“Se as mulheres falassem não haveria heróis”. Esta frase que a minha mãe repetia com alguma frequência tem-me feito pensar sobre as narrativas, os silêncios e os conceitos que organizam a nossa vida coletiva. Dizia a filósofa Hannah Arendt que os regimes totalitários têm em comum a criação de uma ficção à volta de uma figura heroica. Exemplificava a sua argumentação com as figuras de Hitler e Stalin e manifestava a sua interrogação de porquê as pessoas, convertidas em massa, escolhiam viver a ficção e não a verdade. Os ditadores da Península Ibérica precisam também destas análises discursivas como criadores que foram de ficções, mas com demasiada frequência ficam explicados pelas singularidades de caráter dos seus povos. No que a Portugal diz respeito ainda pesa o limite de “não discutir a história” que estabeleceu Oliveira Salazar no discurso que proferiu em Braga em 28 de maio 1939, uma narrativa histórica que estabeleceu para os portugueses uma única maneira de ser e estar no mundo. Era, dizia Salazar, uma mensagem para “as almas abatidas pelas incertezas do século” que ainda pesa na vida pública portuguesa.
Tenho a esperança de que a memória das mulheres, desocultada das narrativas coletivas, seja o núcleo de uma humanidade mais plural, justa e fraterna, algo que não é só desejo de algumas mulheres para as outras mulheres, mas para toda a vida em comum. O que as mulheres podemos fazer por nós tem como outro a própria humanidade. É uma criação que nasce na vida concreta de cada uma, na consciência do intervalo entre a leitura da realidade que nos aliena e a consciência da nossa humanidade, a plenitude da vocação humana em nós. Sempre entendi o feminismo, também o galeguismo, como humanismo, reflexão e defesa da variedade do humano neste mundo patriarcal e colonialista para o que há tanta vida supérflua.
O reintegracionismo, originariamente um debate sobre a norma da língua, está-se a converter na última década num movimento transversal aos movimentos cívicos galegos, paradigma de agir e pensar soberano, um espaço mental onde imaginar e entender a Galiza, a sua cultura, a sua herança como sociedade, com os seus sonhos, os seus conflitos, os seus inacabamentos, os seus acasos, as suas alegrias e as suas ligações, no contexto deste mundo em que convivem fronteiras fluidas e limites seculares, um espaço de pensamento onde descobrir e explorar as nossas múltiplas pertenças. Também o feminismo é transversal a muitos mais movimentos cívicos do que o próprio feminismo. Por uma e outra via, como reintegracionista e feminista, eu, a Maria que aqui escreve em 2017, mais um ponto na rede de marias seculares, quero reinterpretar os conceitos e narrativas que me foram dadas em diálogo com todas aquelas que usam a língua portuguesa como instrumento de comunicação. Quero ouvir àquelas que em diferentes espaços abrangidos pela língua que falo trabalham em prol de um mundo sem oprimidos. Costumamos ouvir discussões sobre o que as mulheres são. A mim interessa-me bem mais saber o que pensam e o que fazem. Se o elo que nos permite a ligação é a língua portuguesa, eu, mulher galega, quero dar a esta comunidade de comunicação a minha memória democrática e anti-imperialista, a nossa secularmente renovada sede de irmandade.
No início deste ano assisti a um seminário que o linguista brasileiro Gilvan Müller de Oliveira, diretor executivo do IILP até 2014, deu na Casa da Língua Comum em Compostela. Recebemos alguns dados sobre a evolução da língua portuguesa neste século que ainda agora começamos. Um deles é o da “meridionalização” do espaço lusófono, não só pelo aumento de falantes no hemisfério sul, onde já estão, mas pelo aumento de falantes nos países africanos. Que a língua portuguesa tenha uma identidade cada vez mais africana não é questão pacífica, embora para mim seja questão de justiça. A herança colonial, o racismo estrutural, a aculturação, o sofrimento, mas também o que o continente africano foi e é para a humanidade serão cada vez mais falados à medida que mais africanos e afrodescendentes tenham instrumentos de pensamento para questionar o tal euro-mundo que herdamos como cenário único de pensamento. Os que procuramos o espaço internacional da sociedade galega no espaço da língua portuguesa bem devemos ter consciência de este processo e criar discurso próprio, até porque podemos, com a nossa própria herança cultural e social. Dizia Hannah Arendt que uma das piores marcas do totalitarismo é privar ao indivíduo do sentido da pertença. E nós pertencemos a esta comunidade que fala a nossa língua.
Há mais razões que me animaram a promover este encontro. Uma é a vontade de recriar em diálogo os referentes culturais e o território desta margem atlântica que me são comuns às mulheres do estado português. A separação política tem outra dimensão quando se vê desde o ângulo feminino. Outro é a necessidade que sinto de explorar e dar discurso a temas dos que falam as mulheres de diferentes territórios africanos e com os que tão facilmente me identifico: o entendimento da cultura oral, da cultura comunitária, outros paradigmas não capitalistas de entender a cultura e a economia, para além do facto de elas me trazerem outros ângulos para ler a nossa experiência histórica de subalternizadas, por galegas, por pobres, por mulheres. Não é só por ideologia que nos fazemos soberanas e a vida coletiva não caminha em linha reta. A elas também outro ângulo sobre mim, mulher branca, parte privilegiada deste mundo. E ainda outro entendimento da diáspora, outro ângulo para interpretar a nossa descendência galega espalhada pelo mundo. A vivência da minha língua como língua internacional deu-me a consciência de ter uma identidade poliédrica. Fica o convite a descobrirmos e fazermos essas outras imagens de nós no encontro que teremos neste fim de semana em Vilar de Santos.