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Horror oriental: Koizumi Yakumo

No mundo ocidental, tradicionalmente, as entidades fantasmagóricas, embora muitas vezes assustadoras, não são, necessariamente, maléficas. Antes, prendem-se à matéria em razão de alguma questão não solucionada em vida e se manifestam sob a forma de espectral aparição até que sejam libertadas do fadário opressor.

Os entes sobrenaturais orientais, malgrado possam vagar no mundo em busca de uma libertação, são particularmente maléficos. São capazes de materializar-se e de impingir dor e sofrimento às pessoas vivas, e — mesmo — causar-lhes uma morte horrenda e cruel. Outras vezes, o espírito maligno volta energicamente ao corpo inanimado para, reanimada a carne deletéria, trazer morte e destruição aos circunstantes. A vingança devastadora não raramente amima o intento de um espírito que se vê atormentado pela quebra de uma solene promessa que lhe fora feita em vida: já veremos.

Mas não apenas espíritos humanos povoam o ancestral imaginário popular da China, Japão e Coréia. Nele, igualmente, habitam seres monstruosos (que mortificam monastérios abandonados) ou pérfidos demônios (que, sob o disfarce de pessoas desamparadas, destroem cruelmente aqueles que os acolhem hospitaleiramente em seus lares). Nocivos espíritos animais também assumem formas humanas para aterrorizar e ludibriar os pobres e incautos mortais.

koizumi yakumo 2

Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro (30 de agosto a 8 de setembro), a Editora Luva apresentará ao público brasileiro o “Horror Oriental”,  um volume ricamente ilustrado de narrativas tradicionais da China, Japão e Coréia, escritas, dentre outros, por Gan Bao (285 – 366), Pu Songling (1640 – 1715), Koizumi Yakumo (1850 – 1904) e Im Bang (1640 – 1722). As traduções — quase todas inéditas em língua portuguesa — são de autoria de Lua Bueno Cyríaco e Paulo Soriano.

No livro, leitor e leitora adentrarão um mundo fantástico e assustador do Extremo Oriente, povoado por fantasmas que sangram, cadáveres deambulantes que perseguem implacavelmente os vivos, demônios escondidos sob peles humanas removíveis, animais fantásticos, monstros hediondos que atacam os viajantes nas estradas, monges que lutam ingloriosamente contra o maligno, aparições e vinganças de além-túmulo… Este é o universo sobrenatural e imensamente macabro que permeia a literatura fantástica oriental.

Ao público galego, ofertamos um conto macabro de Koizumi Yakumo, “A Promessa Quebrada”, com tradução nossa.

Os contos de terror de Koizumi Yakumo — nome nipônico de Lafcadio Hearn —, inspirados nas antigas e legendárias tradições fantasmagóricas do Japão, caracterizam-se pela brevidade, simplicidade e objetividade orientais. Filho de mãe grega e pai irlandês, nasceu na Grécia e viveu na Irlanda, Estados Unidos, Martinica e Japão. Adquiriu a nacionalidade japonesa pelo casamento com Koizumi Setsuko, filha de um samurai. Faleceu em Tóquio no ano de 1904.

Mas, vamos ao conto.

UMA PROMESSA QUEBRADA

 

— Eu não tenho medo de morrer — disse a esposa moribunda. — Somente uma coisa me preocupa agora. Gostaria de saber quem ocupará o meu lugar nesta casa.

— Minha querida — respondeu o marido —, ninguém jamais tomará o teu lugar em minha casa. Nunca… jamais me casarei novamente.

Quando dizia isto, o marido falava do fundo do coração: ele amava a mulher que estava prestes a perder.

— Tu juras pela fé de um samurai? — ela perguntou, exibindo um débil sorriso.

— Juro pela fé de um samurai — ele respondeu, acariciando aquela face pálida e murcha.

— Então, meu amado — disse ela —, tu hás de me sepultar no jardim, não é mesmo? Perto daquelas ameixeiras que plantamos lá no fundo. Há muito que eu te queria pedir isto, mas pensei que, caso tu viesses a se casar novamente, não irias querer o meu sepulcro tão perto de ti. Agora que me prometeste que nenhuma outra mulher ocupará o meu lugar, não é necessário que eu hesite em fazer o meu pedido… Eu quero tanto ser sepultada no jardim!… Creio que, nele, poderei ainda escutar, de vez em quando, a tua voz e, também, contemplar as flores da primavera.

— Será assim como desejas — ele respondeu. — Mas não fales de enterro agora. Não estás tão doente a ponto de perder toda esperança.

— Eu já a perdi — ela replicou. — Vou morrer nesta manhã… Mas tu me sepultarás no jardim?

— Eu te enterrarei — disse ele — sob a sombra das ameixeiras que plantamos. E tu terás um lindo túmulo.

— Tu me darás um sininho?

— Um sininho?

— Sim. Quero que ponhas um sininho dentro de meu ataúde. Um sininho como aqueles que os peregrinos budistas carregam. Farás isto?

— Terás o teu sininho e tudo mais que desejares.

— Não desejo mais nada — disse ela. — Meu amor, tu sempre foste muito bom comigo! Agora posso morrer feliz.

Então, ela fechou os olhos e morreu. Expirou tão facilmente quanto uma criança sonolenta que adormece. Embora morta, estava linda. Havia um sorriso em sua face.

Sepultaram-na sob a sombra das árvores que amara em vida, e, com ela, desceu à cova um pequeno sino. Erigiram sobre a sepultura um lindo mausoléu, ornamentado pelo brasão da família, em que se lia o seguinte kaimyou[1]:

“Grande Irmã mais velha. Sombra-Luminosa-da-Flor-da-Ameixeira, que moras na Mansão do Grande Mar da Compaixão”.

*

 

Mas, doze meses após a morte de sua esposa, os parentes e amigos do samurai começaram a instigá-lo a contrair novas núpcias.

— Tu ainda és um homem jovem — diziam. — És filho único e não tens filhos. É dever de um samurai casar-se. Se morres sem filhos, quem fará as oferendas a teus antepassados? Quem cultivará a memória de teus ancestrais?

E tantas foram as insistentes exortações que, finalmente, persuadiram-no a casar-se novamente. A noiva tinha apenas dezessete anos. E o samurai descobriu que podia amá-la intensamente, a despeito dos mudos reproches que vinham do túmulo no jardim.

II

 

Nada que pudesse perturbar a felicidade da jovem esposa aconteceu até o sétimo dia após o casamento, quando o Samurai recebeu a ordem para cumprir certos deveres que exigiam a sua presença no castelo à noite. Na primeira noite em que se viu obrigado a deixar a esposa sozinha, a jovem mulher sentiu uma inquietação inexplicável. Sentia-se vagamente atemorizada, mas sem saber por quê. Foi para cama, mas não conseguiu dormir. Havia uma estranha opressão no ambiente — um peso indefinível, como aquele que às vezes precede a irrupção de uma tempestade.

Por volta da Hora do Boi[2], ela ouviu, vindo de fora, o tilintar de um sino — um sino de peregrino budista. Ela, então, se perguntou que peregrino poderia estar passando pelas possessões do samurai em semelhante hora. Em seguida, depois de uma pausa, o sino tilintou ainda mais próximo. Evidentemente, o peregrino se aproximava da casa. Mas, por que se acercava pelos fundos, onde não havia entrada alguma…? De repente, os cães começaram a ganir e a uivar de uma maneira estranha e horrível. E um temor a assaltou como se num pesadelo. Sem dúvida, o tinido provinha do jardim… Tentou levantar-se para chamar um criado, mas descobriu que não podia se erguer, mover-se, gritar… E o tilintar do sino ficava mais próximo, cada vez mais se acercava. E — ai! — como uivavam os cães!… Então, com a leveza de uma sombra furtiva, deslizou para dentro do quarto uma Mulher, embora todas as portas estivessem trancadas e imóveis todas as cortinas. Era uma Mulher envolta em vestes sepulcrais, que trazia consigo um sininho de peregrino. Sem olhos — porque ela estava morta há muito tempo —, ela aproximou-se da jovem esposa… e os cabelos soltos caíam-lhe sobre a face. E, mesmo sem olhos, mirou através do emaranhado de seus cabelos, e falou sem que tivesse língua:

— Nesta casa, não! Nesta casa não ficarás! Eu ainda sou a senhora deste lar. Irás embora, e a ninguém revelarás a razão de tua partida. Se disseres alguma coisa a Ele, eu te farei em pedaços.

Assim que pronunciou estas palavras, a assombração desapareceu. A jovem esposa desfaleceu de terror. Não recobrou a consciência até o amanhecer.

No entanto, com a alegre luz do dia, ela duvidou da realidade do que havia visto e ouvido. A lembrança da ameaça ainda pesava em seu coração tão intensamente que ela não ousou falar da aparição noturna, quer para o seu marido, quer para qualquer outra pessoa. Mas quase esteve a ponto de convencer-se de que tudo não passara de um sonho desagradável, que a deixara impressionada. Todavia, na noite seguinte, as suas dúvidas se dissiparam. Mais uma vez, na Hora do Boi, os cães começaram a uivar e a ganir. Novamente ouviu o tilintar do sino, vindo do jardim, aproximando-se lentamente. De novo tentou, em vão, levantar-se e gritar por alguém. Mais uma vez a morta entrou no quarto e disse-lhe, com a voz sibilante:

— Tens de ir embora! E a ninguém dirás por que partiu. Se contas alguma coisa a Ele, um sussurro que seja, eu te farei em pedaços!…

Desta feita, achegou-se bem à cama e, inclinando-se, ficou a murmurar e a mover-se como uma foice oscilante sobre a jovem.

Na manhã seguinte, quando o samurai regressou do castelo, a jovem esposa prostrou-se diante dele, suplicando:

— Eu te imploro — disse ela — que perdoe a minha ingratidão e grande descortesia ao dirigir-me a ti desta maneira, mas quero voltar para casa. Quero ir-me embora imediatamente.

— Tu não és feliz aqui? — perguntou ele, sinceramente surpreso. — Alguém se atreveu a ser pouco delicado contigo durante a minha ausência?

— Não é isto — ela respondeu, soluçando. — Todos têm sido muito bons comigo… Mas não posso permanecer como tua esposa. Tenho que partir.

— Minha querida — exclamou ele, deveras espantado —, é muito doloroso saber que tiveste algum motivo de infelicidade nesta casa. Mas não posso imaginar a razão para que queiras partir… A menos que alguém tenha sido muito indelicado contigo. Decerto, não me queres dizer que pretendes o divórcio.

 Ela respondeu, tremendo e chorando:

—Se não me deres o divórcio, eu morrerei!

Ele permaneceu em silêncio durante alguns instantes, tentando debalde descobrir algum motivo para aquela surpreendente declaração. Então, sem trair qualquer emoção, respondeu:

— Mandar-te de volta ao teu lar, sem qualquer falta da tua parte, seria uma atitude vergonhosa. Se me disseres alguma boa razão para o teu desejo — qualquer motivo que me permita explicar as coisas honrosamente —, posso dar-te o divórcio. Mas, a menos que me dês uma razão, uma boa razão, não o concederei, pois a honra de nossa casa deve ser mantida acima de qualquer reproche.

Então, ela se viu obrigada a falar e lhe contou tudo, acrescendo, numa agonia de terror:

— Agora que te contei tudo, ela vai me matar! Vai me matar!

Malgrado fosse um homem corajoso e pouco propenso a acreditar em fantasmas, o samurai ficou mais que surpreso por um instante. Todavia, uma explicação simples e natural logo afluiu à sua mente.

— Minha querida — disse ele —, estás muito nervosa e receio que alguém te tenha contado histórias tolas. Não posso conceder-te o divórcio somente porque tiveste um pesadelo nesta casa. Mas realmente lamento que tenhas sofrido tanto durante a minha ausência. Terei que ir, também nesta noite, ao castelo. Não te deixarei, contudo, sozinha. Ordenarei a dois de meus antigos e leais serviçais que montem guarda em teu quarto. Assim, poderás dormir em paz. São bons homens, que tomarão todos os cuidados possíveis para proteger-te.

Em seguida, falou-lhe com tanta consideração e carinho que ela se sentiu quase envergonhada de seus terrores. Assim, resolveu permanecer naquela casa.

III

Os serviçais encarregados de cuidar da jovem esposa — homens fortes, valentes e de coração simples — eram experientes guardiões de mulheres e crianças. Contaram à jovem esposa histórias agradáveis para mantê-la alegre. Ela conversou com eles durante muito tempo, riu daquelas tiradas bem-humoradas, e quase esqueceu os seus temores. Quando, finalmente, ela se recolheu para dormir, os guardiões tomaram os seus lugares em um canto do aposento, atrás de um biombo, e começaram a jogar uma partida de go[3], falando apenas em sussurros para não a perturbar. Ela dormia como uma criança.

Todavia, na Hora do Boi, ela despertou, mais uma vez, com um grito de terror… Ouvira o tilintar do sino! O sonido já estava bem perto e se aproximava cada vez mais. Ela se ergueu e gritou, mas não havia qualquer movimento no quarto, apenas um silêncio tumular, um silêncio crescente, que se tornava cada vez mais denso. Correu para os guardiões. Estes estavam sentados diante do tabuleiro, imóveis, e se miravam com olhos fixos. Ela, gritando, chamou por eles e os sacudiu. Mas eles estavam hirtos, como que congelados.

Mais tarde, eles disseram ter ouvido o sino e, também, o grito da jovem esposa. Até mesmo sentiram que ela tentava tirá-los do transe. No entanto, não foram capazes de se mover ou falar. A partir deste instante, deixaram de enxergar ou ouvir: um sono negro havia-se apoderado deles.

*

 

Ao amanhecer, quando entrou na câmara nupcial, à luz mortiça de uma lamparina, o samurai contemplou o cadáver decapitado de sua jovem esposa, que jazia numa poça de sangue. Os guardiões ainda dormiam, agachados diante do jogo inconcluso. Ao grito de seu amo, levantaram-se e, estupidamente, encararam o horror a seus pés…

Não se via a cabeça. A ferida hedionda testemunhava que a cabeça não havia sido cortada, senão arrancada. Um rastro de sangue estendia-se da câmara à galeria exterior, onde as portas protetoras de intempéries pareciam ter sido fendidas. Os três homens seguiram o rastro até o no jardim, atravessaram o gramado e os espaços de areia, ao longo da margem de um lago iridescente, sob as espessas sombras de cedro e bambu.

De súbito, numa curva, eles se acharam cara a cara com algo que parecia saído de um pesadelo, e que se agitava como um morcego: a figura da mulher, há muito sepultada, erguida diante do próprio sepulcro. Em uma das mãos, trazia o pequeno sino; na outra, a cabeça, ainda gotejante de sangue, da jovem esposa. Por um instante, os três ficaram paralisados. Então, um dos homens armados, proferindo uma invocação budista, golpeou com a espada a coisa, que, instantaneamente, desmoronou, dispersando sobre o chão farrapos de mortalha, ossos e cabelos. E desta ruína escapuliu o sino, rolando e tilintando… Mas a mão direita, descarnada, embora segregada do pulso, ainda se contorcia, aferrada à cabeça decepada. E os seus dedos retalhavam e mutilavam aquela cabeça, assim como as pinças de um caranguejo amarelo agarram e destroçam, rapidamente, um fruto caído ao chão…

*

 

[— Esta é uma narrativa perversa — eu disse ao amigo que me contara a história. — A vingança dos mortos, caso tivesse de ser cumprida, deveria recair sobre o homem.

— É dessa maneira que os homens pensam — ele respondeu. — Mas não é assim que que as mulheres reagem a tal insulto…

Ele tinha razão.]

Às vezes, a vingança d’além-túmulo vem dos vivos e não dos mortos. Cadáveres ressurgem do fundo dos sepulcros não por si, mas pelo influxo de mãos vivas.  Há algo de mais terrível que o furor de Pedro I, de Portugal, em desforrar-se das afrontas feitas a Inês de Castro? Em tétrica cerimônia, a dama galega — rainha absconsa — teria sido coroada postumamente e a corte portuguesa, vergada à fúria do monarca lusitano, ter-lhe-ia beijado as mãos putrefatas… Mas esta é outra história de horror…

(Neste artigo, colaborou Lua Bueno Cyríaco.)

[1] Nome póstumo. (N. do T.)

[2] Ente 1h e 3h da madrugada. (N. do T.)

[3] Jogo estratégico de tabuleiro. (N. do T.)

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