Ou autodeterminação e socialização também linguísticas ou não há nada que fazer

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1. A diagnose

Periodicamente repete-se na Galiza a pergunta se a “normalización lingüística” foi um fracasso ou um sucesso. Desta vez o motivo parecem ser os novos dados do Instituto Galego de Estatística que podem ler-se como uma indicação de que por primeira vez o galego é minoritário entre setores sociais como a mocidade.

A pergunta tem tipicamente duas respostas, baseadas na bivalência da própria expressão “normalización lingüística”, que está simultaneamente em galego da RAG e em espanhol: (1) A “normalización” foi um fracasso porque, sobretudo, o espanholismo do PP, a grande besta negra, a impediu, e os outros partidos também não fizeram o suficiente. (2) Noutro sentido (ou não), diz-se que é um sucesso porque, como projeto de elite, sempre se tratou da “normalización” definitiva do espanhol na Galiza, não do galego, e esse plano segue-se ponto por ponto. Acho que esta é a tese  (ou polo menos a ênfase) mais estendida no reintegracionismo no geral.

A minha particular resposta não é nem uma nem a outra como tais. Julgo que devemos considerar mais em detalhe certas condições de possibilidade atuais que poderiam permitir ou impedir o que eu prefiro chamar a naturalização do galego na sociedade.

O elemento mais negativo da situação é, sem dúvida, que por primeira vez na história possivelmente os usos do galego sejam minoritários em geral (e vinculados a âmbitos menos formais). O elemento mais positivo é que talvez também por primeira vez haja, contudo, uma naturalidade no uso do galego por novas gerações não falantes mas que o estudaram ainda como segunda língua. Isto contrasta com o padrão de há décadas da pessoa falante de galego ora como vinculada só a classes sociais subalternas, ora ideologizada cultural e politicamente. O que existe agora, subproduto da “normalización” e em certa medida da banalização do galego, é este setor potencialmente aberto ao uso do idioma.

Um terceiro elemento é que há um consenso generalizado entre o ativismo linguístico de várias tendências de que sem o recurso a estes setores não utilizadores habituais de galegos como potenciais “neofalantes” não há futuro para o idioma. Daí, por exemplo, as linhas estratégicas da AGAL para atrair falantes com discursos sobre a utilidade natural e internacionalizável do galego como português embora um pouco diferente.

Perante este panorama, dada a história da “normalización” até agora, as duas perguntas centrais para o futuro são: (1) quem pode ser então o agente e sujeito político que leve adiante uma recuperação do idioma na Galiza? e (2) em base a que lógica, que critérios e portanto que discursos novos e diferentes se deve fazer? As perguntas não são triviais (nem as respostas óbvias), porque as hipóteses são variadas.

Quanto a (1), é evidente que dos mesmos agentes políticos de elite que estão a impor a máxima ofensiva de classe conhecida na história do capitalismo, isto é, dos agentes do ultraliberalismo do PP (ou do social-liberalismo do PSOE), não se pode esperar qualquer impulso de naturalização do galego. Isto não é assim por alguma aversão intrínseca ao idioma (que existirá, sim, em setores dos “perfeitos burgueses” urbanos), mas por uma razão elementar: que, na ordem atual, o necessário investimento público para a recuperação do galego como imenso recurso e importantíssima prática social não serve em absoluto para o seu projeto de dominação de classe. Se o idioma lhes servisse dalguma maneira, podemos ter a certeza de que o capital se interessaria por ele. Portanto, nesta altura do jogo deveria estar claro que de qualquer política linguística da direita do capital não se pode esperar uma orientação para o mesmo objetivo que o das classes que falam e falaram secularmente o idioma por razões e com valores muito diferentes do que se entende agora por um uso “normal” duma língua na cultura do capitalismo.

Tampouco do setor nacionalista inserido na política institucional se pode esperar muito protagonismo ou agencialidade na hipotética recuperação do idioma, precisamente polo seu submetimento (parcialmente por opção, parcialmente por coopção) às lógicas da língua impostas desde há quatro décadas na Galiza, lógicas que se resumem na sua ritualização, ideologização e mercantilização, num jogo de troca de valores que exporei logo. A confluência “tática” com a direita para a cocção de “unanimidades” parlamentares em torno da Lei de Normalización Lingüística e do Plano Xeral de Normalización da Lingua Galega demonstrou-se inefetiva. De facto, é essa unanimidade nominal que pode ver-se como fundamento da dupla (e compatível) leitura anterior de que a já morta “normalización” foi simultaneamente um fracasso e um sucesso.

2. A proposta: agentes e discursos

O protagonismo na naturalização do idioma da Galiza só se pode esperar duma nova maioria social, isto é, um novo sujeito político para um novo projeto de emancipação e de autodeterminação geral no político, no social, no económico, no cultural, etc. etc., isto é, numa nova ordem sócio-económica emancipadora e igualitária. Já não há lugar para quaisquer ingenuidades a respeito da hipótese de que um regime desenhado para o submetimento, o domínio, a exploração e a sujeição das populações e das consciências possa se interessar alegremente por uma dimensão coletiva imaterial (a fala) que, polo que tem de coesivo, não só pode representar uma ameaça às elites, mas que mesmo não lhe gera qualquer benefício. Nunca o capital falou línguas, nem as falará, nem exibiu nem exibirá qualquer “lealdade linguística” além da sua adesão instrumental ora às línguas dominantes ora a qualquer farça de “normalización” para os seus próprios interesses. O galego deve ser recuperado nem polas elites nem polas instituições, mas pola mesma maioria social que contemple e aspire a uma Galiza diferente.

A segunda pergunta é, então, qual deveria ser a nova lógica de recuperação do idioma, visto aonde nos conduziram as lógicas e táticas (?) anteriores. Alguém esperará que me refira agora ao eixo e cisma isolacionismo / reintegracionismo, mas não é isto o que tenho de todo em mente, ainda que relação tem. Refiro-me aos princípios de gestão dos diversos valores da língua, nomeadamente, da sua produção, circulação, conversão, acumulação e transmissão, por parte de agentes sociais específicos em cada fase.

A história destes valores do galego é longa e não poderia expô-la inteiramente aqui. Imaginemos, simplesmente, um tetraedro, a figura de quatro caras, isto é, uma pirâmide de três caras e uma base, todas triangulares. Nos três vértices da base, imaginemos os valores material, cultural e social da língua; no vértice superior, o valor e produto simbólico, vinculado ao poder (e violência) simbólica. Os quatro vértices são as dimensões dos “capitais” de que falou extensamente Pierre Bourdieu no seu modelo dos mercados linguísticos e culturais, e que eu prefiro chamar valores: a língua como recurso de avanço económico, como fonte de criação e referente ideológico, como veículo de relações sociais, e, no cimo, como instrumento de dominação des-reconhecida.

A pergunta é, o que aconteceu até agora com a “produção”, conversão, circulação e acumulação destes diversos valores associados à língua da Galiza, isto é, à língua estruturalmente portuguesa mas concebida e construída nominalmente como “propia” galega (mas não com todas as suas consequências!)? Basicamente, o que se produziu em quatro décadas é mais valor cultural para o galego, mas que circulou sempre nalguns campos definidos (o cultural num sentido amplo, o educativo, o técnico da filologia, e o político) em retroalimentação constante. A conversão deste valor foi pouca: traduziu-se ocasionalmente em valor económico no literário e intelectual (prémios, publicações), em bonos salariais e financiamento de projetos no campo técnico (universidades, instituições), em valor social de coesão e reconhecimento mútuo entre as respetivas e solapadas elites, e, finalmente, em valor simbólico de dominação não só de classe “intelectual” sobre outras, mas de setor de campo (sobre e contra o reintegracionismo), com diversos graus de patetice nas práticas escolhidas para falar e não deixar falar sobre a língua, por exemplo.

Em todo este processo de dinâmicas de produção, circulação e conversão de valores, deram-se duas caraterísticas fundamentais: (a) A acumulação de valores (prestígio, reconhecimento, etc.) nos membros individuais das elites mascarou o facto de o principal beneficiado ter sido sempre um estado que, por sistema, a meio das instituições públicas de saber, absorveu os ganhos variados da produção simbólica (os mais-valores) sob a miragem do subsídio desinteressado; porém, com a des-intervenção ultraliberal, esse jogo está a reduzir-se, prestes a acabar. E (b) não houve praticamente transformação do valor cultural e do social em valor económico fora dos campos citados, isto é, não o houve no mundo do comércio, indústria ou finanças; o galego não é língua da “economia”, só da força de trabalho nas suas práticas diárias, e da “produção” cultural solipsista.

Paralelamente a isto deu-se um fenómeno importante e complementar quanto ao fundamental valor social das línguas, isto é, a sua dimensão interacional nas relações, nas diversas formas de coesão social, e na sua potencialidade de influência. O que infelizmente aparece como patrão geral desde há décadas (mas não séculos: nas últimas décadas) é que a sociedade galega no seu conjunto, nesse nível geral de abstração, apostou e está a apostar polo espanhol como fonte de valor social. Portanto, a “normalidade” concebe-se de cada vez mais em termos de relações sociais habituais maioritariamente em espanhol, em todos os setores e classes. Isto esteve e está ligado, naturalmente, à prevalente miragem que existe a respeito da potencialidade deste valor social do espanhol poder se traduzir a valores económicos (de avanço de classe).

Dentro desta lógica, e dados os agentes estratégicos dos campos, não há exatamente nenhuma hipótese de futuro para o galego. A única possibilidade, para um novo sujeito político exercer o seu papel, é também uma nova lógica que descapitalize e desvalorize a língua. Só o potenciamento da dimensão social no tetraedro da língua, como fonte de relacionamento e coesão, mas desligada do princípio mercantil da convertibilidade noutras cousas (dinheiro, prestígio, “cultura”: afinal, distinção) poderia abrir uma fenda na lógica dominante.

E isto só será possível se o que há por trás é um projeto diferente de emancipação social em todos os aspectos, de recuperação das soberanias, em plural, como está a acontecer em movimentos setoriais, mas no nível sem dúvida muito local galego, que é a única hipótese (in-dependentista) de criar algo diferente, fora dos constrangimentos jurídicos e políticos do Estado Espanhol e da Europa. Precisamente pola chamada “crise” atual do capitalismo, caracterizada pola crescente submissão da força de trabalho e das populações em geral, da agudização do conflito de classe, da concentração extrema dos capitais, e de submetimentos cada vez mais poderosos ao jurídico e ao militar (não é certo que o estado do capital esteja debilitado), de cada vez há mais evidência de que só a partir de formas e experiências de independência social se podem gerir igualitariamente os recursos materiais e imateriais coletivos.

Para este projeto também linguístico é precisa portanto a confluência de duas pequeníssimas condições: (1) o exercício da soberania coletiva; (2) o estabelecimento duma ordem económica não capitalista, ou, polo menos, dum sistema transicional conduzente a uma ordem assim. Porque é o capitalismo que cria a convertibilidade e acumulabilidade das formas de valor (também da língua), e é isso o que há que quebrar.  Nomeadamente (como se fosse pouco), há que quebrar duas das propriedades dos valores no mercado da língua que operaram até hoje: a sua convertibilidade, e a sua acumulabilidade. Isto é, as dimensões da língua (a social como fonte de relacionamento; a cultural como fonte de criação) não se podem conceber como recursos trocáveis noutros e acumuláveis na forma de fontes de distinção. A naturalização da língua, de se dar, consistirá na sua pervivência dentro duma diversidade difícil de prever, mas dentro doutra lógica da relação entre as dimensões materiais e imateriais da língua, da cultura e das práticas sociais em geral. Qualquer outro projeto, encaminhado a manter ou domesticar o mercado capitalista, simplesmente não vale para a língua tampouco (como não vale para o feminismo ou para outras lutas), porque, como a história da acomodação do capitalismo às lutas setoriais vem demonstrando, continuará a reproduzir no seu seio contradições irresolúveis entre os eixos do reconhecimento cultural (direitos, identidades) e da redistribuição material (estrutura de produção, posse dos meios, estrutura de classes), em termos dos esquemas teóricos de Nancy Fraser.

Ficam, por último, outras duas pequeníssimas (continuando com a ironia) questões: (1) exatamente com que táticas e práticas de socialização (distribuição do valor) se deve quebrar a convertibilidade e acumulabilidade dos valores da língua?; e (2) em que poderá consistir o novo objeto e instrumento “língua da Galiza”, protagonista da tarefa coletiva da sua recuperação como veículo e sintoma dum projeto emancipador mais amplo? Talvez isto mereça espaço próprio de reflexão mais adiante.

Artigo publicado originalmente no Novas da Galiza n.º 145 (15 de fev. a 15 de março de 2015), págs. 20-21