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As mulheres da República, segundo o filme ‘Libertárias’

Libertarias Foto 4Ao redor da data de 14 de abril temos que celebrar o Dia da República, para comemorar a sua proclamação a 14 de abril de 1931, faz agora 84 anos. Especialmente, porque foi o período da nossa história, sem dúvida alguma, no qual o Governo mais se preocupou pela educação e pela cultura, criando infinidade de escolas, abrindo numerosas bibliotecas (escolares, populares e rurais), dando o devido apreço aos mestres, preocupando-se pela sua formação inicial e permanente e pela sua valorização social, desenvolvendo as Missões Pedagógicas por numerosas comarcas rurais, para levar a elas a cultura, as artes, o teatro, a música…E, por se isto fosse pouco, dar à mulher o importante papel social que deve ter, ademais do voto nas eleições que antes não tinha, e considerar as pessoas como verdadeiros cidadãos, com os seus direitos e, naturalmente, os seus deveres. Ademais de promover uma Constituição que reconhecia a diversidade do Estado Espanhol como plurinacional, com as suas diversas culturas e as suas línguas, nomeadamente, ademais do castelhano, o galego-português, o catalão e o euskara (basco). Infelizmente, a República durou tão só 5 anos, pois a 18 de julho de 1936, com o apoio da oligarquia e dos poderes fácticos, dos países com governos nazi-fascistas (Alemanha e Itália) e a absurda neutralidade dos denominados países democráticos (especialmente EUA e o Reino Unido), o ditador Franco levanta-se em armas contra o Governo legítimo republicano e, depois de uma guerra fratricida de 3 anos, instaura uma Ditadura que durou nada mais e nada menos que até mais alá de 1975; da qual ainda é hoje o dia em que temos numerosas sequelas. Para que a história não volte repetir-se, convém dar a conhecer a crianças e jovens, desde as aulas e estabelecimentos de ensino, este período histórico do nosso país de 1930 a 1940. Para muitos escolares, um período desconhecido e muito afastado.

Não há muito que eu descobri no arquivo-museu de Santiniketon (Bengala indiana) que o meu admirado Robindronath Tagore (1861-1941) fora no seu dia o Presidente do Comité indiano de apoio à República. Devidamente digitalizado, no museu mencionado conserva-se, sob o título de “À consciência da Humanidade”, um lindo documento com a sua escrita em que diz:

“Em Espanha, a civilização mundial está sendo ameaçada e esmagada. Franco sublevou-se contra o governo democrático dos espanhóis. O Fascismo internacional está enviando homens e dinheiro em ajuda dos rebeldes. Os mouros e os legionários estrangeiros estão varrendo as belas planícies de Espanha, deixando detrás de eles morte, fame e desolação. Madrid, o orgulhoso centro da cultura e da arte, está em chamas. As suas inestimáveis obras de arte estão sendo bombardeadas pelos facciosos. Nem sequer os hospitais se livram da destruição. Mulheres e crianças são assassinadas, privadas de seus fogares, deixadas na indigência. Esta mareia devastadora do Fascismo internacional deve ser examinada. Em Espanha devemos rejeitar de plano este recrudescimento inumano do obscurantismo, do preconceito racial, do saqueio e glorificação da guerra. Deve-se salvar a civilização de ser anegada e varrida pelo barbarismo. Neste momento de grande sofrimento para a gente de Espanha, faço um chamado à consciência da Humanidade. Ajudai a gente do frente em Espanha, ajudai ao Governo da gente, berrai “Basta já” à revolta, vinde a milheiros em ajuda à democracia, em auxílio da civilização e da cultura”.

Tagore compôs este seu lindo depoimento no ano 1937.

O que sim eu conhecia, desde há tempo, é o último escrito por ele feito, muito pouco antes de falecer, em agosto de 1941. Em concreto, 14 de abril de 1941, justo 10 anos depois de ter-se proclamado a nossa República. E também conhecia que, entre os livros escolhidos por Machado e seus colaboradores para as bibliotecas das Missões Pedagógicas, iam vários títulos de obras de Robindronath, como A lua nova, O jardineiro e Morada da Paz. O último escrito de que falo foi antes palestra, e intitulou-no Tagore como “Crise da Civilização”. Nele faz Robindronath uma clara e diáfana defesa da República e uma forte crítica aos britânicos por não tê-la apoiado no seu momento. O treito no que aparece esta menção diz:

“O Japão começou a fazer-se dono do Norte da China, e os ingleses toleraram cinicamente este ato de bandidagem como cousa de pouca importância. Os seus homens públicos, mais tarde, deixaram fazer astutamente aos destrutores da República espanhola. Embora, pude ver também a um grupo de valentes ingleses que expuseram as suas vidas pela liberdade de Espanha. É verdade que estes generosos impulsos não se tinham produzido nos corações ingleses quando a ameaça pairava sobre um país asiático como a China; com tudo, a abnegação heroica para a causa de uma república europeia vindica o autêntico espírito inglês que admirei na minha juventude. Este contraste impressionou-me fundamente, e por isto vejo-me obrigado hoje a dar conta da minha lamentável e gradual perda de fé na civilização ocidental”.

Para apoiar este meu depoimento escolhi o filme “Libertárias”, realizado em 1996 por Vicente Aranda.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

  • Libertarias DVD editado no Brasil Título original: Libertarias (Libertárias).
  • Diretor: Vicente Aranda (Espanha, 1996, 130 min., a cores).
  • Roteiro: Antonio Rabinad e Vicente Aranda, segundo uma história de José Luis Guarner e V. Aranda.
  • Fotografia: José Luis Alcaine. Música: José Nieto.
  • Produtoras: Sogetel e Lolafilms. Montagem: Teresa Font.
  • Prêmios: 6 nominações nos Prêmios Goya de 1996.
  • Atores: Ariadna Gil (Maria), Ana Belén (Pilar), Victoria Abril (Floren), Loles León (Charo), Blanca Apilánez (Aura), Laura Maña (Concha), Miguel Bosé (cura secretário), Jorge Sanz (operário filho), José Sancho (operário pai), Antonio Dechent (Faneca), Azucena de la Fuente, Yael Be, Maria Galiana, Manuel de Blas, Joan Crosas, Alex Cox, Claudia Gravi, Paco Bas, Patricia Vico e Maria Pujalte.
  • Argumento: A Guerra Civil espanhola (1936-1939) vista por um grupo de milicianas anarquistas. Quando a 18 de julho de 1936 parte do exército espanhol deu um golpe de estado (sublevando-se contra o Governo republicano legítimo), um grupo de mulheres reivindicou o seu direito a luitar no frente. Em nome da liberdade, as mulheres livram a sua própria batalha para equiparar-se aos homens na luita armada.

A UTÓPICA VALENTIA DAS MULHERES REPUBLICANAS:

Comparto plenamente os comentários que deste filme fez no seu dia o crítico cinematográfico da revista Reseña de Madrid, Norberto Alcover, com o que me une uma grande amizade desde que nos anos setenta participou, apresentando alguns dos filmes, nas Jornadas do Cinema e nas Mostras Cinematográficas de Ourense, que organizava o Cine Clube “Padre Feijóo”, que eu dirigia.

O filme inicia com uma sequência na qual, perante a chegada dos revolucionários populares, a freira Superiora dum convento próximo a Barcelona dispersa as suas freiras. Uma das mais jovens, Maria, recita de memória o texto evangélico sobre o cuidado que Deus Pai tem de todas as suas criaturas. Na sequência final, sobre o cadáver de Pilar, uma das protagonistas, Maria recita um dos mais belos textos de Kropotkin que diz: “Na nova Arca da Aliança, todos os famintos hão ser saciados e os oprimidos liberados, e hão reinar para sempre a paz e a justiça, e a morte já não há existir”.

Libertarias Foto 6O filme, mais estruturado no seu roteiro do que se comenta, é singelamente o processo realizado por Maria, a jovem freira, desde o seu recolhido mundo conventual até à convulsão revolucionária, para terminar por descobrir que as grandes instâncias cristãs reaparecem, embora desde óticas e com modulações diferentes, nas reivindicações históricas precisamente libertárias e feministas. Tudo o demais é secundário na intencionalidade do filme, embora esta resulta gravemente prejudicada pela introdução de fatores narrativos (personagens e ações) que ampliam demasiado esta estrutura global da fita. O roteiro tinha que centrar-se mais na ideia fundamental, como já queria um dos roteiristas, Antonio Rabinad, e não desproporcionar-se tal como realmente aconteceu. Aranda, o realizador, terminou por filmar uma intensa e imensa “história de histórias”, intentando expressar o fenómeno das mulheres libertárias na confusa primavera da guerra, que Castelão chamou “incivil”. Infelizmente, nunca se chega a proporcionar na fita o percurso individual da freira Maria, que seria de enorme interesse. Tudo por utilizar infinidade de elementos que invadem a tela do filme. Atrevo-me a assinalar que a lógica urgência com que o diretor deseja ampliar o discurso de maneira um tanto espetacular e, ademais, o querer outorgar-lhe um alcance ideológico mais universal, não favorece que possamos conhecer a aventura interior em que, da primeira à última sequência, nos submerge, no colmo da paradoxa, o mesmo roteiro fílmico. Embora sejam excelentes atrizes, sem dúvida nenhuma, tão-pouco favorece o resultado do filme a presença de intérpretes do chamado “star system” cinematográfico: Ana Belén, Victoria Abril e Loles León. Enquanto Ariadna Gil assume o papel de jovem freira sem fazer-nos pensar na sua pessoa real, na tela nunca chegamos a olhar as personagens interpretadas pelas atrizes antes citadas, senão as pessoas de quem as interpreta, quer dizer, as destas grandes atrizes. E como as três são cruciais para acreditar na narração, ao não acreditar nas personagens que interpretam, tão-pouco podemos chegar a acreditar de tudo quanto se nos conta na fita.

Libertarias Foto 3Nesta ocasião, o chamado “sistema de estrelas fílmicas” emprestou ao filme um péssimo favor. Apesar de que a personalidade destas atrizes que arroupam a protagonista é interessante a partir da perspetiva tanto humana como político-feminista. Que apresentam uma sóbria convicção, não isenta de ternura, em Pilar; a excentricidade inçada de incerteza em Floren e o amencer surpreendido à regeneração de Charo. Também as outras personagens, quando atuam conjuntamente (o grupo revolucionário em que se insere o grupo de mulheres), exageram o seu protagonismo, fazendo dum filme nascido para o intimismo, um filme descaradamente extrovertido e um tanto grandiloquente. Lamentavelmente, faltou um certo senso de mesura, dado que a estrutura narrativa pedia outra cousa. Como é o caso da sequência no prostíbulo, onde se impôs o ridículo.

Embora, analisando o filme no seu conjunto, apesar destes erros que comentei antes, é muito recomendável para todos a visão deste formoso filme, que nos convida a ligar com um momento histórico absolutamente substancial para compreender-nos como “país na história”. Merece a pena contemplar o entusiasmo popular tão utópico no seu caótico devir. Merece a pena aproximar-se de umas mulheres que intentam romper séculos de servidão machista. Merece a pena descobrir a alegria ilimitada e a sobriedade dorida do povo singelo perante a vitória e perante a morte. E, especialmente, embora tão-pouco o tenhamos comentado, merece a pena descobrir os misteriosos caminhos da vida, que terminam por aproximar cosmovisões aparentemente tão distanciadas, mas na realidade coincidentes em algo chave: a liberação como identidade. Tanto a música, como a fotografia do filme são muito adequadas. Enquanto a coluna de Durruti se mexe de Barcelona até Saragoça, com o Ebro por meio, Maria, a jovem freira, move o seu corpinho um tanto fraco e estupefacto entre berros, metralha e pensares. Nesta sua personagem encerra-se a capacidade revolucionária da simples experiência, do estar expostas ao risco existencial, porque o que de verdade modifica o viver é o mesmo facto de abandonar a própria terra, com as suas seguranças, e percorrer outras inevitavelmente desconcertantes. Esta é, sem dúvida, a grande proclama revolucionária deste filme. E, por isto mesmo, pode que os cidadãos do nosso país deveríamos acudir a olhar esta fita para recuperar um tanto de valentia utópica, precisamente nestes momentos quando manda a vulgaridade e o compromisso escapou pela porta do dinheiro. Em ocasiões, a arte é imperfeita, mas não deixa de conduzir até territórios onde regenerar-nos das nossas lacras. Como já sucedera com o filme “Sierra de Teruel” de André Malraux (1938-1939). Apesar das nossas críticas aos evidentes erros do filme, gostamos da fita de Aranda, na que a freira Maria viveu a vida, e vivendo, descobriu-se no mistério da própria e universal identidade, perdida entre os párias da Terra.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Utilizando a técnica do Cinema fórum, podemos analisar o filme de Vicente Aranda, desde o ponto de vista formal (linguagem fílmica, planos, planos-contra plano, movimentos de câmara, jogo com o tempo e o espaço, etc.) e de fundo (mensagem que intenta transmitir e atitudes que manifestam as diferentes personagens do mesmo, especialmente as das cinco ou seis mulheres protagonistas que assumem as teorias anarquistas).
Organizamos nos estabelecimentos de ensino uma amostra sobre a mulher na 2ª República, completada com um amplo apartado dedicado às teorias anarquistas e libertárias, incluindo na mesma dados, documentos, textos, frases, aforismos e fotos sobre aquelas mulheres que mais se distinguiram pela defesa dos direitos da mulher, e os teóricos mais importantes do anarquismo. Com o material recolhido em livros e na internet também podemos editar policopiada uma monografia ao redor do tema.

Desenhar um grande mural a colocar na parede de cada uma das aulas, no que se destaquem aquelas frases, fragmentos e pequenos textos sobre as teorias anarquistas. Podemos fazer também um debate-papo entre alunos e professores ao redor do texto de Luther Blissett que a seguir coloco: “Os escravos do século XXI não precisam ser caçados, transportados e leiloados através de complexas e problemáticas redes comerciais de corpos humanos. Existe um monte deles formando filas e implorando por uma oportunidade de trocar suas vidas por um salário de miséria. O “desenvolvimento” capitalista alcançou um tal nível de sofisticação e crueldade que a maioria das pessoas no mundo tem de competir para serem exploradas, prostituídas ou escravizadas.”

NOTA:

Na série “As Aulas no Cinema” publiquei antes já vários depoimentos dedicados ao Dia da República (14 de abril), que podem ser olhados entrando nas seguintes hiperligações:

Wael Al-Dahdouh, Pablo González, Nilufar Hamedi e Elahe Mohammadi e Fran Sevilla, candidaturas ao XX Prémio de jornalismo José Couso

A república dos sonhos já tem a sua Unidade Didática

Almôndegas de tofu

Uma esquina e muitas vozes

Portugalego, nova digressão do poeta Juan Carballo

234 estudantes da IES Concepción Arenal de Ferrol começam a falar galego

Wael Al-Dahdouh, Pablo González, Nilufar Hamedi e Elahe Mohammadi e Fran Sevilla, candidaturas ao XX Prémio de jornalismo José Couso

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