A pedra fala da morte do tempo. Não tenhais medo também do seu nascimento. A pedra conta as histórias como passos, por isso têm pés. Cada vida é um caminho e os caminhos de todas as pessoas são a vida de uma morte, de um nascer do mundo.
As frases de Iolanda Aldrei fazem lembrar As Ondas de Virginia Woolf, novela em que a autora inglesa narra a vida de seis personagens, desde a sua infância e até à sua morte. Tudo sucede ao ritmo do mar e, assim, assemelha durar unha eternidade, como um só dia: desde a rompente do dia e até à bocanoite. Entre outras cousas, Woolf descreve a perceção da nossa vida como um continuum, como uma experiência que não remata, senão que continua a se repetir, a se recriar. Mas também fala sobre aqueles vínculos que nos definem para toda a vida.
Estes temas aparecem também em Entrecontar, de Iolanda Aldrei. Nos relatos curtos que compõem o livro podemos ler tanto vidas inteiras, como apenas pequenos anacos que, ao se enfiarem uns com os outros, debuxam o bosquejo de um território e das pequenas grandes histórias que o constroem.
Iolanda Aldrei (Santiago de Compostela, 1968) é escritora e professora. Além da sua ampla contribuição à investigação académica sobre literatura lusófona, é reconhecida pela sua obra literária, que se compõe principalmente de poesia, mas na qual também aparece o ensaio e a narrativa. Entrecontar faz parte deste último género e foi publicado pela editora Através no ano 2020.
Esta última é uma obra composta por narrações ucrónicas que decorrem em vários tempos e vencelham distintas gerações. Assim, Entrecontar é um livro que trabalha sobre a liminaridade, na medida em que tudo o que relata sucede entre as fronteiras do tempo, a vida e a morte. No entanto, todos os relatos guardam como denominador comum a memória de uma forma de habitar a guerra civil e a ditadura.
No labirinto, apenas os contornos guiam. Eles são as margens necessárias entre o medo do finito e a angústia do infinito.
As linhas desenhadas demarcam o vazio do labirinto preexistente, tal como as vozes deixam os fragmentos de um relato pluridimensional no espaço do devir.
Ora bem, é complicado explicar como é que Aldrei cose este patchwork –vocábulo que Andrea Nunes usa para se referir à estrutura do libro no prólogo-, pois os relatos não são independentes, mas também não estão conexos completamente, nem sequer em termos cronológicos. Mas, por confuso que possa parecer, o que a autora consegue fazer é escrever uma “partitura base” desde a qual as leitoras podem decidir desde como ligar os relatos, até que personagem está a narrar um capítulo e se este guarda relação com as personagens dos outros relatos.
É complicado explicar como é que Aldrei cose este patchwork –vocábulo que Andrea Nunes usa para se referir à estrutura do libro no prólogo-, pois os relatos não são independentes, mas também não estão conexos completamente, nem sequer em termos cronológicos.
As histórias do livro são-nos, em certos casos, familiares. Há algumas sobre as mulheres que ficaram sozinhas, já fosse pela emigração ou pela guerra. Fala da precariedade e das estratégias que se tiveram que desenvolver para continuar a viver, para lhe dar sentido e valor à vida sobre qualquer outra cousa. Entrecontar aborda também os mitos e as lendas do território. Mas, embora apareçam meigas e sabedoria originária, a autora não cai nos lugares comuns desse folclore galego que tanto se tem vindo a mercantilizar. Não, Aldrei vai além disso e fá-lo com um domínio da lírica excecional que reclama a leitura atenta de cada imagem.
Fora do momento histórico que contextualiza o libro inteiro, um dos grandes temas que ligam as narrações é a presença da morte. Vemos os finados fazerem-se presentes através das lembranças, dos objetos, animais e até como fantasmas. Estes reencontros, que se vivem com mais ledícia do que desconcerto, na realidade revelam que, no fundo, não se fala tanto da morte como da vida e da resiliência, e que a fronteira entre ambas as duas não existe.
Ofereceu os alimentos que zelava, a água pura do poço que cobrira, e administrava com esperança de porvir. Lembranças e espaço de sentir, para que o mundo resista entre tanta morte latejante.
Em O infinito num junco, Irene Vallejo fala da escrita e a leitura, como uma historia sem fim que se continua a construir com cada libro que lemos, com cada palavra que escrevemos. A intertextualidade está presente em cada relato, seja escrito ou oral. Entrecontar alicerça-se neste fenómeno literário, pois a autora esclarece como cada relato é capaz de desafiar as leis da física ao alcançar que convirjam, num mesmo tempo e espaço, o passado, o presente e o futuro. A literatura como lugar de encontro. As narrações de Iolanda Aldrei “procuram uma linha em espiral, para sobreviver na polifonia, na alteridade, no convívio. O tempo e o espaço dialogam para entrecontar”.
Quiçá a frase com que remata o livro, “O passado é um invento do progresso, existe o devir”, consegue concatenar tudo aquilo que o livro é. Os tempos passados fazem parte do presente e tudo aquilo que se passou recria-se a cada segundo. O ato de fazer memória, de lembrar, faz possível percebermos que não vivemos num tempo mais avançado, o que ativa o nosso sentido político na medida em que nos obriga a reconectar com aqueles e aquilo que sucedeu e do qual não nos podemos livrar. Aldrei lembra-nos que nós próprias, assim como tudo ao nosso redor, estamos compostas pela mesma matéria-prima: um cúmulo de histórias que não sabem do tempo e que giram em si mesmas numa espiral não finita.
[Este artigo foi publicado originariamente em O Salto Galiza]