Dentro da nossa série de artigos de “As Aulas no Cinema” estamos a dedicar vários depoimentos àquelas mulheres que no mundo lusófono destacaram em alguns campos da cultura, da ciência e do ensino. É verdade que são os campos da educação, a música, a canção e a literatura, aqueles onde dentro do mundo lusófono, têm destacado mais mulheres, no entanto, hoje trazemos à nossa seção uma grande geógrafa, investigadora muito importante das terras e gentes de muitos dos países que pertencem à Lusofonia, que também foi professora da Universidade Nova de Lisboa, e que, por sorte, com 95 anos, ainda vive no nosso país irmão. Por isto, dentro da série que estou a dedicar às mais importantes personalidades da Lusofonia, onde a nossa língua internacional tem uma presença destacada, e, por sorte, está presente em mais de doze países, sendo oficial em oito, dedico o presente depoimento, que faz o número 146 da série geral que iniciei com Sócrates, a uma magnífica geógrafa portuguesa, autora de numerosas publicações da sua especialidade, tanto artigos como livros monográficos, conhecida como Raquel Soeiro de Brito, nascida no ano 1925 em Assunção do concelho de Elvas, às portas de Olivença. Com este depoimento, a ela dedicado, completo o número trinta e quatro da série lusófona.
PEQUENA BIOGRAFIA
De nome completo Maria Raquel Viegas Soeiro de Brito, nasceu no ano 1925 na freguesia de Assunção, pertencente ao concelho português de Elvas, nas portas da famosa Olivença. Filha de Ernesto Alberto Soeiro de Brito, famoso capitão que formou parte do C. E. P. na França, combateu em Flandres e sobreviveu a La Lys. Também foram famosos o seu tio-avô Joaquim Mª Soeiro de Brito, a quem dedicaram em Caldas da Rainha uma rua, e o seu irmão Joaquim Baptista, capitão da Marinha Portuguesa, que com 91 anos faleceu em Lisboa em 3 de julho de 2012.
Destacada geógrafa, foi discípula do Professor Orlando Ribeiro e importante investigadora da chamada “Escola de Geografia de Lisboa”, jubilou-se em 1996 como Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa (UNL), sendo diretora do seu Departamento de Geografia e Planeamento Regional, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH). Atualmente é vice-presidenta da Academia de Marinha e, embora tenha uma idade muito avançada, mantém-se ligada à atividade científica.
Licenciada em 1948, assistente da FL/UL desde 1952, viria a doutorar-se em 1955 com a tese “A Ilha de S. Miguel. Estudo geográfico”, sendo ela a primeira mulher doutorada em Portugal e com apenas 28 anos
Licenciada em 1948, assistente da FL/UL desde 1952, viria a doutorar-se em 1955 com a tese “A Ilha de S. Miguel. Estudo geográfico”, sendo ela a primeira mulher doutorada em Portugal e com apenas 28 anos; mas não ficaria na Alma Mater por muitos anos, pois em 1960 transferiu-se para o então Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (atual Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da UL) e aí atingiu a cátedra em 1966. Em 1977 passou para a UNL, onde seria uma das fundadoras da FCSH e do respetivo Departamento de Geografia e Planeamento Regional. Ao reformar-se em1996, exercia nesta faculdade o cargo de Subdiretora. Autora de obra extensa, é membro da Academia da Marinha, onde ocupa o lugar de vice-presidenta.
Foi bolseira do Instituto de Alta Cultura junto do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (1948-1960) e Secretária daquele Centro (1954-1960). Dirigiu a revista Geographica, da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), de 1964 a 1973. Em 1955, doutorou-se em Geografia pela Universidade de Lisboa, com a tese sobre a Ilha de São Miguel que já comentámos. Iniciou a sua carreira docente na Faculdade de Letras de Lisboa em 1952 tendo transitado para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) em 1959, onde foi Professora Extraordinária (hoje correspondente a Professor Associado) e depois Catedrática (1966-1977). Ali ministrou diversas cadeiras, nomeadamente, Geografia do Ultramar Português, Geografia Humana, Geografia Económica Geral, Geografia e História do Ultramar Português, Geopolítica Tropical e Antropologia.
Foi bolseira do Instituto de Alta Cultura junto do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (1948-1960) e Secretária daquele Centro (1954-1960). Dirigiu a revista Geographica, da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), de 1964 a 1973. Em 1955, doutorou-se em Geografia pela Universidade de Lisboa, com uma tese sobre a Ilha de São Miguel.
Foi cofundadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde criou os departamentos de Antropologia (1977) e Geografia e Planeamento Regional (1980) e exerceu as funções de vice-diretora. Foi também Professora titular convidada das universidades de Limoges e na de Paris-Nanterre, em 1980-1981. Em 1993 criou o Centro de estudos de Geografia e Planeamento Regional e o Instituto de Dinâmica do Espaço da FCSH (Universidade Nova de Lisboa). De 1993 a 1996 foi a responsável pela criação do Mestrado em Geografia e Planeamento Regional (gestão do Território) da UNL.
Realizou visitas de estudo e trabalho de campo em Portugal e no estrangeiro (Brasil, Espanha, Goa-Índia, Timor, Macau-China, França e os países africanos lusófonos). É autora de uma vasta bibliografia no domínio da Geografia Física e Humana, nomeadamente, Agricultores e Pescadores Portugueses na cidade do Rio de Janeiro: Estudo Comparativo (1960); Palheiros de Mira. Formação e Declínio de um Aglomerado de Pescadores (1960); Lisboa: Esboço Geográfico (1976); Um Olhar Sobre Macau (1991); Portugal, Perfil Geográfico (1994); Goa e as Praças do Norte (1996); No trilho dos Descobrimentos. Estudos Geográficos (1997); Goa e as Praças do Norte Revisitadas (1998); Nordeste Alentejano em Mudança (2000); São Miguel, a Ilha Verde, 1950-2000 (2004) e Atlas de Portugal (Coord. científica, 2005).
Entre 1955 e 1973 realizou, numa cadência quase anual, pesquisas em todas as «províncias ultramarinas», no âmbito de missões científicas da Junta de Investigações do Ultramar (JIU): Missão de Geografia à Índia (1955-1957), Agrupamento Científico para a Preparação de Geógrafos para o Ultramar (1960-1965) e Missão de Geografia Física e Humana do Ultramar (1960-1974), sempre como adjunta do chefe de Missão, o Professor Orlando Ribeiro. Foi conferencista em numerosas universidades estrangeiras, e realizou missões de estudo nos ex-territórios ultramarinos portugueses, participando também em múltiplas reuniões científicas nacionais portuguesas e internacionais. A proposta da Junta de Govern da Societat Catalana de Geografia, foi convidada pela Facultat de Geografia i Història da Universitat de Barcelona, para ministrar em 1989 um curso e realizar práticas de campo e pesquisa em diversas cidades e comarcas da Catalunha. Porém, surpreende que nunca fosse convidada a vir à Galiza para dar algum seminário nas nossas universidades, nomeadamente na de Compostela, onde existia um destacado departamento de Geografia.
Surpreende que nunca fosse convidada a vir à Galiza para dar algum seminário nas nossas universidades, nomeadamente na de Compostela, onde existia um destacado departamento de Geografia.
Entre as várias distinções honoríficas nacionais e estrangeiras, distingue-se a de Grande Oficial da Ordem Militar de S. da Espada (1998). Porém, também recebeu outras distinções, das quais podemos destacar as seguintes: Comendadora da Ordem do Marechal Pessoa (Brasil, 1964), Prémio Internacional Gago Coutinho da Sociedade de Geografia de Lisboa (1966), Officer des Palmes Académiques da França (1974), membro de honra da Sociedade de Geografia de Paris (1982), membra efetiva da Academia da Marinha de Lisboa (1987) e, em 2006, foi condecorada com a Cruz Naval de 1ª classe de Portugal.
FICHAS DOS DOCUMENTÁRIOS
1. Profª Raquel Soeiro de Brito.
Duração: 11 minutos. Ano 2017.
2. Entrevista a Raquel Soeiro de Brito em publico.pt por Sara Pereira e Raquel Albuquerque.
Duração: 6 minutos. Ano 2013.
3. Abertura do Ano Letivo: Departamento de Geografia e Planeamento Regional.
Duração: 4 minutos. Ano 2012.
4. Praia de Mira: Medalha de honra para Raquel Soeiro de Brito.
Duração: 3 minutos. Ano 2013.
5. Homenagem a Raquel Soeiro de Brito em Praia de Mira (2008).
Duração: 3 minutos. Ano 2016.
Existe, também, 1 DVD na Mediateca da Defesa Nacional de Portugal, com o Título “Vulcão dos Capelinhos e fase stromboleana”, de Raquel Soeiro de Brito (realizado em 1957-1958), recuperado com motivo do 50º aniversário da erupção do vulcão na ilha açoriana de Faial, que teve lugar em 1957.
ALDA ROCHA ENTREVISTA A RAQUEL SOEIRO
Raquel Soeiro gastou muitas solas a calcorrear o país, quando o território nacional se estendia muito para lá da Europa. E não foram poucas as vezes em que suscitou estranheza, chegando até a ser confundida com uma espia russa. Sozinha a cavalo, de cabelos louros, com uma parafernália de equipamento estranho a tiracolo, compunha o quadro perfeito para uma história de espionagem. A geógrafa Raquel Soeiro de Brito queria simplesmente conhecer a realidade que estudava, o que estava longe de ser um dado adquirido naqueles tempos. Coloco a seguir uma muito interessante entrevista que no seu dia lhe fez Alda Rocha.
Quando a NOVA FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) foi criada, já tinha um longo percurso académico. Doutorou-se em Geografia em 1955, deu aulas na Faculdade de Letras e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas até 1977. O que a motivou a abraçar este projeto de criar uma faculdade na área das ciências sociais e humanas?
Tenho de começar por contar pelo princípio. Eu era professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. No dia 26 de abril de 1974, logo às 9 horas da manhã, quando chego à porta, vejo uma escada muito grande e uns tipos a subir que me respondem: “Estamos a tirar o Ultramarina’”. Dos nove professores catedráticos, só fiquei eu. Foi um ano muito complicado, mas engraçado, aprendi imenso nesse curso1975-76. A certa altura, numa reunião geral de escola, fui eleita pelos alunos presidente da escola e disse-lhes que escusavam de pensar que eu não estaria a horas na reunião seguinte. Riram-se. Na primeira reunião depois disso, não só estava a horas como levava na mão o famoso papel azul de 25 linhas, pedindo a minha demissão. “Vai agora mesmo ser entregue por mim no ministério”. Saí porta fora e fui para o ministério. A Universidade Nova de Lisboa nasce com uma vantagem muito grande: a nomenclatura. Não era Faculdade de Ciências, era Faculdade de Ciências e Tecnologia; não era Faculdade de Economia, era Faculdade de Ciências Económicas; e a nossa não era Faculdade de Letras, era Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Que sucedeu depois?
O ministro disse que perante a minha demissão ia fechar o ISCSP. Disse-lhe que não tinha capacidade para mais, que tinha feito o que podia e que aquilo era uma bagunça. Depois, fiquei um ano em casa e aproveitei para fazer os trabalhos que tinha atrasados. Entretanto, estávamos em 1977 e fui chamada ao ministério, assim como o Prof. Oliveira Marques, que era catedrático há pouco tempo, pois eu já era catedrática há muito tempo. O José Mattoso, que ainda não era catedrático, juntou-se depois. Este grupo formou-se para inventar a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A Universidade Nova de Lisboa nasce com uma vantagem muito grande: a nomenclatura. Não era Faculdade de Ciências, era Faculdade de Ciências e Tecnologia; não era Faculdade de Economia, era Faculdade de Ciências Económicas; e a nossa não era Faculdade de Letras, era Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Ficámos os três a gerir a faculdade. Entretanto, o Oliveira Marques apresenta um programa para o departamento de História. Fundou-se o departamento de Sociologia, que estava camuflado no ISCSP, porque naquela altura (antes de 25 de Abril) ninguém podia falar em Sociologia. O ministro pediu-me para eu formar o departamento de Geografia, mas eu disse-lhe que naquele momento não podia, mas ofereci-lhe em troca o departamento de Antropologia. Na seção de Antropologia do ISCSP havia pessoas que eram boas, com as quais eu contava, e juntavam-se outras que elas indicassem, enquanto eu ia preparando o departamento de Geografia. Mas expliquei ao ministro que não aceitava um departamento igual ao que havia na Faculdade de Letras.
Como reagiu o ministro?
Disse-lhe que tinha aprendido muito com os meus trabalhos de campo e queria fazer um departamento que fosse mais moderno e com outras preocupações além de preparar professores de liceu. O ministro achou muito bem e deu-me uma bolsa para eu poder ir a vários departamentos de Geografia, fora de Portugal. Andei pelas Europas, onde sabia que havia institutos de Geografia onde se fazia o que eu pensava fazer. E fui discutir com aqueles professores o que eu tinha imaginado como primeira aproximação. Em 1979 foi aceite o meu programa e aceite o departamento de Geografia da Universidade Nova de Lisboa.
Que trazia de novo em relação aos departamentos que existiam nas outras universidades?
Nas outras universidades eram departamentos estanques. Um geógrafo é um médico generalista. É um tipo que olha para uma criatura, que a ausculta, que a observa e diz: “Isto é muito grave, faça o favor de ir ao especialista do coração, dos olhos, da memória”. O geógrafo vê o conjunto, depois há os especialistas: o economista, o sociólogo… Eu entendia que um geógrafo precisava de uma mini-formação de sociologia, uma mini-formação de economia, uma mini-formação de política, porque a geografia é um mundo. Quem não sabe geografia bem pode passar para outro mundo, pois neste, tem de ter noções de geografia. Se rebenta uma guerra em Riade, tem de se saber onde está Riade, quem está em Riade, quem comanda em Riade e porque há guerra em Riade, porque senão está fora do mundo.
O geógrafo vê o conjunto, depois há os especialistas: o economista, o sociólogo… Eu entendia que um geógrafo precisava de uma mini-formação de sociologia, uma mini-formação de economia, uma mini-formação de política, porque a geografia é um mundo.
Como foi ver uma faculdade começar do zero?
Foi muito complicado, porque não tinha pessoas e tive de as ir convidar onde havia. E como eu fui contra o estabelecido de que a geografia era aquela coisa fixa, rígida, tive de ouvir: “Isto não vai resultar”; “Ela não sabe o que está a fazer”. Até o nome foi complicado. Fundei o departamento de Geografia e Planeamento Regional. Sem haver um planeamento regional não há um mundo capaz, é a bagunça que nós estamos a ver. “Mas o que é isso de planeamento regional?” Não obriguei ninguém a ir, mas foi complicado. Uns gostaram de mim; a maior parte não. E eu fiz uma escolinha com gente fantástica e de tal maneira foi fantástica que deu gente para tudo quanto há. Proporcionalmente com outras faculdades, temos muito mais gente fora do ensino secundário. Estão no ensino superior, no mundo privado, nos ministérios, a fazer planeamento pelo país. Foram os precursores de uma geografia fora do ensino.
O professor deixou de ser o bicho, com que não se falava, de que se tinha medo, e passou a ser uma pessoa com quem se ia falar, perguntar coisas que não se sabia ou com quem se tinha uma simples conversa de café.
Muitos apelidaram de “Escola de Geografia de Lisboa” a linha de pensamento que caraterizava o departamento que criou. Além da multidisciplinaridade e do planeamento, que teve de distintivo?
A ligação de alguns professores com os alunos na altura foi absolutamente único. O professor deixou de ser o bicho, com que não se falava, de que se tinha medo, e passou a ser uma pessoa com quem se ia falar, perguntar coisas que não se sabia ou com quem se tinha uma simples conversa de café. Eu almoçava muito com eles e era muito criticada: “Aí vai ela com os meninos”. Depois, houve uma cadeira que foi a chave. Quando viram Informática num plano de estudo de Geografia perguntaram: “Que tem a ver a Informática com a Geografia?”. Tem tudo, como Matemática tem tudo. Há muitos geógrafos que fizeram muita asneira, que não disseram nada capaz, porque não sabiam que 2 e 2 eram 4.
Houve uma altura em que eu fiz tudo quanto pude para mudar o sítio físico do nosso departamento para a Faculdade de Ciências e Tecnologia, onde sempre entendi que a Geografia estava mais bem colocada. E foram os meninos velhos (alunos da primeira licenciatura) que não quiseram ir e professores também. “Ter de atravessar o Tejo?!” Tive um edifício inteiro à espera de que nós fôssemos, durante um ano.
Foi discípula de Orlando Ribeiro. Que significou poder acompanhar de perto aquele que é considerado o pai da Geografia em Portugal?
Quando veio para Portugal, o Orlando instituiu, por exemplo, o trabalho de campo, que não existia. Mas eu aprendi o trabalho de campo com duas pessoas: o Orlando Ribeiro, que era da parte humana, e o Mariano Feio, que era da parte física. O Mariano era uma pessoa pacata, muito inteligente, que ajudava os alunos, porventura até mais do que o Orlando, mas que ninguém dava por isso, ajudava-os muito sub-repticiamente. O Orlando era uma pessoa exuberante, que tinha uma palavra fácil e falava muito bem. Lembro-me de uma aula sobre o Minho, onde eu tinha vivido em pequena, dizia-me muito, em que eu não escrevi uma palavra, porque fiquei a olhar (mostra uma expressão de deslumbre). No fim veio falar comigo:
— Tu não escreveste nada, mas o que é que tu julgas que estás aqui a fazer?
— Eu estou a aprender.
— Mas como, se não escreveste nada?
— Não precisei de escrever, porque eu sabia o que o senhor contou. Gostei muito de o ouvir.
Desarmou-o.
Os dous eram pessoas muito diferentes, mas tenho uma pena imensa de que ninguém fale no Mariano, porque ele fez muito pela geografia.
Foi uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal e a primeira em Geografia…
Depois de 1930 julgo que fui a terceira mulher doutorada. Foi a Prof.ª Virgínia Rau, de História, já bastante mais velha e uma figura importante da História de Portugal. Depois, a Profª Lourdes Belchior, de Letras, que teve um belíssimo desempenho, nomeadamente na direção do Centro Cultural Português da Gulbenkian (fez também parte do conselho fundador da Universidade Nova de Lisboa, de 1973 a 1975).
Depois de 1930 julgo que fui a terceira mulher doutorada. Foi a Prof.ª Virgínia Rau, de História, já bastante mais velha e uma figura importante da História de Portugal. Depois, a Profª Lourdes Belchior, de Letras, que teve um belíssimo desempenho, nomeadamente na direção do Centro Cultural Português da Gulbenkian, e a terceira fui eu.
Teve um sabor especial, por ser tão raro?
Não, meteu-me raiva! Só me valeu ser mais criticada e mais aborrecida, durante as provas. Não se imagina o que era um doutoramento naquela altura, aqueles velhos… Começava por eu ser uma criaturinha de 28 anos:
— Vinte e oito anos, o que é que sabe?
— Sei o que sei e o que vou aprender mais.
Eram os professores catedráticos todos, todos! da faculdade, mais os professores específicos. Eram uns 12 ou 14, já não sei bem. Todos metiam pé, um gozo: “Na página não sei quantas, há uma vírgula que não está bem posta”.
Mesmo a idade do doutoramento era incomum na altura. Mesmo o Cintra, o famoso Lindley Cintra (linguista, 1925-1991), tinha 30 anos e era homem. Eu tinha 28, era mulher e geógrafa que era uma coisa que a maior parte das pessoas não sabia o que era.
Identifica-se como uma geógrafa de campo. É possível ser-se um geógrafo sem essa relação com o território?
Eu não compreendo. Um geógrafo tem de ter ação. Um historiador não pode ser um historiador se não tiver livros e se não os souber ler. Um geógrafo não pode ser geógrafo, sem saber olhar. A minha vida foi feita em estudos parcelares em Portugal e em todo o território que foi português no mundo. Andei, gastei solas, gastei sapatos e gastei-me a mim mesma. É campo autêntico, de estar lá, de viver, de ter medo do leopardo, de acordar de noite assustadíssima com uma fogueira à volta por causa dos escorpiões. Atravessar um rio a cavalo, o cavalo escorregar e eu atravessar o rio a pé com água pela cintura e as máquinas no ar, que eram mais importantes do que eu.
Andei, gastei solas, gastei sapatos e gastei-me a mim mesma. É campo autêntico, de estar lá, de viver, de ter medo do leopardo, de acordar de noite assustadíssima com uma fogueira à volta por causa dos escorpiões. Atravessar um rio a cavalo, o cavalo escorregar e eu atravessar o rio a pé com água pela cintura e as máquinas no ar, que eram mais importantes do que eu.
A fotografia foi sempre um auxiliar importante do seu trabalho de campo?
Fotografia e cinema. Tenho inclusive uma história na Guiné, onde já tinha começado a guerra, com uma máquina de filmar, que é uma laracha. A malta toda reuniu-se e ninguém dizia nada, até que um deles perguntou: “Que arma é esta?” Filmei um bocado e mostrei para verem como era. Ficaram desiludidos e foram embora. Isto nunca se teria passado em Luanda ou em Lourenço Marques, mas passava-se noutros sítios. Uma vez fizeram uma acusação à PIDE (polícia política no tempo da ditadura) de que andava por ali uma espia russa, uma mulher de calças, cabelos louros, a cavalo, sozinha, uma quantidade de máquinas que não sabiam o que eram. As máquinas fotográficas ainda sabiam, agora as outras… uma bússola, um medidor de imagem. Ui, que desgraça.
Fez muito trabalho de campo sozinha?
Fiz, refiro-me a geógrafos. Fiz algum trabalho de campo com o Mariano, em Angola. Em Moçambique, fizemos uma viagem para vermos as diferenças fundamentais. Aí éramos cinco: o Orlando, o Mariano, o Francisco Tenreiro, uma pena ter morrido cedo, o Fernandes Martins, de Coimbra, e eu mesma. De resto, fui sempre sozinha. Claro que no terreno tinha sempre apoio de todos os governadores, nunca me faltou apoio. Mas em muitas situações estava mesmo sozinha.
Outra interessante entrevista foi-lhe realizada a Raquel Soeiro pela jornalista Ana Carvalho Melo, publicada o domingo 1 de outubro de 2017 no Açoriano Oriental, que pode ser lida aqui.
AS SUAS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS
Raquel Soeiro, produto de muitas das suas pesquisas de tipo geográfico, chegou a publicar um amplo número de livros e monografias. E também numerosos artigos e depoimentos, especialmente na revista Geographia. Todas as suas publicações são muito interessantes e entre os seus livros temos que destacar os seguintes:
–Um pequeno porto do Algarve: Albufeira (Centro de Estudos Geográficos da Univ. de Coimbra, 1951).
–Uma aldeia da Montanha do Moinho: o Soajo (estudo de geografia humana) (Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, 1953).
–A ilha de São Miguel: estudo geográfico (Instº de Alta Cultura-Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, 1955).
–Palheiros de Mira: formação e declínio de um aglomerado de pescadores (Instituto de Alta Cultura de Lisboa, 1960). Existe outra edição em 1981 pelo Instº Nac. de Investigação Científica.
–Agricultores e pescadores portugueses na cidade do Rio de Janeiro: estudo comparativo (Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1960).
–Imagens de Macau (Agência Geral do Ultramar de Lisboa, 1962).
–Geografia do Ultramar português (ISCSPU de Lisboa, 1964).
–Aspectos gerais da geografia física de Angola (ISCSPU de Lisboa, 1964).
–Aspectos geográficos de Moçambique (ISCSPU de Lisboa, 1965).
–Goa e as Praças do Norte (Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1966).
–Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe (ISCSPU de Lisboa, 1966).
–Lisboa: esboço geográfico (Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa, 1976).
–Geografia urbana (Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, 1983). Em colaboração com J. Beaujeu, M. Gomes e M. J. Queirós.
–Estudos em homenagem a Mariano Feio (Instº Nac. de Investigação Científica, 1986).
–Geografia humana: teorias e suas aplicações (Gradiva de Lisboa, 1987). Em colaboração com Paula Lema, W. Kent e M. de Bradford.
–Didáctica da Geografia (Universidade Aberta de Lisboa, 1991). Em colaboração com M.ª de Lurdes Poeira.
–Portugal: perfil geográfico (Ed. Estampa de Lisboa, 1994).
–No Trilho dos Descobrimentos: Estudos Geográficos (Comissão Nac. para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997).
–Goa e as Praças do Norte revisitadas (Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1998).
–Timor-Leste. Primórdios dos anos 70 (Academia de Marinha de Lisboa, 2000).
–Nordeste alentejano em mudança (INAPA de Lisboa, 2000).
–São Miguel, a ilha verde. Estudo geográfico (1950-2000) (Fábrica de Tabaco Micaelense de Ponta Delgada-Açores, 2004).
–Atlas de Portugal (Instº Geográfico Português de Lisboa, 2005).
–Geografia urbana (Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, 2010).
–Geografia e geógrafos: episódios de uma vida de geógrafa (Associação Portuguesa de Geógrafos de Lisboa, 2017).
A sua produção científica sobre temática geográfica humana e regional é imensa, a base de depoimentos e artigos presentes em numerosas publicações periódicas de tipo científico e geográfico. Resulta interessante consultar uma ampla listagem dos seus artigos e estudos seus, aqui.
TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR
Vemos os documentários e filmes citados antes, e depois desenvolvemos um cinema-fórum, para analisar o fundo (mensagem) dos mesmos, assim como os seus conteúdos.
Organizamos nos nossos estabelecimentos de ensino uma amostra-exposição monográfica dedicada a Raquel Soeiro de Brito, uma excelente geógrafa de Portugal. Na mesma, ademais de trabalhos variados dos escolares, incluiremos desenhos, fotos, murais, frases, textos, lendas, mapas, livros e monografias.
Seria interessante realizar no nosso estabelecimento de ensino um Livro-fórum, com a participação de escolares e docentes. Podemos escolher entre os muitos livros, resultado da sua pesquisa, que chegou a publicar, qualquer dos quatro seguintes: Goa e as Praças do Norte (1966), A ilha de São Miguel: estudo geográfico (1955), Geografia do Ultramar português (1964) ou Palheiros de Mira: formação e declínio de um aglomerado de pescadores (1960, com uma nova edição em 1981).