Há muitos anos, quando eu era criança e adolescente, no prédio antigo onde morava havia uma porteira, uma mulher viúva, maior, e às vezes não muito simpática a quem chamarei Caridad. Ocupava, no baixo interior, uma vivenda pequena e bastante obscura de um par de quartos de chão de azulejo, cozinha e banho, a custo da comunidade de vizinhos, além dum soldo. Entre as suas tarefas estava ocupar-se da limpeza do formoso edifício, dar algum recado ou recolher algum envio, prender a caldeira comunal de carvão para a calefação central, e, singularmente, salvar-nos dos não infrequentes atascos do elevador Schneider. Quando ficava parado entre pisos e entre paredes, talvez tocássemos um alarme que não sei se soava (se marchava a luz sem dúvida não), mas o mais efetivo era simplesmente berrar “Ascensoooor!” até que Caridad escutava, subia sete pisos polas escadas, e dava-lhe com esforço a uma enorme manivela manual para ascender a caixa do elevador até a altura dum piso onde se pudessem abrir as portas. Depois Caridad pendurava na porta do ascensor o sucinto cartaz NO FUNCIONA, mas entre aspas, isto é: “NO FUNCIONA”. Essa foi a minha primeira exposição ao “uso” “gratuíto” das “aspas” para enfatizar “qualquer” “cousa”, que tanto floriu e ainda perdura.
Caridad tinha uma filha de mediana idade que chamarei Lulú, de cabelo roxo e grandes peitos que como criança me impressionavam. Embora por temporadas compartilhasse vivenda com a mãe, ao lado do elevador e da caldeira de carvão, Lulú parava menos por aí que por alguma outro lugar que devia ter: era prostituta, ou prostituía-se para viver, nem sei se habitualmente. Na obscura ideologia da época, isto dizia-se também obscuramente, como não dizendo-o, como duvidando, sem ofendê-la mas no fundo culpando-a. Às vezes, quando Caridad não estava ou estava doente, Lulú fazia também funções de porteira.
Lulú não tinha homem. Mas tinha duas filhas encantadoras, duns 4 e 6 anos nos fotogramas em que as lembro, de nomes Ana e Sonia, por exemplo, bastante diferentes fisicamente entre si: uma tinha cabelo em caracóis, a outra liso; uma olhos azúis, a outra castanhos. Dizem que a maior era filha dum marinheiro inglês que atracara nalguma altura na velha cidade portuária.
As miúdas Ana e Sonia eram umas verdadeiras filhas da puta, alegres e formosas como todas as crianças. Foram as primeiras filhas da puta que conhecim. Anos mais tarde, no mundo cultural da Galiza, chegaria a ser amigo doutro verdadeiro filho da puta, um escritor, um bom tipo, atrativo, com o qual perdim contato pola insídia do tempo. E talvez tenha tido relação com outros e outras verdadeiras filhas que por falta de confiança nunca me comentaram a sua origem, não necessariamente menos digna nem mais digna que a minha. Haverá filhos da puta cabrões, como haverá filhos da escritora cabrões.
O que relato é a imagem que as expressões “filha da puta”, “hijo de puta“, “hijo de la grandísima puta” ou semelhantes invocam em mim: a de duas raparigas brincalheiras filhas duma humilde mulher prostituída, filha doutra mulher também trabalhadora e humilde. Por um elementar exercício de compreensão do poder das palavras e de respeito humano, não posso nem em absoluto quero tolerar já essas expressões FDP como insultos. São inaceitáveis de qualquer ponto de vista, e nego-me a desentendê-las como se “não fossem literais”, como se na realidade não denigrassem as mulheres prostituídas ou os filhos que não têm culpa de nada polo qual são insultados. O programa é singelo: a brutalmente sexista expressão “filho da puta!” como insulto já “NÃO FUNCIONA” numa sociedade democrática que se preze de sê-lo, e deve ser deliberada e conscientemente erradicada dos usos diários, igual que fazemos esforços por erradicar “judeu” ou outros etnónimos como insultos, igual que nos indignamos perante livros com Chistes de Gallegos.
“NÃO FUNCIONA”. Temos que dar à manivela e mover o discurso. Eu proponho um prático exercício. Quando alguém insultar “Essa merda de X., filha da grã puta!” retrucai: “Quererás dizer FDB, filha de banqueiro”. “Co- como??”. “Que sim, que estou de acordo, X. é uma fodida cabrona, uma verdadeira filha de banqueiro”. “Como, de banqueiro?”. “Ah, não o digo literalmente, claro, é só uma expressão”. Posso apostar que em pouco tempo o discurso público e a todologia mediática estariam espalhando potentes argumentos polos quais a expressão “Filho de banqueiro!” é com efeito literal e ofensiva, e usá-la é delito de ódio.
Se a tática não fizer efeito, então proponho o insulto FDR, “Filho de rei!”: “Sabes o que me fez no trabalho esse mangante, esse fodido filho de rei?”. Talvez alguém, com razão, ao escutar “filho de rei!” ou “filhas de rei!” se indigne por associá-lo à imagem de pessoas reais, adultas ou pequenas, que não merecem em absoluto ser insultadas assim. Evidentemente. Eu indigno-me ao escutar como as meninhas Ana e Sonia, que serão agora umas senhoras quase da minha idade, são quotidianamente insultadas por homens e mulheres (!), por sexistas e agressivos proponentes de todas as ideologias menos uma: a da dignidade feminista.
*Texto originalmente publicado no blogue do autor: ‘Desde a margem’.