Ensaio sobre a Cegueira

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Depois da bem-sucedida do Scórpio, a AGAL retoma a leitura continuada doutra obra literária escrita na nossa língua, com a ideia de se converter num evento anual. Se a iniciativa começou, em 2021, prestando um mais do que merecido tributo a Carvalho Calero, neste ano o autor homenageado vai ser José Saramago, a propósito do centenário do seu nascimento.

O escritor português tivo uma relação muito próxima com a Galiza. Em 1987 participou no II Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa, organizado pola AGAL. Recebeu, em 1996, o prémio Rosalia de Castro, outorgado polo Pen Clube da Galiza. Pouco depois da cerimónia do Nobel, estivo em Compostela recolhendo o São Clemente, cujo montante doou integramente para a biblioteca que agora leva o seu nome no bairro de Vite.

O romance que vamos ler, Ensaio sobre a Cegueira, para além de ser um dos mais conhecidos, tem-se revelado atual nestes últimos tempos, como se a realidade quigesse dar um outro passo à frente na sua corrida contra a ficção. Nos piores dias da pandemia, naquele longínquo 2020, um amigo brasileiro enviou-me uma lista de livros que selecionara a sua Faculdade de Filologia sob o lema “Literatura contra as pragas mundiais”. Entre eles estava, obviamente, Ensaio sobre a Cegueira.

Nos piores dias da pandemia, naquele longínquo 2020, um amigo brasileiro enviou-me uma lista de livros que selecionara a sua Faculdade de Filologia sob o lema “Literatura contra as pragas mundiais”. Entre eles estava, obviamente, Ensaio sobre a Cegueira.

Partilhei a escolha no meu grupo dos aPorto (os cursos que a AGAL organiza na Cidade Invicta), com a recomendação de ler também A Peste, de Albert Camus. De facto, ambos os romances têm muitos pontos em comum. Decorrem num cenário parecido, uma classe de prisão, embora a do Ensaio mais opressiva e claustrofóbica. As duas histórias relatam os ulteriores acontecimentos na sequência dum mesmo episódio: o aparecimento súbito duma praga que traz o caos a uma cidade vulgar. Os protagonistas principais, o médico, no romance de Camus, e a mulher do médico, no de Saramago, não se comportam como heróis no sentido clássico (“Um homem perfeito que mata”, segundo o poema de Leonard Cohen). Limitam-se a atuar guiados desde o início polos seus princípios morais. E, no entanto, são eles, homens e mulheres anónimos, os que sustentam, dia a dia, a esperança e a dignidade da raça humana. O significado que encerram ambas as obras caminha também de mãos dadas, e figura explícito nos textos. “É por isso que todos parecem cansados, já que todos, hoje em dia, se acham um pouco empestados”, diz Rieux, n’A Peste. E a mulher do médico fai, no final, o seguinte depoimento: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. A doença física como parábola dos males espirituais que atingem as nossas sociedades.

Contudo, hoje em dia, a capacidade da literatura para despertar as consciências parece enfrentar obstáculos maiores. Talvez não se deva tanto à ausência da figura do intelectual comprometido, quanto ao barulho que ressoa por cima de tudo nesta era da comunicação. Porque é mesmo difícil ouvir algo quando todo o mundo está a berrar. As vozes influentes, noutrora impossíveis de silenciar, são apagadas subindo apenas o volume do ruído. Aliás, uma sociedade onde se dá o paradoxo de que as principais referências sejam precisamente pessoas que, no fundo, só se ocupam de si mesmas (desportistas, atores, cantores, famosos…) não oferece os melhores exemplos. Por conseguinte, acho que fai mais sentido que nunca voltar a ler estes livros; lembretes de que, apesar de não podermos evitar as epidemias, depende só de nós fazer parte delas, ficarmos indiferentes ou procurarmos uma solução.

Contudo, hoje em dia, a capacidade da literatura para despertar as consciências parece enfrentar obstáculos maiores. Talvez não se deva tanto à ausência da figura do intelectual comprometido, quanto ao barulho que ressoa por cima de tudo nesta era da comunicação.

Não há dúvidas de que ambos os romances pertencem por direito próprio à lista de obras primas da literatura universal. Já só pola qualidade da sua prosa, merece a pena recrear-se neles. A de Camus mais aprimorada e evocadora. A de Saramago mais esgrévia e descritiva. As duas ágeis e precisas. E ainda que anime a ler os dous, é evidente que no caso do Ensaio sobre a Cegueira, na Galiza, podemos fazê-lo na nossa língua, aquela em que foi escrito. No dia 17 de dezembro vamos ter a oportunidade, no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Compostela. Porque afinal é algo que tem a ver com todos nós.

[Este artigo foi originariamente publicado no Nós Diario]

Máis de João Lousada