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Charles Dickens e Mary Anne Hoare

retrato de Charles Dickens
retrato de Charles Dickens

Charles Dickens (1812 – 1870) — dizia um periódico fluminense do século XIX — inspirou paixões violentas.
Pode parecer incrível, mas, naquela época — com o incipiente telégrafo, mas sem rádio, nem cinema, nem televisão, nem internet — Dickens já era, como se chama hoje, uma
celebridade. Contudo, quem podia vê-lo? Quem podia escutar a sua voz? Onde estava a sua sedução? Na palavra escrita? Sem dúvida! Bons e velhos tempos de outrora, quando ainda se vencia a terceira página de um livro fininho sem precisar bocejar…

Vejamos dois casos interessantes sobre o mito Charles Dickens.

O primeiro é narrado pelo “Diário de Notícias”, edição de 12 de agosto de 1870. Conta o jornal que uma certa senhora havia dirigido ao romancista vinte cartas apaixonadas. Não tendo obtido resposta, e dominada pela fúria, tentou apunhalá-lo, sorrateiramente, à saída de um teatro. Para afastar a mulher das testemunhas do homicídio tentado — salvando-a, assim, da pena de morte —, Dickens recolheu-a em sua carruagem e mandou levá-la para sua própria casa, pondo-a ao abrigo de todas as investigações policiais.

Vamos ao segundo.

O jornal “A Constituição”, em edição de 1º de setembro do mesmo ano, reproduziu a seguinte notícia, extraída do periódico britânico “Parlament”:

Em consequência de um trabalho excessivo, que lhe causara uma singular exaltação nas faculdades inventivas, Dickens caiu em um estado de prostração notável.
Não podia dormir mais de duas horas, nem se conservava mais de cinco minutos na mesma posição.
Só conciliava o sono alto dia, depois de percorrer Londres das 11 horas ou meia-noite até quase de madrugada.
Nas primeiras noites de sua peregrinação, notou que uma senhora, de aparência honesta, aparecia-lhe nas horas em que as senhoras de vida regular estão recolhidas em suas casas. Depois encontrou-a mais duma vez na mesma noite.
Toda vez que a senhora encontrava Dickens, encaminhava-se para ele como se quisesse falar-lhe; mas, de repente, mudava de rumo, talvez envergonhada ou amedrontada. Afinal aproximou-se dele com resolução, e acharam-se um defronte do outro.
Ela lhe disse:
— Charles Dickens, o Sr. fez muito mal… Não tenho mais descanso… Olhe para mim, para ver se se lembra quem eu sou… Mereço uma lembrança de sua parte… e juro-lhe que nunca mais há de me ver.
A mulher fugiu; Dickens acompanhou-a de longe, e soube que era casada com um coronel inglês, que residia nas Índias.
Nunca mais a encontrou nas ruas. Quatro dias e quatro noites se passaram assim. No quinto dia Dickens recebeu um retrato em um quadro de alto valor. Preso ao retrato acompanhava uma medalha de marfim e ébano que continha uma basta trança de cabelos pretos. Nessa medalha havia também um bilhete, com cinco linhas. O bilhete dizia:
Amei-te loucamente. Mas o meu amor era criminoso, porque pertencia a outro mundo, onde poderei, sem trair ninguém, pensar em ti. Lastima-me, pois.
O bilhete era assinado por:
A mulher de umas das noites passadas.
Dickens correu à casa dessa mulher. Ao chegar ali, soube que ela tinha acabado de expirar, apunhalando-se com um estilete!”

Dickens, cuja pena era mágica, quase sobrenatural, tocava a fundo o coração das pessoas. Uma delas, sentindo-se desprezada pelo escritor, tentou matá-lo à traição. Frustrado o atentado, ele, humana e magnanimamente, a livrou do laço apertado da força, que era onde ia parar, sem remissão, o pescoço dos homicidas da era vitoriana. Mas Dickens não pôde livrar da forca a outra mulher, porque a dama apaixonada — vendo que seu amor, neste mundo, era coisa impossível — fez de si o próprio carrasco, no firme desígnio de amá-lo, desimpedidamente, do além…

Parece que tais trágicos incidentes ocorreram em algum momento não muito distante da morte do escritor, situada em 9 de junho de 1870. Ao falecer, Dickens tinha somente 58 anos, mas contava com cerca de trinta e quatro anos de constante atividade literária.

Adorado na Inglaterra e nos Estados Unidos, e muito traduzido na França, era bem conhecido no Brasil, onde eventualmente se publicavam, nos jornais do século XIX, algumas de suas narrativas, a maior parte traduzida a partir de um texto em francês. Foi calcado numa tradução francesa que o romancista Machado de Assis (1839 – 1908) publicou, em folhetim, a sua versão em língua portuguesa de “Oliver Twist”. Deixou, entretanto, o trabalho inacabado.

Algumas narrativas, aqui publicadas no século XIX, que exibiam orgulhosamente o nome de Charles Dickens bem abaixo de título, continham alguma peculiaridade.

Vai o convite para a leitura de uma breve e empolgante história, que parece antecipar o clima de suspense tão comum às produções cinematográficas e televisivas de nossa época:

UMA LUTA AÉREA

Numa rústica granja do vale de Sallanches, perto do Monte Branco, vivia Bernard com seus três filhos. Uma manhã, ele ficou doente na cama e, ardendo em febre, esperou, ansiosamente, a volta de seu filho Jean, que tinha ido procurar um médico. Ouviu-se afinal o ruído das patas dum cavalo e pouco depois entrou o doutor. Este examinou o paciente com toda atenção, tomou-lhe o pulso, viu-lhe a língua e disse então, acariciando o rosto do doente: “Isto não há de ser nada!”. Mas fez um sinal aos rapazes que, boquiabertos e ansiosos, tinham-se agrupado em torno do leito. Todos os quatro se desviaram para um canto distante. O doutor abanou a cabeça, estendeu o lábio inferior, e disse:

Aquilo é um sério acometimento — muito sério — de febre, que agora está em toda a sua intensidade. Logo que diminua, é necessário dar sulfato de quinino ao doente.

O que é isto, doutor?

Quinino, meu amigo, é um remédio muito caro, mas podem achá-lo na farmácia de Sallanches. Entre dois picos de febre, o seu pai deve tomar pelo menos o valor de três francos desse remédio. Vou escrever a receita. Sabe ler, Guillaume?

Sim, senhor.

E você cuidará de que ele tome o remédio?

Certamente.

Depois que o médico se foi, Guillaume, Pierre e Jean olharam-se uns para os outros em silenciosa perplexidade. O único dinheiro que possuíam reduzia-se a um franco e meio. Além disso, era necessário procurar o remédio imediatamente.

Escutem — disse Pierre —, conheço um meio de arranjar na montanha, antes do anoitecer, três ou quatro peças de cinco francos.

Na montanha?

Descobri um ninho de águias numa fenda dum medonho precipício. Há em Sallanches um homem que compraria de muito boa vontade as aguiazinhas. E nada deve fazer-me hesitar, a não ser o terrível risco de ir buscá-las. Mas isso não é nada, pois se trata de salvar a vida de nosso pai. Nós as teremos daqui a duas horas.

Eu irei roubar o ninho — disse Guillaume.

Não, deixe-me ir — disse Jean. — Sou o mais novo e o mais leve.

Venham cá — disse Pierre. — A sorte que decida. Escreve três números, Guillaume, mete-os dentro do meu chapéu, e aquele que tirar o número um arriscará a sua vida.

Guillaume chamuscou a ponta de uma lasca de madeira, rasgou em três partes uma velha carta de baralho e escreveu em cada um dos pedaços um dos números e deitou-os dentro do chapéu.

Como batiam os três corações! O velho Bernard estava padecendo os ardores da febre e cada um dos seus filhos queria arriscar a própria vida para salvar a do pai.

A sorte caiu a Pierre, que tinha descoberto o ninho.

Não nos demoraremos muito — disse ele, abraçando o velho. — É necessário irmos todos juntos.

Que vão fazer?

Diremos assim que estejamos de volta.

Guilherme tirou da parede um velho sabre que pertencia a Bernard, do tempo em que ele fora soldado. Jean levou uma corda grossa, como as que os montanheses usam quando cortam árvores. E Pierre dirigiu-se para uma antiga cruz de madeira que se erigia perto da granja e, ajoelhando-se diante dela, assim permaneceu por alguns minutos, em fervorosa oração.

Partiram todos e em breve tocaram a extremidade do precipício. O perigo consistia não só em cair da altura de centenas de metros, mas mais ainda do provável ataque das aves de presa que habitavam o vasto abismo.

Pierre era o destinado a afrontar tais perigos, um rapaz de 23 anos, de belas proporções atléticas. Depois de ter medido com a vista a distância que tinha de descer, os irmãos lhe cingiram a corda em torno da cintura e começaram a deixá-lo descer. De sabre na mão, Pierre chegou com segurança à fenda onde estava o ninho. Havia neste quatro aguiazinhas de cor castanho-amarelada. Ao vê-las, o intrépido caçador sentiu o coração palpitar de alegria. Agarrou o ninho firmemente com a mão esquerda e gritou com alegria aos seus irmãos:

Apanhei-as. Puxem-me!

Mal o primeiro puxão fora dado à corda, sentiu-se Pierre atacado por águias enormes, cujos gritos furiosos lhe provaram que eram os pais das aguiazinhas.

Coragem, irmão! Defende-te! Não tenhas medo!

Pierre apertou o ninho contra o peito e, com a mão direita, brandiu em roda o sabre.

Começou então um terrível combate. Gritavam as águias, as pequenas e as grandes, e o caçador também gritava, fazendo girar a sua espada. As águias sentiram-se feridas pela lâmina, que brilhava como um relâmpago, e ainda mais se enfureciam. O sabre bateu na rocha e fez saltar uma chuva de faíscas.

De repente, Pierre sentiu a corda, que o sustinha, dar um estremeção. Olhando para cima, viu que, nas suas evoluções, lhe dera um golpe com o sabre, e que metade dos fios estavam cortados.

Os olhos de Pierre abriram-se, dilataram-se, ficaram um momento imóveis e depois fecharam-se de terror. Um suor frio percorreu os membros do caçador, que esteve quase a deixar cair o ninho e o sabre.

Naquele momento, uma águia passou-lhe por sobre a cabeça e quase rasgou as suas faces. O saboiano fez um último esforço e defendeu-se ousadamente. Pensou em seu pai e encheu-se de coragem.

Para cima, ainda mais para cima subiu a corda. Vozes amigas pronunciaram com ardor palavras de ânimo e triunfo. Mas Pierre não pôde responder-lhes. Quando tocou a beira do precipício, o seu cabelo, que uma hora antes era negro como uma asa de corvo, tinha-se tornado tão branco que Guillaume e Jean só com dificuldade o reconheceram.

Que significa isso? As aguiazinhas eram da mais rara e preciosa espécie. Naquela mesma tarde foram vendidas. Bernard teve o remédio, conforme era a sua necessidade. Mas, poucos dias depois, o médico anunciou que o doente, debilitado além da conta, já não mais tinha como sobreviver.

A história que você acabou de ler é uma adaptação textual e de conteúdo, por nós realizada, de um conto atribuído a Charles Dickens, a partir de uma tradução apócrifa do século XIX, colhida do jornal “O Publicador”, da Paraíba, edição de 30 novembro de 1867.

Interessante é que, no Brasil, era frequente creditar a Dickens trabalhos de outros autores, a exemplo de “O Estalajadeiro de Adermmat” (disponível aqui), de Thomas Medwin (1788 – 1869), escritor inglês conhecido sobremodo por ter sido biógrafo de seu famoso primo Percy Shelley (1792 – 1822). Calha notar que compartilhou do mesmo argumento não Dickens, mas outro gênio da Literatura universal, Honoré de Balzac (1799 – 1850), em sua esplêndida novela “A Estalagem Vermelha” (“L’auberge rouge”).

Uma Luta Aérea” é, sem dúvida, a reprodução de uma tradução portuguesa, de autor identificado apenas pelas iniciais “A.C.” —provavelmente se trata do editor e tradutor António Rodrigues da Cruz Coutinho (1815 – 1885 ) —, publicada no “Diário de Notícias”, do Porto, em 1866.

Todavia, como esclarece Maria Leonor Machado de Sousa, no seu artigo “Dickens in Portugal” (in “The Reception of Charles Dickens in Europe”, 2013, p. 199), a história não foi escrita pelo genial autor inglês.

Seu título original é “A Tale of Mid-Air” (literalmente, “Um Conto Aéreo”), sendo, na verdade, uma das muitas narrativas atribuídas equivocadamente a Dickens fora da Inglaterra. Mas, por que a atribuição equivocada? Ora, publicada a narrativa, originalmente, sem indicação da autoria, em revista literária semanal editada pelo próprio Dickens (“Household Words“, edição de maio de 1852), é natural que, por aqui, como em Portugal, se pensasse que era ele, verdadeiramente, o autor do emocionante conto.

A real autora do conto é Mary Anne Hoare (c. 1818 – 1872), escritora irlandesa que contribuía regularmente para a “Household Words“, e cujas narrativas se popularizaram na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Hoje, quase nenhuma memória se guarda sobre ela. Mas ficou a admiração que o grande gênio lhe rendia. Se Dickens despertava paixões, também se deixava seduzir pelo talento de brilhantes escritoras de seu tempo, a exemplo da própria Mary Anne Hoare, de Elizabeth Gaskell (1810 – 1865) e de Adelaide Procter (1825 – 1864), de cuja colaboração não prescindia, e que não as deixava de considerar como a si iguais no ilimitado universo da Literatura.

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