Em 2021 fijo 40 anos desde que o galego passou a ser considerado língua oficial na Galiza, passando a ter um status legal que lhe permitiria sair dos espaços informais e íntimos aos que fora relegado pola ditadura franquista. Para analisarmos este período, estivemos a realizar ao longo de todo 2021 umha série de entrevistas a diferentes agentes. Agora que já estamos em 2022, queremos continuar a refletir sobre isto, mas com foco num âmbito em particular de importância estratégica: o ensino.
Hoje entrevistamos a professora de História no Ensino Secundário, Susana Álvarez.
Que avaliação fás dos resultados do ensino do galego após 40 anos como matéria troncal?
Desconheço as cifras oficiais em relação aos resultados da matéria; portanto não posso responder esta pergunta a nível quantitativo. Só posso refletir sobre a minha perceção do seu impacto social e do clima linguístico nas aulas de História, que são as que eu ministro.
Penso que a cooficialidade das línguas na Galiza foi positiva, mas criou a ilusão de que o castelhano e o galego poderiam estar em pé de igualdade e sabemos que na prática diária isto não é bem assim. Nunca foi. Quer por desleixo da administração quer por uma focagem autonomista da língua -alheia à Lusofonia-, o galego não tirou proveito da sua potencial utilidade nem conseguiu o prestígio social desejado. Hoje, na Galiza, são outras as línguas que abrem portas para o mundo e, mesmo entre nós, a língua perde os seus traços genuínos e a sua vitalidade -por causa da pressão do castelhano, porque, afinal, a maior parte do estímulo linguístico que recebemos é nessa língua. Para mim, a presença do ensino de/em língua galega na escola pública conseguiu abrir portas para uma alfabetização generalizada e para naturalizar a sua presença além do âmbito familiar. O ensino é poderoso mas… é suficiente? Entendo eu que o objetivo era reforçar e capacitar falantes mas, considerando o recuo nas camadas sociais mais novas e o empobrecimento da linguagem, os resultados estão longe de serem os esperados. O efeito foi o contrário, mas colocar a responsabilidade toda sobre uma determinada matéria parece-me injusto.
O ambiente escolar é sensível a estas tensões. É difícil ministrar uma matéria não linguística em galego porque para o alunado a preocupação com a língua nestas disciplinas é secundária, mesmo sabendo que a correção é valorizada.
É difícil ministrar uma matéria não linguística em galego porque para o alunado a preocupação com a língua nestas disciplinas é secundária, mesmo sabendo que a correção é valorizada.
Se o ambiente na sala é galegofalante, a comunicação oral ainda se mantém aceitável; cheia dos castelhanismos mais populares, mas ainda fluente e com certos traços fonéticos do lugar. Porém, a pergunta “há que o fazer em galego?” começa a ser recorrente, mesmo em contextos onde o galego está presente. Nas aulas onde o galego não é a língua da turma, o alunado tem de fazer um esforço adicional tanto na fala quanto na escrita e, em 50 minutos de sessão, nem sempre é galego o que falam ou escrevem. O sobre-esforço não ganha simpatia, ainda menos na adolescência. Infelizmente, este é o cenário que mais avançou nas zonas urbanas nos últimos tempos, assim como o empobrecimento da qualidade da língua usada nos centros educativos. Isto é um bom termómetro para saber qual é a língua de prestígio lá dentro e qual é a realidade linguística fora. Eu sinto que isto é bastante naturalizado… e, a meu ver, não é positivo para a saúde do galego. Contudo, há bastante professorado amigo, só que, do meu ponto de vista, nós deveríamos ser as primeiras em aprimorar a língua em que falamos e escrevemos, seja esta qual for, para oferecermos, através do nosso trabalho, um modelo de correção linguística ao alunado. Para isto, apoiarmo-nos nos recursos da Lusofonia poderá ser um bom começo, sabendo que a esperança para corrigir este rumo da língua -se a houver- continua a estar (não apenas) na escola. Porfiar num galego isolado talvez não garanta o balanço atual ao cabo dos próximos 40 anos. É claro que sozinhas não podemos, nem na matéria de língua nem em qualquer outra.
E da presença do galego como língua veicular no ensino público?
Idealmente, o facto de termos o galego como língua veicular no ensino secundário permite fornecer ao alunado a possibilidade de aprender e criar conteúdos por si mesmo em certas áreas de conhecimento, embora o decreto do plurilinguismo de 2010 excluísse o galego, não por acaso, das matérias do âmbito científico, que são as que mais relevância social têm. Estas “subtilezas” têm um impacto na comunidade, não são inocentes. Contudo, ensinar e aprender em galego sempre vai ser positivo, porque contribui para valorizar a língua que muitas de nós usamos. E ainda, para a rapaziada, onde a transmissão intergeracional foi interrompida, talvez seja a sua única oportunidade para estar em contato com ela durante umas horas por dia, ainda que não seja menos certo que podem ser ambientes pouco recetivos. De certeza, estar presente na escola por si só não chega, pois a qualidade da língua veicular é também importante. Porém, não é aceitável perdermos espaço, muito menos nas etapas iniciais. Para mim, o galego ser veicular no ensino público é irrenunciável.
De certeza, estar presente na escola por si só não chega, pois a qualidade da língua veicular é também importante. Porém, não é aceitável perdermos espaço, muito menos nas etapas iniciais. Para mim, o galego ser veicular no ensino público é irrenunciável.
Achas que esta presença guarda relação com a sua presença como língua ambiental nos centros educativos?
Não acredito que haja uma relação direta, porque, se assim fosse, a recuperação da língua estaria no trilho certo, mas sabemos, com os dados na mão, que acontece precisamente o oposto. Mas estou convicta de que o galego como língua veicular reforça o desempenho do alunado galegofalante e faz parte da biografia de muitas neofalantes. Portanto, a escola é importante, mas não é definitiva. Concentrar nela o trabalho de recuperação da língua é mais uma expressão da sociedade acomodada em que vivemos, onde a escola pública funciona como fator corretor de tudo aquilo que nos preocupa ou queremos melhorar. A escola pública é apenas mais um agente social e não pode nem deve fazer isto por si só.
A minha experiência nos dous últimos centros de trabalho em que estive, sendo quase todo o alunado galegofalante e boa parte da paisagem escolar em galego, revela que a escola se limita a receber as dinâmicas sociais desenvolvidas fora dos centros nessa zona concreta. Tal é o que mais influi na língua ambiental de uma escola. Estou a me referir à língua das famílias, das amizades, à escolhida para as atividades dos tempos livres ou para a programação cultural e desportiva no concelho. Por outras palavras, a língua dos afetos e da espontaneidade, aquela da educação não formal. Ora bem, a escola não deve ser um instrumento de desgaleguização; polo contrário, deve servir como reforço e oferecer recursos para ajudar o alunado no seu crescimento, também no plano linguístico.
Pensas que deveria mudar alguma coisa no ensino da matéria de Língua Galega e Literatura?
Bom, não só na matéria de Língua Galega e Literatura. Provavelmente o ensino público requer uma avaliação geral para ser atualizado de vez, andar com os tempos e que a inovação pedagógica não fique apenas reduzida a projetos e escolas concretas. Não se trata simplesmente de trocar livros por computadores, mas também de refletir sobre a metodologia mais ajeitada e de transitar para uma aprendizagem baseada em competências e que integre conhecimentos. Pola parte que me toca, considerando que não sou professora desta área, acho que se a compreensão leitora e a comunicação ganhassem protagonismo na docência do galego e, no geral, na docência de línguas, isso seria benéfico para todas as demais matérias. Também, do meu ponto de vista, seria muito facilitador familiarizar o alunado com uma nova geografia da língua e visibilizar as duas propostas ortográficas que existem para escrevê-la, mesmo que continuássemos a trabalhar na norma da RAG. Estaríamos a abrir uma janela para o mundo a esta rapaziada!
Seria muito facilitador familiarizar o alunado com uma nova geografia da língua e visibilizar as duas propostas ortográficas que existem para escrevê-la, mesmo que continuássemos a trabalhar na norma da RAG. Estaríamos a abrir uma janela para o mundo a esta rapaziada!
Qual deve ser o papel do português no ensino? Ampliar a sua presença como segunda Língua Estrangeira? Ser lecionada dentro das aulas da matéria troncal de galego? Ambas?
Quem frequenta aulas de português com um mínimo de consciência linguística, experimenta uma melhoria no seu galego: castelhanismos fora, umas palavrinhas quase esquecidas aqui, um infinitivo flexionado ali, um elegante futuro do conjuntivo acolá… De certeza, a entrada do português no ensino havia ser um reforço para o professorado e o alunado galegofalante, e um estímulo para quem ainda não o é.
Do meu ponto de vista, faria todo o sentido aproximar-se do português na própria aula de galego, embora a complexidade do contexto linguístico em que vivemos pareça indicar que o mais sensato é apostar no português como “língua estrangeira”. Contudo, considero que na matéria de galego é possível desde já contribuir para ampliar a visão do alunado, encurtar distâncias e conceber-nos a nós próprios num quadro internacional no qual temos muito para oferecer. Conversarmos sobre isto na escola constituiria, aliás, um exercício de pensamento crítico, algo que também faz parte do programa educativo. Afinal, acho que ambas matérias tenderiam a se influenciar reciprocamente e o próprio alunado acabaria por tirar conclusões sobre a sua bagagem linguística, agora que o plurilinguismo, que veio para ficar, é uma mais-valia no incremento de competências.
Dito isto, desaprender nunca é fácil. Estou a pensar no próprio professorado, nas famílias, em quem deixou a escola há tempo… Após 40 anos a sermos educados para pensar que a nossa língua se circunscreve ao território galego, mudar esse esquema mental supõe, para muitas pessoas, o questionamento de certezas assumidas com a melhor das intenções. Todas nós temos resistência à mudança, mas o esforço de encarar a nossa língua numa perspetiva internacional é muito promissor para o conjunto da sociedade. De facto, penso que é a cousa mais responsável a fazer polas gerações vindouras, se quisermos ter qualquer hipótese de dar continuidade ao principal traço identitário que possuímos.
Para além disso, se a comunidade educativa se familiarizasse com a ortografia portuguesa -o que representa apenas uma pequena parte do esforço total- teria acesso automático a imensos recursos didáticos modernos e diversos, que escasseiam em galego da Galiza. Estou a lembrar agora mesmo as dificuldades das equipas de biblioteca escolar, que anualmente têm de atualizar os seus fundos com novos títulos relacionados com as distintas matérias, em galego, atrativos e ajustados ao nível da rapaziada. Equilibrar as percentagens de cada língua e tipo de bibliografia hoje é tarefa difícil. Num futuro próximo não teria que ser.
Igualmente, os recursos na Internet e o imenso material audiovisual disponível dariam uma ajuda para qualquer matéria, de modo a não ter que recorrer desnecessariamente a materiais em castelhano, que é uma inércia geral dentro e fora da escola. Procurar na Internet qualquer cousa obriga a traduzir para castelhano e a pesquisa é feita nessa língua.
Pensas que implementar linhas educativas diferenciadas (uma com imersão linguística em galego) poderia ser útil para o galego voltar aos pátios?
Hoje acredito que só havemos de ganhar falantes completas com imersão na escola -sempre que tivermos um ambiente propício fora dela, como já comentei numa resposta anterior. Neste sentido, considero que pode ser interessante essa linha nas primeiras etapas educativas, a coexistir com a escola convencional, porque é o momento perfeito para a consolidação da língua nas crianças. Penso que a linha com imersão haveria de ter uma certa procura, visto que atualmente, nesta faixa etária, a escola produz o efeito oposto e há famílias preocupadas com isto. Depois, reconheço que tenho dúvidas relativamente ao secundário, porque não tenho qualquer certeza de um modelo com linhas diferenciadas, similar ao basco, poder ter algum sucesso aqui. Talvez só contribuiria para alargar ainda mais o fosso entre galego e castelhano que existe entre a rapaziada.
Que papel atribuis ao modelo educativo inaugurado pelas escolas Semente?
Dói dizer isto, mas a escola pública não garante o ensino na língua materna de muitas crianças -quando a língua materna é o galego. Alguns dias de escolarização são suficientes para ver o que acontece. É por isso que hoje a Semente representa, para muitas pessoas, a única escola infantil e primária que garante um ensino de qualidade e inteiramente na nossa língua. Além disso, adota uma perspetiva internacional da língua e os conteúdos trabalhados nas aulas abordam questões do nosso tempo, como o ambientalismo, o feminismo, a participação cidadã… sempre partindo da realidade galega. Deste jeito, as crianças serão galegofalantes completas e conscientes. Este último aspeto é especialmente importante e faz a diferença. O esquema é fantástico.
A Semente representa, para muitas pessoas, a única escola infantil e primária que garante um ensino de qualidade e inteiramente na nossa língua. Além disso, adota uma perspetiva internacional da língua e os conteúdos trabalhados nas aulas abordam questões do nosso tempo, como o ambientalismo, o feminismo, a participação cidadã… sempre partindo da realidade galega.
Sem dúvida, o alunado da Semente vive num ambiente favorável tanto dentro quanto fora da escola, sem que isso signifique que o caminho seja sempre direito, mesmo para umas famílias tão participativas. Entendo que é um ambiente muito especial, se quadra complexo demais para poder ser replicado em todo o território. Apesar disso, o modelo continua a medrar noutras vilas galegas, porque novas famílias acreditam nele. Eu reconheço que tenho um fraquinho por esta escola.
Dito isto, considero que a Semente poderia servir de referência para a hipotética linha de imersão em galego nas etapas iniciais, de que falamos antes. Com certeza, a equipa que está por trás da Semente conta com uma valiosa experiência que poderia ser transferida para um projeto desta envergadura no ensino público.