Subprodutos do colonialismo português na África
O legado de Portugal, enquanto país colonizador, sobre o continente africano não limita-se à aculturação e assimilação das populações autóctones. Além da extensão do uso veicular da língua galego-portuguesa nos territórios ocupados, fato que gerou aquele amplo espaço lusófono que se estende entre o Saara e o Cabo da Boa Esperança, a duradoura presença portuguesa na África implicou numerosas consequências nos diversos setores geopolíticos sub-regionais e nas relações interestatais. De fato, as diversas guerras anti-coloniais que ocorreram nas décadas de sessenta e setenta, seguidas pela perpétua instabilidade institucional e política e por sangrentas guerras civis nas antigas colónias, só são as manifestações mais evidentes dos efeitos nefastos do domínio colonial. Menos debatido, se não propositadamente negligenciado, é o desenrolamento das relações sociopolíticas dentro daquele âmbito geográfico que já pertenceu à metrópole lusitana, mas que antecipadamente saiu da sua área de influência. Este é o caso da região de Casamansa, no atual Senegal.
Breve perfil histórico e sociocultural de Casamansa portuguesa
Casamansa, cuja capital histórica é Ziguinchor, está localizada no sul do Senegal. Em conformidade com o sistema de organização territorial senegalês, Casamansa é atualmente dividida em três macro-unidades administrativas, as regiões de Ziguinchor, Sédhiou e Kolda. No norte faz fronteira com a Gâmbia e no sul confina com a Guiné-Bissau, outro país lusófono. Tal como a Guiné Bissau, Casamansa foi longamente um segmento do domínio português na África ocidental.
A presença portuguesa na região de Casamansa remonta aos séculos XV e XVI. Mantendo Cabo-Verde como entreposto das próprias atividades exploratório-comerciais nas costas da Guiné, os portugueses, navegando rio acima, penetraram no interior. Feitorias foram fundadas, e comércios com os africanos iniciados, dentre os quais, o dos escravos. No alvorecer do século XVII, há relatos de instalações de portugueses em Ziguinchor, provavelmente oriundos de grupos de lançados. No entanto, foi só em 1645 que Ziguinchor entrou formalmente dentro das possessões portuguesas, sendo administrativamente dependente da capitania de Cacheu (Guiné-Bissau). Na ausência de documentação suficiente até meados do século XIX, sabe-se que a influência portuguesa na região de Casamansa perpetuou-se a partir de três polos de transmissão cultural: o português continental, o cabo-verdiano e o guineense fronteiriço. Apesar da ação dessa tríplice infiltração luso-falante (e crioulo-falante), Casamansa caiu logo às margens das prioridades coloniais lusitanas. Se supõe então que o poder em Ziguinchor articulou-se na forma de regência local, nas mãos de luso-africanos cuja ascendência e conexões os ligavam tanto ao Cabo-Verde como à Guiné-Bissau, bem como a Portugal, mesmo se mais remotamente. Embora Casamansa não tenha representado uma colónia de povoamento, a lusitanização ocorrida ao longo de sua dependência de Portugal, levou-a à formação de um crioulo de base portuguesa e à cristianização. Ambos os elementos concorreram a definição de uma área geocultural cujas referências histórico-institucionais, linguísticas e espirituais são distintas das da maioria de senegaleses.
A redução do controle português sobre Casamansa coincidiu com um crescente apetite expansionista francês sobre essa mesma região. Depois de algumas décadas de escaramuças entre luso-africanos e franceses devido às ambições territoriais e comerciais da França, somadas à não-demarcação dos limites entre o Senegal francês e a Guiné portuguesa, Ziguinchor, e assim Casamansa e Portugal, capitularam. No dia 12 de maio de 1886 a Convenção franco-portuguesa formalizou a cedência da soberania portuguesa sobre Casamansa, que tornou-se de fato possessão colonial francesa só em 22 de abril de 1888, pondo fim aos 243 anos da presença portuguesa ao longo do rio Casamansa. Integrada no Senegal recém independente, Casamansa em 1960 passou a ser uma das suas sete regiões administrativas.
No dia 12 de maio de 1886 a Convenção franco-portuguesa formalizou a cedência da soberania portuguesa sobre Casamansa, que tornou-se de fato possessão colonial francesa só em 22 de abril de 1888, pondo fim aos 243 anos da presença portuguesa ao longo do rio Casamansa. Integrada no Senegal recém independente, Casamansa em 1960 passou a ser uma das suas sete regiões administrativas.
Legado do conflito luso-francês: do regionalismo casamansense ao Movimento das Forças Democráticas de Casamansa
A colonização portuguesa desta extremidade meridional da Senegâmbia e o conflito geopolítico luso-francês se sobrepuseram a um mosaico étnico e sociocultural já por si complexo. Mediante uma supersimplificação de tamanha complexidade, torna-se possível diferenciar no atual Senegal uma maioria (constituída em realidade por uma multidão de grupos étnicos) de etnia wolof, cuja proeminência sociopolítica estaria levando a um certo grau de wolofização. Se comparada com o resto do Senegal, na Casamansa, também multiétnica, o grande número de diolas e mandingas determina a afinidade casamansense com o mosaico étnico guineense. A forte semelhança com a vizinha Guiné-Bissau manifesta-se além do mais através da comum conservação de um crioulo de base portuguesa. Idioma intercomunitário majoritário na Guiné-Bissau, o crioulo em Casamansa mantém-se hoje como fala minoritária apenas em Ziguinchor, em alguns de seus subúrbios rurais e na região fronteiriça com o vizinho lusófono. Ademais, Ziguinchor e a Baixa Casamansa, diferenciam-se do Senegal maioritariamente islâmico (>95%) por terem uma sociedade multiconfessional formada por muçulmanos, cristãos e animistas.

A forte semelhança com a vizinha Guiné-Bissau manifesta-se além do mais através da comum conservação de um crioulo de base portuguesa.
Em 1982, baseando-se nas peculiaridades geoculturais casamansenses reforçadas por um distinto passado colonial, e em resposta a um geral descontentamento com o governo de Dakar, o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC) inaugurou a própria luta, que logo passou a ser armada, em prol da independência. Quanto ao MFDC, este nome, segundo alguns, evoca um agrupamento interétnico de casamansenses que operou nos anos quarenta dentro da ampla frente anticolonial, visando também ao alcance da autonomia territorial de Casamansa. Ao obter a independência, a nova classe dirigente senegalesa, preeminentemente wolof e liderada por Léopold Sedar Senghor, embarcou-se na tentativa de transformar um espaço territorial herdado da colonização numa unidade nacional que trascendesse as identidades regionais. O modelo de centralização jacobina herdado da França, já moldado de acordo com a sociedade islâmica hierarquizada dos nortistas, mal se adaptava à realidade casamansense. O infringimento das normas consuetudinárias dos diolas em relação a distribuição das terras contribuiu a radicalizar as reivindicações casamansenses. Foi portanto na base desta pluralidade de contrastes de natureza etno-religiosa e de uma distinta organização do poder político que surgiu o conflito separatista em Casamansa.
Agora, o que surpreende é que o conflito de Casamansa tem-se prolongado até aos nossos dias, durante mais de quatro décadas. Desde o começo, o tumulto separatista casamansense não conteve-se dentro dos limites senegaleses, mas envolveu os territórios nos arredores de Casamansa e se estendeu até o norte da Guiné-Bissau. As relações entre alguns setores político-militares desviados da Guiné-Bissau e o MFDC foram por um longo tempo turvas. Na verdade, entre o meio intelectual marxista casamansense, um certo fascínio pelos avançamentos políticos na Guiné-Bissau já existia nas décadas de sessenta e setenta, quando o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde foi fundado por Amílcar Cabral, entre outros. No princípio dos anos noventa, o MFDC, frente à repressão senegalesa, amparou-se nas matas densas entre Ziguinchor e a Guiné-Bissau. Num contexto de conflitualidade generalizada na mais ampla região africana ocidental, verificou-se o ingresso de armamentos em Casamansa. Em seguida, o início da guerra na Guiné-Bissau em 1998 e 1999 entre o Presidente da República Nino Vieira e alguns segmentos das Forças Armadas fiéis a Ansumane Mané, despertou e radicalizou também a luta armada de uma parte do MFDC. O Senegal logo apoiou as forças governamentais de Vieira, enquanto uma das duas facções internas ao MFDC juntou-se às forças militares pró Mané. O envolvimento de ambos os estados e do MFDC causou a regionalização do conflito e têm levado a uma interminável fase de enfrentamentos intra-faccionários no MFDC, cuja fragmentação prejudicou ainda mais a estabilidade regional e as perspectivas de negociação. Desde então, fases de cessar-fogo, atritos e represálias tem se alternado em Casamansa e o conflito permanece não solucionado. O papel mediatório da Guiné-Bissau no conflito casamansense continua a ser todavia determinante. Em agosto de 2022, o Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló,patrocinou um pacto de cessar-fogo entre uma ala do MFDC e o governo senegalês. Resta ver se o acordo alcançado vai dissuadir as facções mais radicais do MFDC da prossecução das próprias ações guerrilheiras.
Agora, o que surpreende é que o conflito de Casamansa tem-se prolongado até aos nossos dias, durante mais de quatro décadas. Desde o começo, o tumulto separatista casamansense não conteve-se dentro dos limites senegaleses, mas envolveu os territórios nos arredores de Casamansa e se estendeu até o norte da Guiné-Bissau.
A Casamansa hodierna: apêndice do espaço lusófono
As vicissitudes políticas que têm envolvido Casamansa após sua transferência para a França, e então sua incorporação no Senegal, não são desligadas do seu passado colonial português. Descontente quanto à anexação francesa, os notáveis luso-africanos de Ziguinchor, juntamente com os novos moradores franceses, recuperaram um certo grau de autonomia administrativa e soberania comercial sobre Casamansa. Uma condição que a “vila”, que pouco se diferenciava da “aldeia” portuguesa que já tinha sido, obteve por volta de 1907-1908.
O crescimento demográfico de Ziguinchor, que de fato consistiu na urbanização da população diola, tornou a cidade centro de referência dos diolas de Casamansa. A concorrência dos nortistas na região com cargos de relevância administrativa, por isso representantes do trinômio franco-wolof-islãmico, contribuiu para reforçar o sentimento de alteridade dos diolas perante o estado senegalês. A inculturação escolástica formal dos diola ao longo do século XX animou um renovado culturalismo entre os diolas casamansenses, que no seio do histórico regionalismo das elites de Ziguinchor, até há pouco tempo lusófonas, abriu o caminho à radicalização do regionalismo casamansense.

Na ausência de números exatos, sabe-se contudo que uma população lusófona em Ziguinchor e na Baixa Casamansa continua a existir. O crioulo casamansense dos fijus da terra, termo que refere-se aos casamansenses luso-africanos e cristãos, descendentes dos portugueses lançados e das mulheres de diversas etnias africanas (mais frequentemente pertencentes à população dos bainuncos), representa ainda uma língua veicular por uma miúda minoria em Ziguinchor e beneficia da presença revitalizadora dos migrantes da Guiné-Bissau, lusófonos como os antigos moradores da Ziguinchor portuguesa. O afrancesamento linguístico de todos os âmbitos formais da vida pública do estado senegalês e o crescimento populacional de Ziguinchor ao longo da segunda metade do século passado intensificaram o rebaixamento do número de falantes do crioulo em Ziguinchor, que hoje são cerca de10 à 50 mil pessoas (em toda Casamansa). Por outro lado, conservou-se todavia o sentimento de parentesco com os guineenses como coletividade étnica à qual Casamansa se assemelha. Em Casamansa, os portugueses, ou melhor, o colonialismo português, permanecem uma memória vivida, evocada pela presença autóctone de luso-falantes e pelos laços com a Guiné-Bissau, reformulada em contraposição ao passado colonial francês do resto do Senegal e pela função escravagista da Ziguinchor portuguesa. No entanto, tal memória não deixa de ser um rasgão em Casamansa, assim como nos povos que nela habitam. A origem etimológica do nome Ziguinchor, mesmo sendo em realidade derivada de um topônimo bainunco, é por muitos associada a seu papel de entreposto no comércio transatlântico de escravos, sendo derivada segundo a tradição da contração da aterrorizada exclamação de espanto dos habitantes à chegada dos portugueses: “cheguei e choram”. Casamansa torna-se então um contexto geocultural que tem de ser perspectivado também à luz de seu antigo pertencimento às colónias portuguesas, bem como da ininterrupta presença de uma população lusófona ao longo de quatro séculos. Porque é também na base das fraturas deixadas pela competição luso-francesa sobre a região e pela arbitrária fundação de estados na base das delimitações coloniais que os atuais desdobramentos geopolíticos têm surgido. Torna-se portanto fundamental ter um olhar lusófono sobre a Casamansa, onde não deveria causar demasiado deslumbramento se deparar com sobrenomes portugueses ou ser saudado com um bem português: “Bom dia”.
A origem etimológica do nome Ziguinchor, mesmo sendo em realidade derivada de um topônimo bainunco, é por muitos associada a seu papel de entreposto no comércio transatlântico de escravos, sendo derivada segundo a tradição da contração da aterrorizada exclamação de espanto dos habitantes à chegada dos portugueses: “cheguei e choram”.
É portanto em virtude da adesão à uma comum coletividade de caráter tetra-continental interligada por meio do uso da língua galego-portuguesa, que cabe aos atuais órgãos internacionais de agrupamento dos países lusófonos, como a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), não descurar este recanto luso-falante da África. Sinaliza-se neste sentido a presença em Ziguinchor de um centro de língua portuguesa vinculado ao Instituto Camões, dentro da Universidade Assane Seck. A população lusófona na região de Casamansa, todavia, encontra-se hoje minorizada e em certos versos moribunda frente à avançada de outros grupos linguísticos. Além disso, o crioulo de Casamansa é, de fato, o único crioulo de base portuguesa na África a ser falado num território onde o português não é reconhecido como língua oficial. O Senegal reconhece unicamente o francês como língua oficial (art. 2 da Constituição) e é afiliado à CPLP integrando o grupo de “observadores associados”, já que, como estipulado pelo artículo 6(1) dos Estatutos da CPLP, “qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se membro da CPLP”. Uma situação de vulnerabilidade linguística que merece certamente a cuidadosa vigilância por parte de tais órgãos de promoção da língua galego-portuguesa. Cabe em seguida aos analistas e aos observadores lusófonos alimentar o interesse em relação ao caso casamansense, imaginando respostas políticas e jurídicas que lidem com as complexidades existentes em Casamansa, com base numa abordagem teórica que concilie a proteção dos direitos das minorias e a concessão de autonomia territorial.