Em 2021, a Editora Urutau apresentou o “O resto é céu” de Silvia Penas, uma obra que cria uma imponente geografia íntima.
NUNCA SOUBE DIFERENCIAR O POEMA do mundo
O primeiro verso de Silvia Penas em O resto é céu antecipa uma poética que se achega dos pregos, dos lindes entre superfícies e sentidos. Não é, portanto, uma obra que descansa sobre a base dos objetos, senão sobre as linhas que os limitam, a sua relação com aquilo que os precedeu, os ocos que definem a sua própria forma. Atende as margens e as diferenças subtis que se encontram entre as cousas. Esta obra está formada por imagens em que se disputam as bordas que definem o espaço, o corpo e o tempo:
não existe a meta nas ilhas pela sua
extrema circularidade
não existe uma linha reta entre o passado
o presente o futuro
Daí, a importância da ilha na sua obra. Estes espaços suspendidos no mar são mais delimitações do que superfícies. Da ilha apreciamos as suas margens com o mar, com o céu, com outras ilhas. São mais lindes do que objetos. A ilha aprecia-se porque se depara com pressa com os seus próprios limites. Isso separa-as de outras massas de terra depositadas no mar. Nem toda superfície é unha ilha porque não todas são concebidas pelas suas próprias bordas. A poeta alimenta essa experiência.
A ilha de Penas passa por formas de determinação e indeterminação constantes. Às vezes parece estar situada numa geografia concreta em que a voz poética é uma visitante atenta e contemplativa. Em outros casos, é um espaço próprio, um depositário da memória e da dor pessoal:
ENSINARAM-ME A COMEÇAR O PRATO pelas bordas
para não me queimar na boca do vulcão
e assim, interno-me na ilha
habitando as costuras e a margem do regato (…)
A ilha, em O resto é céu, é também uma forma de assumirmos o corpo. É o espaço em que a voz poética é capaz de se autoimpor, de assumir a sua mesmidade. Nesse exercício, a ilha deixa de ser terra para ser sangue, órgãos e feridas. A voz poética, nesse esforço que supõe a transformação material da ilha, tem também a vontade de atravessar a história das mulheres que a constroem. Quer dizer, a ilha não é só um equivalente do corpo material, senão também um espaço onde se encontra a memória partilhada. “Cavar” não é só atravessar pele e sangue, senão experiências e dores comuns.
A ilha, assim, é corpo e passado próprio:
hoje trago o meu saber ancestral e cavo
muito fundo para abrir a carne da ilha
vejo como pinga o sangue do meu pulmão
para o lado esquerdo do tarrafal
acodem-me as mulheres já deixei para trás (…)
Da mesma forma que a palavra e o mundo são territórios de confusão, espaço e corpo são formas que não têm lindes claros nesta obra. O corpo e a ilha, mas também a ideia sugerida de “tornar-me cidade” num dos poemas mais importantes da obra. Trata-se de falar de si desde o espaço e as formas especiais como pode ser habitado. Por outras palavras: a escrita de si desde as experiências que o espaço oferece. Num só verso o valor da vida e o espaço tomam uma forma concreta e poderosa: “ou porque pertencer a um lugar / é questão de vida ou morte”.
Mas não somente há na obra de Penas uma reflexão sobre o horizonte do espaço próprio. Está viva a intenção de reconhecer o seu passado, a sucessão de experiências que organizam o seu próprio presente. Nesse caminho, visita as mulheres que formam e preservam a vida. Isto é, o jeito em que se constrói a transmissão de saberes vitais entre iguais: a transmissão de uma língua, o cuidado da terra, o uso de ferramentas no campo, a carta que uma mãe escreve ao seu filho. Nessa exploração, possui um sentido extraordinário o verbo “tecer”, que nesta obra está vinculado com as mulheres e o mantimento da vida. Um tecido que também é um suporte construído a partir das lágrimas e a violência.
Só no último grande segmento desta obra, Penas deixa para trás o sentido das bordas e os lindes. Encontra refúgio numa forma contrária: o céu. Tal como num fechamento progressivo, o que primeiro foi borda agora parece ficar nu. A dor e a ferida ficam suspendidas e “apenas o céu” se impõe com a sua imensidade. A sua poética transita a partir da materialidade da terra e a carne, e remata no horizonte indefinível do céu. Já não consiste em observar os espaços de transição, mas de experimentar a imposição de um corpo imóvel e inabarcável. O céu recobre por completo a experiência dxs leitorxs para quem as palavras e as imagens vão desvanecendo:
apenas levantar a vista é
céu
apenas empunhar a vista é
céu
empunhar o fundo dos olhos é
céu
[Este artigo foi publicado originariamente no Salto Galiza]