Do 9 ao 12 de março passados estivo connosco na Galiza a sociolinguista Ana Maria Carvalho, brasileira, sediada nos EUA há anos, professora catedrática no Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Arizona em Tucson, e especialista no português em contato, particularmente na situação do português uruguaio (em diante, PU), variedade em contato com o espanhol falada na fronteira norte do Uruguai com o Brasil. Recentemente Ana Carvalho realizou o documentário sociolinguístico Vozes das Margens (2024) sobre as populações falantes de PU. Professorado da Universidade da Corunha e da Universidade de Santiago de Compostela, assim como a Agrupação Cultural Alexandre Bóveda da Corunha, tivemos a sorte de poder convidá-la para que nos falasse do PU e apresentasse integralmente o seu magnífico documentário — eticamente democrático, academicamente rigoroso, humanamente emotivo — que está“Dedicado a todos os falantes de línguas minoritarizadas, em celebração a sua resistência”. Perguntamos-lhe sobre a sua pesquisa nos ocos da sua ocupada agenda.
CAC: É um prazer ter-te de novo na Galiza, Ana. Deixa que te atue (tratar com tu), mas receberemos o teu voceamento (você brasileiro) com a mesma familiariedade do nosso tu. A vez anterior foi a tua visita também à Faculdade de Filologia da Universidade da Corunha em novembro de 2009. Aqui já choveu, sociolinguisticamente falando. Gostaríamos de referir-nos a isto mais adiante. Mas, antes, conta-nos, por favor, sobre o outro lado do oceano. Tu és de Bauru, no interior de São Paulo, isto é, não perto da fronteira uruguaia. Falas também espanhol e inglês. Como diria de brincadeira o nosso comum professor em Berkeley (embora não coincidíssemos nas épocas), Milton Azevedo, não só és poliglota mas é que também falas vários idiomas. Como surgiu o teu interesse polo PU? Foi resultado do teu interesse polo espanhol? Uma visita? Ou não concordavas como se estava a tratar academicamente o tema e quiseste, na melhor tradição científica, criar novo saber?
AMC: Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade de ‘conversarmos’ por aqui. A situação do galego em geral, e o seu trabalho em específico, sempre inspiraram a minha pesquisa sobre o português no Uruguai.
Sobre o meu interesse pelo PU: No terceiro ano de doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, procurava um tema para desenvolver a tese de doutorado quando Milton Azevedo, quem você menciona, me deu um panfleto que anunciava uma bolsa de viagem para pesquisa na América Latina e me disse: “por que você não vai ao Uruguai para ver o que realmente acontece lá?”. Como o que se havia publicado até então sobre o tema era pouco e se baseava na dialetologia tradicional, deixando muitas perguntas em aberto para serem respondidas nos moldes da sociolinguística contemporânea, imediatamente segui o conselho de Milton e solicitei a bolsa. A ideia era perfeita, visto que eu havia estudado linguística portuguesa e espanhola, e me interessava sobretudo a sociolinguística das línguas em contato. Meu pedido de bolsa foi aceito e alguns meses depois parti para a fronteira do Uruguai com o Brasil sem nunca haver feito um curso de metodologia de pesquisa de campo antes. Mas fui bem acompanhada com os livros de William Labov (Sociolinguistic Patterns, 1972), de Joshua Fishman (Bilingualism in the Barrio, 1971), de Susan Gal (Language Shift: Social determinants of linguistic change in bilingual Austria, 1979), de John Gumperz (Language and Social Identity, 1983), além de uma cópia do artigo seminal de Charles Ferguson “Diglossia” (1959). Felizmente naquela época não havia essa abundância de publicações digitais, e pude usar essas leituras como guias metodológicos durante os seis meses de coleta de dados.
CAC: “Português uruguaio”, “português de Uruguai”, “portunhol”, “fronteiriço”. Estas foram e são algumas (de)nominações do que estudas… No teu trabalho usas a primeira denominação. O que há num glotónimo, no nome duma língua ou variedade? É o “português uruguaio” um objeto científico diferente do “fronteiriço”? Utilizas ou utilizarias o mesmo formato de etiqueta (nome + adjetivo de lugar) para todas as variedades do português em contato no mundo? (em Goa, Angola, Timor Lorosae, a Galiza…)?
AMC: Começando a responder a última pergunta, sim, utilizo “português uruguaio” como os especialistas em outras variedades usam o mesmo formato para designar o objeto de seus estudos (português moçambicano, angolano, lusitano, etc.). Esse tem sido um dos aspectos mais controversiais do meu trabalho, e pelo qual tenho recebido algumas críticas. Entendo que do ponto de vista antropológico, devemos, e o faço, respeitar as escolhas que as comunidades fazem de usar o termo que elegem para designar a variedade que falam. Nas comunidades do norte do Uruguai por exemplo, o PU é chamado às vezes de “brasilero”, às vezes “baiano”, às vezes “portunhol”. Do ponto de vista linguístico, no entanto, temo que estaríamos cometendo um erro se usarmos um termo como “portunhol”, que dá a impressão de nem um nem outro, de um semilingualismo, de uma mistura indiscriminada, já que os trabalhos variacionistas mostram integridade estrutural do PU. Claro que parte integral do PU, como de todo dialeto falado por bilingues, ou seja, em contato com outra língua, é a presença constante de empréstimos lexicais, alternância de línguas ou code-switching, e convergências gramaticais esporádicas. No entanto, a estrutura sintática, o inventário fonológico, a morfologia flexional, seguem as regras do português. Algo parecido se dá no francês canadense ou o espanhol norte-americano. São variedades em contato, mas faladas por bilingues, não por pessoas que usam uma mistura indiscriminada. Usar “portunhol” em trabalhos científicos (de linguística) seria, no meu entender, perpetuar o estereótipo de ‘nem um nem outro’, e com os dados que conheço, não poderia fazê-lo.
Nas comunidades do norte do Uruguai por exemplo, o PU é chamado às vezes de “brasilero”, às vezes “baiano”, às vezes “portunhol”. Do ponto de vista linguístico, no entanto, temo que estaríamos cometendo um erro se usarmos um termo como “portunhol”, que dá a impressão de nem um nem outro, de um semilingualismo, de uma mistura indiscriminada, já que os trabalhos variacionistas mostram integridade estrutural do PU.
CAC: Gostaríamos de ligar três questões: línguas, redes e prestígio. No teu trabalho abordas também como as línguas se distribuem polas redes sociais face-a-face: redes rurais frente a urbanas, por exemplo. O PU é fundamentalmente rural, não é?, embora se fale também em centros urbanos como Rivera. Se esse português está conotado negativamente por (a) ser minoritarizado num país hispanofalante; e (b) não ser português brasileiro próprio, que é a sua base, então como é que se mantivo durante séculos? Porque não se perdeu? Possui algo do que o recentemente falecido Labov cunhara, com sucesso, como “prestígio encoberto”?
AMC: Sim, é exatamente devido ao seu forte valor identitário, seu prestígio encoberto, que o PU continua sendo usado apesar de falta de prestígio explícito, de discriminação linguística, e de políticas linguísticas que tentaram eliminá-lo. É a língua do bairro, da família, das relações íntimas, e é exatamente por essa função identitária que sobrevive.
É mais presente no campo, como você diz, onde se usa muito menos o espanhol. Na cidade sobrevive nas camadas de menos renda. Em ambos os casos, é transmitido pelas famílias, é o falado nos lares.
CAC: Quando na U. da Corunha lemos a tua pesquisa sobre o PU na matéria Contato de Línguas do Mestrado Interuniversitário em Linguística Aplicada surge a questão da mobilidade social a meio da língua, isto é, em que medida o uso duma dada variedade é um obstáculo ou uma vantagem para aceder aos recursos materiais distribuídos diferencialmente. É o uso de PU um obstáculo ou uma vantagem para essa mobilidade? Ou depende de para que? Ou depende de para quem?
AMC: O PU tem valor afetivo, mas não tem valor capital. As variedades monolingues do português e do espanhol sim, têm capital simbólico, mas o PU não, e pode inclusive ser um empecilho à mobilidade social. No documentário Vozes das Margens há várias narrativas sobre discriminação linguística sofrida pelos fronteiriços que vão à capital, Montevideo, pela sua maneira de falar. Não ficaria surpresa se ouvisse que perderam oportunidades importantes na economia urbana devido a seu sotaque.
CAC: Toquemos agora a questão das ideologias linguísticas relacionadas com as identidades. Em que medida constroem as populações falantes de PU a diferença da sua fala como um recurso identitário? Isto é, a fala é sempre um diacrítico de identidade, mas, que sentido tem esta identidade para essa comunidade de fala? “Regional” uruguaia? (as aspas são porque não sei se deveríamos assumir que “regional” significa o mesmo aqui e lá, na Europa e em Latinoamérica). Ou é o PU diacrítico dum tipo de auto-identificação suscetível de chegar a ser “nacional”?
AMC: Acredito que o PU é passado de geração a geração como qualquer outra língua comunitária. Ou seja, fala-se português em casa porque é o que se faz. Agora, como é uma língua minoritarizada rodeada de uma outra língua, nacional e prestigiosa, o espanhol, o PU inevitavelmente assume um papel de identidade regional. O documentário mostra também esse aspecto do PU de maneira explícita. Tenho um trabalho com uma colega, por exemplo, que mostra como o PU pode ser usado para expressar ironia, sarcasmo, e humor em casos de code-switching. Muda-se do espanhol ao PU para marcar a mudança de um discurso sério a um discurso humorístico. Isso é possível graças à relação indexical que há entre o PU e a comunidade local.
Tenho um trabalho com uma colega, por exemplo, que mostra como o PU pode ser usado para expressar ironia, sarcasmo, e humor em casos de code-switching. Muda-se do espanhol ao PU para marcar a mudança de um discurso sério a um discurso humorístico.
CAC: Por último, dizíamos ao começo que na Galiza choveu muito sociolinguisticamente desde a tua anterior visita. Segundo dados dum recente inquérito periódico (2023) do Instituto Galego de Estatística, por primeira vez na história, este nosso português da Galiza que também chamamos de “galego” está a falar-se menos quantitativamente do que o espanhol; 45,51% das pessoas respondentes declaram falar “sempre galego” ou “mais galego do que espanhol”, frente a 52,94% que falariam “mais espanhol do que galego”. E os dados por faixas etárias patenteiam claramente esta perda intergeracional do português galego. Está a perder-se também o PU?
AMC: Sim, infelizmente. O documentário deixa também claro que há uma ruptura de transmissão intergeracional do PU, principalmente nas cidades e nas classes médias. Não há dados sistemáticos como há na Galiza, mas fiz uma pequena quantificação em 2010 que apontava nessa direção, e venho confirmando essa tendência desde então nas minhas observações.
CAC: Muito obrigad@s de novo, Ana. Esperamos ter sido praticantes daquele dictum dum dos participantes do teu documentário que, nos dizias, resumia verdadeiramente para ti o sentido tanto dessa obra quanto da pesquisa sociolinguística: aprendermos a escutar, “ser bons ouvidores”.
AMC: É eu que agradeço!