Há quase 10 anos, a editora Barbantesa publicou uma escolma com 48 poemas traduzidos de Mahmud Darwish. Cumpre agora pensar nas palavras do escritor palestiniano.
Mahmud Darwish regressou à sua terra quando era moço. Chegou ao distrito de Acre, recentemente anexado por Israel, e ali sofreu as primeiras formas de perseguição. Fugiu com a família do imenso aparato de vigilância, que estimulava o medo e punia o retorno. O moço Mahmud iria ser testemunha da pantasma do deslocamento incessante, inaugurando com esse evento temporão um êxodo pessoal que vira espaço invertebrado, pronto para ousar debruçar-se sobre o espaço frágil do cidadão.
O trânsito infinito de Darwish sugere uma condição que partilha com migrantes e exilados. Trata-se desse espaço onde se experimenta o não-território e as perguntas sobre a cidadania são levantadas. Uns célebres versos do poeta palestiniano coletados nesta antologia ajudam a iniciar esta conversa:
Para que vale un home
sen patria,
sen bandeira
e sen enderezo
Para que vale un home?
É uma forma de pensar a condição do exílio, mas também de nos lembrar que a cidadania é um jeito de se ligar ao território, à geografia e ao mundo da administração política. Por outras palavras, uma maneira de darmos sentido ao mundo. A voz de Darwish mistura-se com essa tradição de exilados que acham no seu lugar uma forma de desafio contra as piores formas dos projetos nacionais. Quanto a este problema, Edward Said, amigo de Darwish, sugere essa condição polémica que vincula nacionalismo e exílio como formas irmãs, manifestações que partilham uma origem comum e oferecem respostas diferentes ao problema da cidadania.
Darwish reconhece que o espaço da cidadania é também um regime laxo. Por outras palavras, um espaço em que as experiências e as pessoas adotam um nome, um número, um código ininteligível, com o fim de serem registadas e geridas polos enormes aparelhos do Estado. Nesse movimento, as identidades descritas nos documentos da administração parecem perder a consistência que é proporcionada pola experiência vivida e pola história dos povos, que alimentam a nossa memória. Assim sendo, a ideia do passaporte é também uma forma de esquecimento próprio. A pergunta do poeta inquere sobre aquilo que resta dentro dos documentos de identidade, da gestão administrativa que se encarrega do trânsito humano:
Todos os paxaros que perseguiron
a palma da miña man ata a porta do apartado aeroporto
todas as sereas
todas as prisións (…)
estaban comigo, pero
deixáronos fóra do pasaporte
A reflexão sobre a cidadania, que ocupa a mente dos homens e das mulheres migrantes de todo o mundo, é também uma forma de encarar os problemas da ideia de nação. Darwish, num poema em imponentes versos de arte maior, reflete sobre o projeto nacional próprio. Esse poema é uma invocação ao futuro. Não contém um programa político, mas uma forma de imaginar em coletivo, com esses outros que não são nomeados e que, no entanto, partilham um mundo com Mahmud. Nesse exercício imaginativo, a nação constrói-se como um canto à alegria, não como uma celebração da tradicional condição monolítica de certos projetos nacionais. Nas suas palavras há uma queixa sobre o ânimo que mitifica a experiencia coletiva das nações, que sacraliza eventos e personagens próprios. Do mesmo jeito, num diálogo com um combatente, Mahmud descreve a sua memória nacional não como um relato de acontecimentos célebres e imponentes, mas como um sonho que mal se pode definir e que repousa sobre o mundo das sensações e do gozo íntimo:
Entende-díxome-que a patria
é beber o café de mamá
volver a casa pola noite
Pregunteille: E a terra?
Dixo: Non a coñezo
Sendo o tema da cidadania e o projeto nacional importante na obra de Mahmud Darwish, a experiência no exílio acaba por ser um correlato necessário nesse universo. Há nas palavras do poeta uma espécie de poética do retorno. A sua obra responde constantemente ao desejo de voltar. O espaço original é, acima de tudo, um lugar que constrói o seu próprio sentido naqueles que o imaginam e o encontram no retorno. Nessa perspetiva, não são espaços com uma singularidade essencial, mas possuem essa instabilidade que a memória e o desejo proporcionam. Contrário a certas poéticas patrióticas para as que a origem é um espaço perpétuo e ancorado em mitos e relatos fundacionais.
Nesse mesmo sentido, a fala do exilado não se constrói a partir da certeza, nem vaticina qualquer futuro patriótico para o seu povo. A experiência no exílio, em Darwish, é, antes do mais, incerteza e dúvida. Essa condição constitui uma singular fortaleza: permite abrir espaço a um tipo de esperança em que se reúnem o medo pessoal e a potência da companhia. Na insegurança de certos versos aprecia-se também uma vontade de provocar um tipo de comunhão entre o leitor e a experiência do exilado. Trata-se dum tipo de tenrura que vincula o leitor ao indivíduo perdido. Por conseguinte, a poética do Darwish novo é dubitativa e, com essa dimensão, organiza um universo afetivo que se impõe em contraposição à figura do exilado inabalável e íntegro -essa figura do imaginário que, em certos cenários, desfigurou a experiência de desenraizamento pessoal que habitam migrantes e exilados.
a fala do exilado não se constrói a partir da certeza, nem vaticina qualquer futuro patriótico para o seu povo. A experiência no exílio, em Darwish, é, antes do mais, incerteza e dúvida.
Esta edição de Barbantesa apresenta uma seleção poética heterogénea que abrange os temas mais importantes do autor palestiniano. Para os leitores de árabe, a edição bilingue permite aproximar-se da obra original e também observar a distribuição original dos versos. Contudo, esta edição também deixa algumas lacunas ao leitor: falta um índice geral, o título da obra original da que fai parte cada poema ou o ano de publicação de cada peça. Seria muito bem-vinda uma reedição que conservasse a boa seleção e a tradução tão cuidada e preenchesse estas lacunas.
[Este artigo foi publicado originariamente em O Salto Galiza]