Manuel Loureiro nasceu em Vigo e a sua relação com a língua começou sendo materna. Aos 5 anos é consciente de que onde pensava haver uma língua, existem duas, com estatutos diferentes. Gradualmente o galego começa a fazer parte das suas interações comunicativas. Em viagens a Lisboa descobre que uma grande capital da Europa estava cheia de meninos que falavam a nossa língua. Trabalha na Google onde comunica em galego com colegas brasileiros e portugueses. No seu trabalho tem escutado pessoas galegas monolingues em castelhano, lamentarem-se de não falarem português. Julga que os reintegracionistas temos que fazer como as IAs e dizer que, mesmo escrito em galego Ilg-Rag, não por isso deixa de ser falado por 250 milhões de pessoas.
O Manu é viguês e tem uma infância onde a presença do galego e do castelhano era díspar. Que nos podes contar, a este respeito, desse período?
A minha relação com a língua é uma relação materna (a tempo parcial). Quando era menino passava de sábado para quarta na aldeia com a minha avó materna e a minha tia que falavam sempre em galego entre elas, ainda que a mim, à minha irmã e mais às minhas primas muitas vezes nos falavam em castelhano. Falavam relativamente bem, ainda que quando falavam asinha, saia-lhes sempre o galego. Da quarta a sexta estava em Vigo com os meus pais que na altura falavam-me sempre o castelhano e eu o falava também sempre com eles e com a minha irmã. Quando estava em Vigo passava também muito tempo com a minha avó materna que era do lugar de Eiriz na Estrada e dizia irmão, e dizia ceivar, e dizia acoloutrado, e dizia erveira. Vinhera com meu avô para Vigo e tinha um bar no Areal que se chamava Bar Lemos e também me tentava falar em castelhano mas não era capaz porque o falava muito mal e era muito difícil para ela.
A dada altura descobres que o galego e o castelhano são entes diferentes e com estatutos também dissimilares ao mesmo tempo que o castelhano se torna a tua língua.
Foi nessa altura, ao redor dos 4 ou 5 anos, quando me dei conta que algo passava à língua que falava a metade do meu mundo já que não era normal que a minha avó fizesse um esforço tão grande para deixar a sua língua e falar-me numa língua que apenas sabia falar e que nunca usava com o meu pai ou com o meu avô quando falavam entre eles. Esse foi o momento em que me dei conta (quase inconscientemente porque era muito cativo) que o galego, que para mim sempre fora igual ao castelhano, tinha um status diferente e foi a primeira vez que me pareceu injusto e que sofri porque fosse assim. Mas ao entrar no infantário e depois no colégio, o castelhano impôs-se definitivamente. Comecei a escutar a palavra montuno e as burlas da música própria da nossa língua quando um rapaz chegava da aldeia, às segundas, com “demasiado” sotaque galego. Aí terminei de entender o que passava com o galego e comecei a sofrer de jeito consciente, paradoxalmente em paralelo a que o castelhano se reafirmou como a minha única língua.
O passo seguinte foi um uso seletivo do galego. Como era recebido na tua rede familiar e social?
Naquela altura fui monolingue em castelhano mas foi por pouco tempo, porque ao passarem um par de anos, aos 7 ou 8, lembro perfeitamente de que decidi falar sempre em Galego à minha avó paterna. Encontro que este foi o meu primeiro ato íntimo de defesa da língua. De lá aos poucos anos, o meu pai começou a falar galego com todo o mundo, também na rua em Vigo, e também com nós (antes só o fazia na casa com os meus avós e na aldeia). Isso deu-me força, e decidi falar sempre em galego com quem me falasse em galego fora da casa. A minha avó materna, a minha tia, a gente na aldeia, a gente com que trabalhava no parque de campismo dos meus tios em São Genjo, onde pela primeira vez falei Galego durante meses com rapazes da minha idade. E depois ao ir estudar para Madrid comecei a falar com os meus pais quando falava com eles polo telefone. Depois comecei a fazê-lo pessoalmente também, com o meu pai.
Felizmente, este périplo coroa-se com a instalação no galego e pouco depois o interesse por uma visão internacional do galego.
Tinha uma inquedança muito profunda de falar sempre, também com os meus amigos mas sempre que tentava, não era capaz. Sempre pensei que quando eu tivesse crianças ia falar-lhes sempre em galego para que não passassem o que eu passei. Mas não era capaz de dar o passo e isso dava-me ansiedade. Além disso, os dados eram terríveis. Lembro que foi nesse momento, quando escutei que já o castelhano superara o galego na Galiza em número de falantes pela primeira vez na história, e que só os 13% dos miúdos o falavam sempre, que decidi que tinha que mudar sim ou sim. Tardei meses em ser capaz de fazê-lo, mas agora já vai mais de um ano que o falo sempre com todo o mundo que entende. No caminho, a minha mãe, a minha namorada e dois amigos, o Rafa e mais o Hugo também mudaram quando falam comigo. Se não fosse por ele não o teria feito.
O contacto com o português de Portugal nasceu ligado às viagens a Valença do Minho.
Quando ia a Valença de pequeno, com a minha avó, ela falava em galego com o sotaque da costa de Ponte Vedra, e a ela falava-lhe com sotaque minhoto (suponho), mas eu via-o tão natural que nem me chamava a atenção. Mas a primeira vez que fui ao Porto e a Lisboa com os meus país, tendo já essas inquedanças pela nossa língua que expliquei antes, fiquei parvo. Pelos primeiros 3 ou 4 segundos, quando escutavas falar as crianças mesmo parecia que falavam com o nosso sotaque. Recordo sentir uma felicidade e uma paz muito funda, a nossa língua não ia morrer. Lisboa, uma grande capital da Europa estava cheia de meninos que a falavam. E ao mesmo tempo também sentia muita tristeza, mesmo raiva. Porque não podia ser assim na Galiza?
Vivi-no ainda mais intensamente quando fui ao Rio de Janeiro, tão longe, e o sotaque se calhar ainda mais perto que o de Lisboa, e ainda mais crianças a falarem em Galego. Ali também me dei conta que os meus amigos que eram galegos mas monolingues em castelhano, e de famílias nas quais o galego já se perdera havia mais anos, não se entendiam com os brasileiros tão bem como eu o fazia. Aquilo fora muito. Na mesma viagem fomos a Buenos Aires. Todo o mundo diz que não és capaz de imaginar até onde chega a Galiza até ires a Buenos Aires. Eu voltei de lá a dizer a todo o mundo que não é mesmo assim. Não sabes o que é a Galiza até ires ao Rio, escutares e falares com as pessoas.
Manu trabalha para a Google, o que te permitiu viver a tua vantagem linguística como galego.
Estando a trabalhar na Google, comecei a ter companheiros portugueses, eram de Lisboa, e lembro o primeiro dia que lhes expliquei que era galego e que falávamos a mesma língua (do qual eles não faziam ideia). Quando lhes falei com o sotaque que aprendera das minhas avós, recordo que Inês, uma delas disse, mas isso que falas é português do norte com algumas palavras diferentes. Lembro-me que lhe saíra de dentro. Aquilo, para mim, confirmava a minha intuição, por muito que a gente não acreditasse. Daquela também entrei em contacto com os engenheiros que faziam os modelos de linguagem na Google e via como as IAs (naquela altura muito incipientes) não eram capazes de diferenciar o Galego do Português. Mesmo na escrita, com textos escritos no padrão isolacionista, aquelas máquinas ofereciam traduzirem do Português. Hoje em dia, no meu trabalho no Google, falo em galego com todos os meus colegas portugueses e brasileiros. Os meus companheiros galegos, todos monolingues em Castelhano, ficam parvos. Um rapaz de Vigo na Google falando em galego com “muito sotaque da aldeia” entende-se na sua língua com a gente da elite de Lisboa e de São Paulo. Estão a piques de levar os filhos à Semente.
Daquela também entrei em contacto com os engenheiros que faziam os modelos de linguagem na Google e via como as IAs (naquela altura muito incipientes) não eram capazes de diferenciar o Galego do Português.
Quando se trabalha para uma empresa assim, como se visualizam as línguas? Como se visualizam as comunidades que as falam?
Junto com as imagens, as línguas são as principais interfaces que estas empresas usam para se relacionarem com a realidade e captar a nossa atenção de que dependem, em parte, os lucros dos seus modelos de negócio. Deste ponto de vista, as línguas, para estas empresas, são antes de mais recursos que permitem a localização e a tradução necessária para acederem a novos mercados e oportunidades de negócio. O paradoxo está em que por um lado estas tecnologias ajudam as línguas internacionais a estenderem-se ainda mais longe e mais aginha. Ao mesmo tempo, como este processo não é o suficientemente rápido para o ritmo de crescimento que requerem estas empresas, as tecnologias de tradução e localização que essas empresas venhem desenvolvendo também contêm uma potencialidade para ajudar a preservar a diversidade linguística –mesmo dentro duma mesma língua os diferentes sotaques e especificidades dialetais–, uma diversidade que as tecnologias unidirecionais de comunicação (rádio, TV, etc.) estavam a ferir de morte. Essa é para mim a natureza paradoxal da situação atual: nunca foi tão possível, devido a globalização tecnológica, que todos, em poucas gerações, falemos num inglês ou chinês simplificados, e ao mesmo tempo graças a essas mesmas tecnologias, nunca foi tão possível a preservação e a fortalecimento da diversidade linguística, se essas tecnologias desenvolvidas para a acumulação forem usadas com essa intenção.
Até que não cheguem esses tempos, no contexto atual de acumulação, o tamanho e escala é importantíssimo. Nesse sentido, deixando ao lado a China que é um pouco um mundo aparte, as três línguas que todo o mundo quer conhecer são o Inglês o castelhano e a nossa língua na sua variante brasileira. Nesses contextos, ninguém, nem os próprios americanos, estão orgulhosos de serem monolingues, todo o mundo se gaba de falar em várias línguas internacionais. Tenho escutado a gente galega monolingue em castelhano, lamentar-se de não falarem português, ou castelhanos com pouca sensibilidade para as línguas das nacionalidades históricas gabar-se de ter aprendido o português. O mundo ao revés, enfim.
Deixando ao lado a China que é um pouco um mundo aparte, as três línguas que todo o mundo quer conhecer são o Inglês o castelhano e a nossa língua na sua variante brasileira. Nesses contextos, ninguém, nem os próprios americanos, estão orgulhosos de serem monolingues, todo o mundo se gaba de falar em várias línguas internacionais.
Do teu ponto de vista, para promover uma visão e uma vivência internacional da nossa língua, quais seriam as melhores estratégias?
Mudar o foco histórico da ortografia e a escrita para o audiovisual e o oral. Antes bem, a língua no seu conjunto. Isso por uma parte. E por outra, como dizem os ingleses, to show rather than tell. Isso que quer dizer? Focar-se primeiro em conseguir o reconhecimento social de que os diferentes galegos ou diferentes portugueses que se falam hoje no mundo são mesma língua. Mesmo se se escreverem de uma forma diferente. Uma vez que se admita que é a mesma língua, a ortografia histórica há de cair pelo próprio peso. Penso que os reintegracionistas temos que fazer como as IAs e dizer que mesmo escrito em galego Ilg-Rag o galego não deixa de ser falado por 250 milhões de pessoas. Temporalmente, a nossa ortografia pode ser uma barreira artificial quando qualquer um pode escutar um vídeo do YouTube, com uma criança falando com sotaque nordestino.
Por isso, para mim, a derrota mais importante de Carvalho na altura não foi a de não utilizar a ortografia histórica mais a de que se aceitasse que o galego e o português eram línguas distintas. Como seria a nossa realidade sociolinguística hoje se ainda escrevendo em galego Ilg-Rag, todas as crianças aprendessem na escola que a nossa língua é falada por 250 milhões de pessoas.
Porque decidiste tornar-te sócio da Agal e que esperas do trabalho da associação?
De cativo, escutara a palavra reintegracionismo, sem saber muito bem que era, captava uma certa associação com nacionalismo, as greves em Vigo (“greve geral já” lembro que diziam os grafites) mas não muito mais. E depois como que tenho a sensação de que desapareceu. No processo de mudar definitivamente para o galego comecei a ver vídeos do Ben Falado no YouTube que era o que lembrava ver na TVG quando estava na Compostela a estudar. O algoritmo logo começou a sugerir também os do DígochoEu, e lembro que, aos poucos, um dia apareceu-me um de Nós Televisión do Miguel Anxo Bastos que se intitulava “Eu sei que a miña língua é o galego-portugués” e no primeiro fotograma dizia “A minha língua é uma língua universal, eu falo o português que se fala na Galiza”. E a partir daí já não pude parar. Tudo o que eu vivera encaixava com o que dizia o Eduardo, com o que dizia o Valentim nos vídeos, o que saía nos documentários. A ansiedade pela situação do Galego mudou definitivamente e comecei só a desfrutar de falar a língua que me ensinaram as minhas avós, que era uma língua internacional, que nunca ia desaparecer. Algo que já sabia, mas que nunca escutará dizer a ninguém, antes pelo contrário. E escutá-lo mudou tudo.
A minha experiência do reintegracionismo fora uma experiência muito forte mas foi uma experiência sem nome. Por isso, por lhe dar nome (graças ao vosso trabalho nas redes), a toda a gentinha que desde a Rosália até vós já tiveram e têm a mesma inquietação, mudou tudo para mim mais uma vez. Por isso decidi contribuir no que puder no trabalho tão bom que estais a fazer na AGAL. Isso é o que eu espero do trabalho na associação, colaborar para que muita gente possa pôr nome o que está a viver, ou poderia viver.
Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que foi o melhor e que foi o pior?
A nossa língua já não é um dialeto para maior parte das pessoas na Galiza e fora da Galiza, já não é o berro das bestas como dizia a Pardo Bazán mas, paradoxalmente, o preço que tivemos que pagar para que isso ser assim foi transformá-lo num dialeto desconectado do resto do dialetos na nossa língua. O preço foi muito alto, o Galego não vai desaparecer, é uma língua internacional mas esta no caminho de desaparecer da Galiza. Se isso passar, as nossas possibilidades de ser nós no mundo serão reduzidas, e a nossa língua perderá também todas as músicas que a caracterizavam e todas as palavras que ainda sobreviviam ocultas a norte do Minho.
A nossa língua já não é um dialeto para maior parte das pessoas na Galiza e fora da Galiza, já não é o berro das bestas como dizia a Pardo Bazán mas, paradoxalmente, o preço que tivemos que pagar para que isso ser assim foi transformá-lo num dialeto desconectado do resto do dialetos na nossa língua.
Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2050?
Quando fui a Lisboa, a confirmação de que aquela gente não só falava mas também escrevia em galego, com o seu sotaque e o seu estilo mas em galego, encontrei-a em Belém, no convento dos Jerónimos. Ali está enterrado Pessoa e na pedra diz:
PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
14.2.1933 Ricardo Reis
Eu supostamente nunca lera um poema em Português mas aquele poema estava escrito na minha língua. Parecia que Pessoa escrevera aquele poema para nós, na procura duma solução para a situação da nossa língua na Galiza: “para ser grande sê inteiro, nada teu exagera ou exclui”. Anos depois continuo a pensar que a resposta está aí. Agora que sei o que significa, acho que o sentido do reintegracionismo poderia também caber nessa frase. Nem exagerar nem excluir para que o galego possa ser inteiro, também na Galiza.
Para que em 2050, em Vigo as crianças possam falar em galego, com a nossa música, com a que aprendemos das nossas avós, e ninguém pense que são montunos mas ao contrário, que a gente pense, que bem falam o galego essas crianças. Quantas possibilidades têm graças a língua que aprenderam das suas avós. Que no 2050 uma criança em Vigo possa pensar em ver um vídeo de um YouTuber de Buenos Aires ou de São Paulo. Que seja natural. Que pode estudar na Corunha, no Porto ou no Rio e não tenha que explicar aos seus companheiros que o que fala é a mesma língua com outro sotaque e algumas palavras diferentes.
Conhecendo Manuel Loureiro:
Um sítio web: @lapaginaasquuerosa e em geral todas as páginas de memes da cena hiper-local dos concelhos.
Um invento: a amizade.
Uma música: qualquer uma da que programam os Yungen Kala nas festas de Flux (@flux_lux_) no Sub-mondo de Vigo.
Um livro: Jamais fomos modernos, do Bruno Latour.
Um facto histórico: O lançamento de LP A.D.R.O.M.I.C.F.M.S IV do Yung Beef en 2017.
Um prato na mesa: aletria com amêijoas
Um desporto: O ciclismo e o Celta
Um filme: La Chimera, da Alice Rohrwacher.
Uma maravilha: A devesa da Rogueira no Courel
Além de galego/a: Terrestre