais ainda com as meninas. É como se o espanhol estivesse no pack da feminilidade que as nenas devem aprender.
Consideras-te reintegracionista?
Emprego a língua de forma estratégica, é um traço mais na minha identidade política, marcada pelo gênero, a vivência da migraçom, proceder dum lugar periférico, de uma ex-colônia. Também da dissidência à heteronorma. Tudo vai junto e faz com que a minha forma de fazer política, de incidir na realidade, seja desde posiçons de subalternidade.
Em linha com o anterior, uso o reintegrado de forma estratégica duns anos para cá. Considero que é umha forma mais coerente de posicionar-me sobre o conflito linguístico desde a minha identidade, desde o lugar que ocupo no mundo. Asumindo uma grafia que ressalta a condiçom de língua subalternizada que é o galego. Fazendo essa escolha quero comunicar que assumo umha posiçom política determinada em relaçom ao conflito linguístico, uma posiçom incômoda polo estigma que carrega empregar essa norma em determinados contextos.
Fazendo esta escolha quero comunicar que assumo umha posiçom política determinada em relaçom ao conflito linguístico, umha posiçom incômoda polo estigma que carrega esta norma em determinados contextos. Assim também trato de comunicar que desde o meu lugar, enquanto feminista anticolonial, o português também é problemático ao derivar da conquista, dominaçom e genocídio de povos originários.
Assim também trato de comunicar que desde o meu lugar, enquanto feminista anticolonial, o português também é problemático ao derivar da conquista, dominaçom e genocídio de povos originários.
Ademais, se es lida como brasileira, portanto nom galega ou europeia, para determinados setores sociais o uso do português entende-se como um fracasso da integraçom, como incapacidade de aprender uma lingua nativa. Cumpre nom esquecer que a questom linguística cruza-se com outras relaçons de poder baseadas na procedência ou racialidade, operando de forma combinada para seguir mantendo as hierarquias sociais, para seguir inferiorizando e limitando os direitos de quem se lê como forânea. Outras vezes tratam-me como turista e isso é algo que me incomoda muito. Em qualquer dos casos entendo que há uma negaçom da pertença plena à esta comunidade.
Quais forom as motivaçons para usares o reintegrado no teu projeto profissional?
Ademais do comentado na pergunta anterior, está a questom de escolher uma grafia que servisse de ponte entre Galiza e Portugal, dado que tenho vínculos e tenciono trabalhar ali. O galego reintegrado ajustava-se mais a esse objetivo que o ILG-RAG. Empregar o português foi algo que descartei dado que restringiria muito o público ao que poderia chegar aqui em Galiza.
Às minhas classes acodem pessoas com diferentes opçons linguísticas e considero que isso é maravilhoso porque em Biodanza trabalhamos a partir da diversidade. Quanto mais diverso é o grupo mais podemos medrar na capacidade de conviver e de entendermo-nos desde a afetividade. Gosto de que o alunado da Corunha, que usa maioritariamente o espanhol, tenha contato com o meu galego, que aprenda novas palavras e que se soltem a falar um pouco de galego nas classes.
Suponho que se alguém me conhece através das redes e vê que uso o galego reintegrado, pode que nom acuda as minhas atividades, isso pelo estigma em relaçom a essa normativa e que tem a ver com conotaçons políticas. Assumo que isso suceda, que haja pessoas às quais nom vou chegar pela escolha linguística que fiz. Nom se pode agradar a todo mundo.
Quando trabalho com instituiçons uso o galego ILG-RAG na publicidade ou nos materiais. Nesse caso, considero que é mais importante lograr que seja em galego do que a normativa, mais ainda no panorama de retrocesso da língua que vivemos.
Consideras que há um aproveitamento dos vínculos com a lusofonia a nível galego?
Há mais que há 18 anos, quando cheguei cá, mais ainda teria que avançar muito. Há um tecido social fortemente comprometido com tecer esses vínculos, mais o trabalho de base (sendo fundamental) nom alcança quando temos umhas adminstraçons públicas que remam em contra.
Há um tecido social fortemente comprometido com tecer esses vínculos, mais o trabalho de base (sendo fundamental) nom alcança quando temos umhas adminstraçons públicas que remam em contra.
Que achas da estrategia da AGAL de propor umha via -ao estilo do que acontece na Noruega- de binormativismo?
Nao conheço com profundidade essa proposta, mas de entrada parece-me interessante achegar alternativas criativas ao conflito linguístico. Trabalhar propostas que somem porque o que está claro é que a situaçom do galego é crítica.
Com vés o futuro do galego na Galiza?
Já fui apontando nas respostas anteriores a minha preocupaçom pola situaçom da língua e a neecessidade de trabalharmos na mesma direçom para frear o retrocesso. Valorizo muito as iniciativas de base que estám a trabalhar pela língua em diferentes campos: na cultural popular, no ensino fundamental e no acompanhamento das crianças, nos desportos.
Onde vejo pouca reflexom e pouco trabalho é na relaçom com que as pessoas que chegam a este país e que som espanhol falantes ou falantes de outros idiomas (muitas vezes mais de um pola realidade linguística dos seus territórios de origem). Muitas vezes recebem dos setores sociais mais comprometidos com a língua a decepçom ou reprimenda por nom se animarem a falar galego. Acho este achegamento pouco construtivo e mesmo eurocêntrico ao nom ter em conta as dificuldades que têm essas pessoas para regularizar a sua situaçom administrativa, para conseguir emprego, para alugar umha vivenda, para ter reconhecidos uns mínimos direitos. Nom se percebe que essas crianças (e adultas também) de origens diversas têm que enfrentar situaçons de discriminaçom, inferiorizaçom, racismo e xenofobia. Usar a língua nativa da Galiza deveria ser um fator de proteçom, de pertença e de reafirmaçom das identidades de origem (afinal nós também vimos de territórios onde as nossas línguas nativas sofreram extermínio e maltrato), nom umha carga mais encima de quem está numha posiçom de vulnerabilidade.
Aqui fala em entrevista para Nós TV: