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Xandra R. Grey e Igor Lugris: “Haroldo dos Santos deixara a Antologia muito bem estruturada e organizada, mas não completamente fechada”

A Através editora vem de publicar recentemente, dentro da sua coleção “Através das letras”, a antologia de traduções de Haroldo dos Santos. Uma obra começada polo próprio Haroldo e que o seu falecimento deixou inacabada.
A Fundação Haroldo dos Santos em parceria com o Instituto Gallaecia de Altos Estudos Culturais, decidiram completar a obra e encomendaram essa responsabilidade a Xandra R. Grey, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, e a Igor Lugris, membro de dito Instituto. O resultado é “Livro alheio. Antologia de traduções de Haroldo dos Santos”.
Sobre este livro e outros temas conversamos por videoconferência com Xandra (de percurso em algum lugar da Ásia por motivos profissionais) e Igor (que reside há anos no Bierzo).

O livro abre-se com duas citações, uma de Bernardo Atxaga e outra de Lavinia Itzá que giram ao redor da escrita e da autoria. Foram escolhidas polo próprio Haroldo ou é decisão vossa a sua inclusão?
(Ambos duvidam para responder. Finalmente Xandra começa a falar. À medida que avança a entrevista, vão-se cedendo a palavra quase sem necessidade de gestos nem olhares).

Xandra: Bom, responderei eu, mas o certo é que acho que os dous íamos dizer o mesmo. Haroldo já escolhera os fragmentos para introduzir a sua antologia. Polo que podemos saber dos seus manuscritos e da preparação do livro que ele iniciou, ambos os textos lhe pareceram apropriados. Sabemos que leu diversas obras de Atxaga, porque fazem parte da sua biblioteca: alguns deles traduzidos para o português, mas deste concretamente tinha uma edição galega que apreciava especialmente, pois fora-lhe enviada polo próprio autor. Com certeza, incluir um texto duma edição galega revela-se coerente com o seu pensamento e a sua defesa da unidade linguístico-cultural galego-portuguesa.

Igor: Não só isso: no tomo três desta Antologia, que recolhe o estudo e a análise da sua teoria da tradução, Haroldo insiste na importância de completar o mapa da lusofonia com a inclusão da Galiza. É assim que nas suas escassas, mas frutíferas, visitas à nossa terra, sempre visitava diversas livrarias para conhecer em primeira mão a produção literária mais recente. Para além disto, a citação de Lavinia Itzá era quase uma obriga para ele, pois lembrava a satisfação de ter sido reconhecido pola autora como um dos melhores tradutores da sua obra, de tal forma que o seu terceiro romance (publicado em 2002 no Brasil) continha uma entranhável dedicatória ao tradutor. É por isto que, desde o começo do nosso trabalho, tanto a Xandra como eu tivemos claro que era necessário manter ambas as citações e que as leitoras e leitores começassem o livro tal e como Haroldo tinha pensado. Ainda duvidamos sobre incluir outros fragmentos, decididos já por nós, mas finalmente rejeitamos a ideia.

Igor Lugris: Haroldo insiste na importância de completar o mapa da lusofonia com a inclusão da Galiza. É assim que nas suas escassas, mas frutíferas, visitas à nossa terra, sempre visitava diversas livrarias para conhecer em primeira mão a produção literária mais recente.

Xandra: Com efeito. Em algum momento acordamos incluir outros dous fragmentos, proposto um por cada um de nós, mas nos últimos momentos, quando estava já todo o livro pronto quase para entrar em máquinas, eliminamos a nossa proposta. Eu escolhera um fragmento de um texto de Enheduanna: Você está em todos as nossas línguas / Você dirige a voz de quem fala a mão de quem escreve o ouvido de quem ouve / Quem se atreve a dizer que te entende quando fala conosco? Era uma forma de conectar a obra do Haroldo com o começo inicial da tradição literária, quando menos com o momento que hoje podemos conhecer como o início da literatura, a voz de uma poeta que, como Haroldo, também refletia sobre os enigmas da linguagem humana. Igor penso que propunha um texto mais moderno, mais contemporâneo, não é?

Igor: Pois sim, eu propunha um fragmento de uma canção de Leonard Cohen, Dance me to the end of love, um autor admirado por Haroldo dos Santos e de quem eu também gosto: “Deixe-me ver a sua beleza quando as testemunhas se forem / Mostre-me lentamente o que só eu conheço os limites”. Mas estou plenamente convencido de que foi uma decisão acertada eliminar ambas as citações. Finalmente, o livro é de Haroldo e das autoras e autores traduzidos, não nosso. Nós somos mais nada que as quatro mãos que se encarregaram de terminar de dar-lhe forma e facilitar a sua publicação.

Sobre isso mesmo queríamos perguntar-vos. Qual foi finalmente o vosso papel neste livro? Que foi o que encontrastedes ao começo do vosso trabalho e qual foi a vossa organização para realizar esta tarefa? Ficades contentes com o resultado?
Igor: A verdade é que eu fiquei bem surpreendido quando me chamaram para acompanhar à Xandra nesta tarefa. Levava pouco tempo fazendo parte do Instituto Gallaecia, da sua seção de Literatura Contemporânea, e quase nem tivera tempo de pôr-me ao dia no seu funcionamento e organização. Eu conhecia a obra de Haroldo, com certeza, tanto o seu trabalho de tradutor como alguns dos seus livros de criação, evidentemente, mas não tinha um achegamento académico à sua figura e à sua obra, para além do pouco que podia ter visto na minha época de estudante. Mas a Direção do Instituto Gallaecia considerou que eu era a pessoa apropriada, e, após o assombro e dúvidas iniciais, decidi afrontar esta tarefa com toda a responsabilidade e seriedade possível. Xandra, que começara o trabalho uns meses antes, seguindo as indicações da Fundação Haroldo dos Santos, foi fundamental para organizar e planificar o trabalho: ela sim tinha um conhecimento muito mais académico e profundo sobre o nosso autor, assim que todo resultou razoavelmente fácil.

Xandra: após o falecimento de Haroldo, em 2010, a sua Fundação, criada só dous ou três anos antes, assumiu o compromisso de publicar as obras que o autor não conseguira finalizar e sobre as quais mostrara publicamente seu desejo de serem publicadas. Algumas obras estavam praticamente finalizadas, faltando só o seu envio à imprensa, mas algumas outras, como esta que nos ocupa, tinham mais trabalho pendente e havia todo um percurso que ainda era necessário percorrer para finalizá-las e poder publicá-las. Eu já colaborara com Haroldo e com a sua Fundação em alguma ocasião, com motivo de algum congresso ou algum encontro literário ou académico sobre diversas questões. Quando contataram comigo para fazer-me carrego de finalizar a Antologia não hesitei: considerava-o quase uma obriga, uma forma de agradecer a Haroldo e à Fundação o seu apoio em anteriores momentos. O próprio Haroldo tinha já iniciado os contatos com o Instituto Gallaecia, e tanto eu como a Fundação rapidamente vimos que era necessária uma colaboração para afrontar com sucesso a decisão de publicar a Antologia. A partir desse momento, todo foi relativamente simples, ainda que tenha havido, evidentemente, dúvidas, dificuldades e complicações com as que não contávamos.

Igor: Haroldo dos Santos deixara a Antologia muito bem estruturada e organizada, mas não completamente fechada. Entre as maiores dificuldades que tivemos, foi decidir alguns dos fragmentos traduzidos a publicar: Haroldo deixara quase todos eles perfeitamente definidos e identificados, mas para alguns deles, pouco mais de uma dúzia, se não lembro mal, apareciam dous, três e, em ocasiões, até quatro possíveis fragmentos, da mesma obra, para escolher qual publicar. Tivemos que revisar em profundidade as suas notas, o seu trabalho teórico, a suas propostas concretas, para decidirmos qual era o fragmento que devia ser publicado, tendo em conta também o conjunto da Antologia e como uns textos conectam, complementam ou se confrontam com outros. Para tomar algumas decisões tivemos que revisar em profundidade os seus últimos textos teóricos sobre tradução, criação e transcriação.

Xandra: Temos que saber que quando Haroldo começa a trabalhar na redação desta Antologia, realiza uma escolha inicial de mais de 100 livros de perto de 80 autoras e autores, todos eles traduzidos ou transcriados por ele. Entre as decisões que toma antes do seu falecimento está a de não publicar mais de um fragmento por autor ou autora, mesmo sendo de livros distintos. Isso já significou reduzir consideravelmente o rol de títulos escolhidos. Ainda posteriormente reduz o número, por diversos motivos que explica ele mesmo no primeiro capítulo do terceiro tomo, até menos de 70. Nós trabalhamos já sobre essa lista final, que Haroldo considera que são representativos do seu trabalho como tradutor, mas também resultam úteis para compreender as suas preocupações literárias, linguísticas e, em não pouco casos, intelectuais.

Xandra R. Grey: Temos que saber que quando Haroldo começa a trabalhar na redação desta Antologia, realiza uma escolha inicial de mais de 100 livros de perto de 80 autoras e autores, todos eles traduzidos ou transcriados por ele. Entre as decisões que toma antes do seu falecimento está a de não publicar mais de um fragmento por autor ou autora, mesmo sendo de livros distintos.

Igor: Finalmente, o resultado é uma obra literária em que se amalgamam e entremesclam as obras de múltiplos autores e autoras, e que, entre outras cousas, pretende debater sobre o conceito de autoria e de criação, recriação, plágio, fontes literárias… jogando, entre outras cousas, com conceitos como a polifonia, a intertextualidade ou as isotopias. Haroldo era bem consciente do caráter não usual desta obra: até onde nós sabemos e pudemos indagar, não existem livros similares na nossa contorna linguístico-cultural. O trabalho de tradução, especialmente de obras literárias, não tem merecido normalmente um destaque semelhante. Mas o certo é que nesta ocasião à faceta de tradutor une-se a de criador, ou transcriador. Isto, não há dúvida, oferece uma dimensão diferente.

Essa é uma das questões fulcrais deste livro. Quanto dos fragmentos publicados é obra das suas respetivas autoras e autores e quanto é criação, ou transcriação, de Haroldo?

Igor Lugris | Distrito Xermar

Xandra: Não há uma resposta simples para essa pergunta. Haroldo sempre procurou ser muito respeitoso e honrado com as autoras e autores a traduzir e, especialmente, com os seus textos. O dicionário diz que o respeito é o sentimento que nos impede de fazer ou dizer cousas desagradáveis a alguém, e a honra é o sentimento do dever da dignidade de da justiça. E, com certeza, essas foram sempre ideias-força, palavras de ordem poderíamos dizer, que Haroldo sempre teve presentes, em todas as facetas da sua vida. Antes de iniciar um trabalho de tradução, e quando a autora ou autor estava ainda vivo, ou estavam ainda vivas as pessoas mais próximas que os conheceram, sempre procurou falar com elas e explicar como era que ele entendia o processo de tradução. E nunca, que nós saibamos, teve um desencontro, uma discussão nem uma polémica com elas por esse trabalho. Certo que em ocasiões houve críticos ou académicos que discordavam do seu trabalho, ou mostravam publicamente o seu desacordo com alguma das suas traduções; mas isto Haroldo sempre o entendeu como uma questão natural e normal, mesmo positiva em algum momento. Dito isto, é que podemos dizer com claridade que no trabalho de Haroldo o texto original e o texto traduzido sempre são um mesmo texto e dous textos diferentes. Ele levava até as últimas consequências a convicção, recolhida de Alberte Fabri (como explicamos na introdução do livro), de que as obras artísticas não significam, mas são.

Xandra R. Grey: no trabalho de Haroldo o texto original e o texto traduzido sempre são um mesmo texto e dous textos diferentes. Ele levava até as últimas consequências a convicção, recolhida de Alberte Fabri (como explicamos na introdução do livro), de que as obras artísticas não significam, mas são.

Igor: Com efeito. Haroldo defende que é impossível na literatura separar significado e significante, continente e conteúdo, pois são completamente independentes e absolutamente dependentes. A informação estética, dirá em vários dos seus textos teóricos, é na obra literária igual de importante e primordial que a informação semântica, e, insiste, a informação estética é intraduzível: unicamente é que pode ser transcriada. A transcriação é para Haroldo um exercício que deixa fora elementos chave na criação, como pode ser a procura da originalidade ou as marcas (léxicas, sintáticas, mesmo semânticas) que refletem uma voz pessoal e distinguível. Marcava uma fina pero sólida linha entre a criação e a transcriação: nos seus textos próprios, procurava a sua voz, o seu estilo, mas nos trabalhos de transcriação procurava “ser” um outro autor, o mais próximo possível do autor ou autora original. Em mais de uma oportunidade explicou que a sua pretensão era “ocupar” a personalidade do autor original, mas transmutado em falante de português. Não sempre lhe resultou fácil. Olhemos para o fragmento de Pierre Menard recolhido na Antologia: “A originalidade é impossível / e só possível por ser / com certeza / mentira”. Toda uma declaração de intenções por parte de Haroldo.

Xandra: Podemo-lo ver, por exemplo, com um dos textos da Antologia. O texto de Anne Mary Morrisson (que Haroldo traduz em 1977), é deliberadamente confuso e incompreensível no original inglês. A estrofe final é especialmente obscura, e Haroldo, que não gostava especialmente do hermetismo ininteligível, opta por manter essa dificuldade: qual é a diferença entre ser incompreendido e ser não compreendido? O poema original vai oscilando entre “misinterpret” e “misunderstood” e Haroldo decide complicar deliberadamente o texto, para achegar-se à pretensão da autora. A tradução final foi aplaudida pola própria Anne Mary Morrison, que uns anos mais tarde modificará o seu texto para recolher em parte a interpretação de Haroldo.

Qual é a vossa opinião sobre o resultado da Antologia? Achades que Haroldo estaria satisfeito com o “Livro alheio”?
Igor: Eu penso que sim, estou convencido. Todo o tempo que Xandra e eu dedicamos a esta edição serviu para conhecermos em profundidade a Haroldo: como tradutor, como autor, como artista, como pessoa… Em algum momento de todo este processo, mesmo fazíamos piadas sobre que realmente estávamos a nos converter em uma só pessoa: por momentos, parecia que Haroldo, Xandra e eu éramos um só, uma pessoa diferente, independente e consciente da sua existência. E isso foi porque conseguimos introduzir-nos dentro da obra de Haroldo. Mesmo poderíamos dizer que dentro de Haroldo. Chegamos a reproduzir a sua técnica de trabalho e realmente, como ele fazia, “ocupamos” a sua personalidade.

Igor Lugris: Todo o tempo que Xandra e eu dedicamos a esta edição serviu para conhecermos em profundidade a Haroldo: como tradutor, como autor, como artista, como pessoa… Em algum momento de todo este processo, mesmo fazíamos piadas sobre que realmente estávamos a nos converter em uma só pessoa.

Xandra: Estou convencida de que tanto Igor como eu tivemos realmente problemas em algum momento para distinguir as nossas personalidades: é por isso mesmo que decidimos assinar o trabalho conjuntamente e não distinguir a parte de um da parte da outra. Todo foi feito em conjunto, revisado, repassado, corrigido, modificado… até chegarmos a ser uma única voz com quatro mãos. Direi mais: até chegar a ser uma única voz com seis mãos, de contarmos também com as de Haroldo. É por isso que fechamos assim a nossa introdução, convencidos de ter elaborado entre os três um livro de livros, um poema de poemas, uma voz de vozes.

A tal ponto chega essa compenetração das diferentes vozes que mesmo alguma crítica (por exemplo a publicada no mês passado na edição brasileira da revista Science) já tem assinalado que o livro, apesar da sua diversidade e heterogeneidade, ou se calhar graças a ela, parece responder á vontade de um único autor. Considerades que “Livro alheio” pode ser lido assim, como um texto unificado por um fio condutor, por trás do qual houver uma única autoria individual?
Xandra: Haroldo estaria bem orgulhoso de ter lido essa crítica. Tanto na sua “Cartografia Universal da Linguagem” como, especialmente, na “Aproximação às gramáticas da modernidade” defende a ideia (que parcialmente recolhe a citação da Lavinia Itzá, da qual já falamos) de que toda a literatura poder ser lida como um único texto em que os livros todos se misturam, se interrelacionam, vão indo e vindo polos mesmos caminhos até formar o que ele chamava de Grande Livro. Tendo presente a sua crítica à ideia da originalidade e ao conceito da autoria, é que podemos compreender qual é o motivo, ou um dos motivos, que o levam a projetar e levar adiante um livro destas características.
Igor: Para nós também foi esse um dos motivos que nos moveu no nosso trabalho. Mostrar que, efetivamente, era possível escrever um livro com a soma dos livros de diversas autoras e autores. Um dos autores antologiados, R. G. Burnout, que teve acesso ao livro antes de ser publicado, comentava-me em um correio que ele gostaria de ter escrito este livro, ele só. Explicava que gostaria de ter imaginado todos os livros que fazem parte da antologia e publicar fragmentos deles, porque também achava que era um texto sólido, maciço. Certamente, conhecendo outras obras de Haroldo dos Santos, bem poderia ter sido um livro de criação onde ter inventado autoras, autores, livros, referências… Como já temos explicado em alguma apresentação, este é um texto que mostra que a Ciência da Literatura, a Literaturwissenschaft, nem é sempre assim tão científica, e que a Literatura nem sempre é assim tão literária. Mais bem, amalgamam-se em muitas mais oportunidades e situações das que poda parecer.

Seguindo com o fio do que estades a comentar, quais considerades que foram as razões e causas que levaram à escolha das autoras e autores? Que podedes explicar a este respeito?
Xandra: Acho que as razões são múltiplas e diversas. Em primeiro lugar, deviam ter textos que se acomodaram às pretensões de Haroldo. Ele não queria uma antologia de textos clássicos ou canónicos. Antes ao contrário, procurava os textos necessários para mostrar a potencialidade da sua teoria da tradução e a transcriação. E para isso o importante não era ter uma lista de autoras e autores importantes, famosos ou com sucesso. O resultado é essa amálgama de apelidos reconhecíveis (Cortázar, Woolf, Bolaño, Michel, Sartre, Mistral, Gaurem…), e outros que serão um descobrimento para muitos leitores e leitoras (Reyes Heredia, Grünen Danz, Benjamin, Trilore, Marinelli, Descotte…). O fundamental eram os textos, não os nomes. E os textos, como explicamos antes, são textos que permitem serem lidos em torção, helicoidalmente, todos eles giram á volta de um eixo. E esse eixo, para além do seu significado objetivo, é a posta em questão de alguns conceitos fortemente assentados na literatura e a crítica literária atual: a existência dos géneros, os seus limites, a possibilidade de abolir realmente os géneros e apagar as suas fronteiras. E a todo isso ainda se soma a construção de um discurso que unifica os textos: há uma voz poética que evolui desde os textos iniciais até os últimos. Os primeiros duvidam da capacidade de expressar com palavras, porque o poeta nem sempre sabe para que ou porque é que escreve: sabe que não cria a realidade, mas é consciente de que a realidade nem pode existir se não é escrita. São vários os textos que falam disto: “O silencio que transita entre todas e cada uma e nenhuma das nossas palavras”, dirá por exemplo o texto da J. L. Kristeva, tirado da sua “Uma história para a linguagem”. Mas os últimos textos são os de uma voz que já chegou a algumas conclusões sobre a sua tarefa: “Escrever é lançar-se ao vazio”, dirá Margarita Malho, ou a mensagem de Maiakovski, “o que somos nós, mas marceneiros/ que trabalham a madeira da cabeça humana?”. Há um percurso nas páginas do livro que conclui perfeitamente com o fragmento escolhido da Pernanda Fessoa: “Uma pessoa que escreve (…) é uma fingidora que finge tão completamente que chega a fingir ser plagiadora daquilo que realmente cria”. Esta Antologia de traduções não é poesia? Pois então não sei que é.

Igor: Consegue Haroldo abolir os géneros? Não somos nós quem temos que responder essa pergunta, mas essa foi a sua, e a nossa, intenção. Na semana passada, o Luiz Almeida, do JdL, perguntava-nos se este era um livro académico ou um livro de literatura. Não temos uma resposta clara: eu gosto de pensar que é um livro de poesia, porque a poesia foi, finalmente, o motor que moveu todo o trabalho intelectual e académico de Haroldo. Uma das frases mais famosas do Haroldo, e que mais vimos repetindo nos últimos meses para falar deste livro, é a de que não se predica a transgressão, pratica-se. Com este livro, Haroldo praticou a transgressão, é evidente. Mas também a predicou: todo o livro pode ser assim entendido como um exercício de transgressão. Que é verdade e que é ficção? Que é original e que é cópia? Que é criação e que é reprodução? Os leitores e as leitoras terão que decidir.

Igor Lugris: Uma das frases mais famosas do Haroldo, e que mais vimos repetindo nos últimos meses para falar deste livro, é a de que não se predica a transgressão, pratica-se. Com este livro, Haroldo praticou a transgressão, é evidente.

Para terminar, que aporta ao livro que tenha sido editado na Galiza, por uma editora galega como Através? Como encaixa isso no desenho global da Antologia?
Xandra: Livro alheio não podia ter tido outra editora que não fosse galega. Explicamos na introdução que isto colma uma das aspirações do próprio Haroldo, que considerava que a Galiza faz parte da lusofonia. Os seus contactos com a literatura e a intelectualidade galega de 1971 em adiante levaram-no a defender as posturas de unidade linguística do galego-português, mas sempre respeitando o que ele chamava de “peculiaridade e idiossincrasias”. A decisão da Fundação Haroldo de Campos de colaborar com o Instituto Gallaecia e promover a edição na Galiza da antologia é, sem nenhuma dúvida, um grande acerto. Concordante com isto, o fragmento de Benjamin escolhido: “A língua é uma revelação da nossa mais íntima essência e do elo psíquico que nos une a nós próprios e aos nossos semelhantes”.

Igor: É necessário também valorar a decisão de Através de publicar um livro destas características, incomum e atípico. Um livro ao que é preciso achegar-se deixando longe todo o tipo de precauções, preconceitos e prevenções. Como faz Haroldo dizer a Goethe n’O Aprendiz de feiticeiro, “Para além da lógica / da imaginação / da inspiração/ e da intuição / está a poesia / Único conhecimento possível / Única realidade compreensível”.

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