* Na memória de Berta Á. Cáccamo, que nos deixou no mesmo dia em que este texto viu a luz. Para ela e para a sua família. Para o meu caríssimo Celso.
Família, obra, morte, memória. Passado. Percurso. Procura. A obra de vinte anos. Ou de toda uma vida. A obra, no seu sentido radical. No único sentido em que a palavra obra faz sentido. Isto é, a vida. Ou, para nos entendermos: a obra de uma vida. Família, perda, irmã, mãe, pai. E tentar compreender os porquês de tudo. Compreender a procura. O seu sentido. A sua inutilidade talvez. Sempre uma casa. Uma cancela. A areia. As pessoas que ficam na distância. Os distantes. Sempre uma casa. Sempre a morte. Como escreve o Celso: “Cada casa contém a infância dos cadáveres”. E talvez tudo fica reduzido a isso. A uma guerra. A uma guerra contra o esquecimento. Contra a destruição da memória. A uma guerra, enfim, contra toda a forma de supremacismo. De classe, étnico, nacional, religioso… Porque o supremacismo não é apenas a neutralização do outro. É, sobretudo, a destruição da memória do outro. Da sua humanidade. A memória, maldita às vezes, insuportável, cruel, lacerante até, é a última arma a perder. Sem ela, sempre perderemos a guerra.
É esta, acho, uma cruenta guerra contra os “Não me consta”. Página 93: “Não me consta que nos cárceres haja ninguém por pensar”. Não te metas em política, meninho. Não me consta que haja presos políticos. Não me consta que o vosso destino seja o desterro ou o silêncio. Não me consta, não.
Para quem, como eu, observa os livros como uma maravilha fugaz, como um fetiche que só faz sentido quando ainda não existe materialmente, e que, logo, mantém o seu hipnótico encanto apenas nas primeiras horas, talvez nos primeiros dias depois de tomar forma física, Os Passos da Procura, obra de uma vida, é a maravilha por excelência, esse objeto digno de ver, de admirar. De tocar e de cheirar. Um objeto para observar. O fetiche que eu desejava ver materializado desde há anos, muitos anos. Demasiados. Esperava este livro com maior desejo mesmo do que os meus próprios e já esquecidos fetiches. A obra de uma vida. Uma poesia reunida. Vários livros, em realidade. Uma obra completa e, também, um percurso através da inconstância. Da dúvida constante. Da inconsistência. Como escreveu, algures, Paul Celan, “nas inconsistências, apoiar-se”. Na dúvida. Na inconstância. No medo infinito a ver a obra acabada. O livro que sempre parece que vai nascer. E não nasce. Expressão perfeita de uma personalidade. Já nem esperava ter o fetiche entre as minhas mães. Mas nasceu. Livros raros. De gente rara. Gente que se empenha em escrever com letras raras imaginando um país raro, uma cultura rara, uma língua rara, alheia ao mercantilismo e à cultura dirigida, subsidiada. Pessoas que se empenham em escrever, século após século, sobre alguns universais. Como se fossem filósofos. Ou antes, lembrando Alain Badiou, como se ocupassem, sem querer, o lugar dos filósofos. Como se… Tentando, simplesmente, compreender. Gente insana. Gente que quebra a sintaxe. Que escreve sonetos ou concebe poemas demorados, que conta as sílabas ou que rebenta a semântica. Gente que errou a época para viver. Onde vai já a Idade dos Poetas? Os Passos da Procura evoca, penso, essa Idade perdida, porque, para além de poesia de alta qualidade no estético, é também uma “obra de pensamento”, aquela para a qual, polas palavras de Badiou, “o poema é, no lugar mesmo em que a filosofia se enfraquece, o lugar da língua onde se exerce uma proposição sobre o ser e sobre o tempo”. O poeta é aqui, sim, um sujeito de pensamento, um sujeito de razão, e não um mero esteta, um fanático, um publicista ou um artista da maquilhagem sobre uma corda bamba sujeita por um político profissional num dos seus extremos e por um capitalista no outro.
Família, morte, memória. Passado. Percurso. Procura.
Da família, elemento fulcral de uma parte do livro, pouco devo falar. Eu não posso compreender essa família de que o Celso escreve. Quero dizer, não posso compreender a sua conceção da família. Eles e elas habitam um outro universo. Nem sequer paralelo àquele que eu vivi. Àquele que eu vivo. São tão diferentes as casas do Celso, os corredores, os quartos, as cidades e a memória, os objetos mesmo, que decidi não compreender o seu sentido. Fica apenas, e isso é muito, isso é tudo, desfrutar das suas palavras, da sua complexa sintaxe, na delicadeza extrema de uma estética, da sinceridade violentamente despida de uma proposta ética. Não me consta que a família exista mais além da presença da morte. E a morte pode ser lida de tantas formas… A família como vida. A família como morte. Ou como máfia. Como um funeral perpétuo, como naquele filme descarnado do Abel Ferrara. A família como brutal metáfora da pátria, como nos Panero, fotografia hiper-realista da criminal Espanha, essa que agora estoura. A família como hipotético projeto de um país que não foi. Que já não será. Ou, talvez, a família como uma fugaz festa, banal e formosamente efémera, como qualquer ato da nossa vida. A cada pessoa, a sua experiência. Como diz o Celso, “cada família é um entranhável erro diferente da história”. E, acrescento eu, um erro que não nos deixam escolher, sendo este um dos mais certos tópicos da humanidade.
E quero acabar já executando uma mínima perversão dos poemas do Celso, que é o único que sei fazer, e nem demasiado bem. Procuremos. Procuremos sempre. Procuremos objetos inscritos que nunca irão ocupar de paz os dias longos, demasiado longos, de nós, os desamparados. Os anónimos. O Celso solicita o anonimato. Eu exijo o anonimato. Para que uma maravilha, como este livro, possa ser assinado por qualquer pessoa. Porque eu desejei ter escrito alguns dos seus poemas. Porque invejo profundamente a proposta sintática, a estritamente linguística, mas também essa que remonta ao seu significado original no grego clássico: a sintaxe é a ordem da batalha. Este livro é um objeto para a nossa guerra. Para a nossa sobrevivência. Não me consta que este livro esteja proibido. Mas deveria.
E, enquanto ainda nos permitam o direito de reunião, reunamo-nos. Aqui, neste ato bélico que hoje desenvolvemos, ou no desterro. Melhor sempre no desterro, nesse em que mora o Avelino Abilheira, autor também deste livro. A manter a consciência das poucas cousas reais. Das escassas verdades. Como a dor. A dor é real. Finalmente, isso é tudo. A dor é verdade. A dor é a verdade. Cada casa contém a infância dos cadáveres e a morte não se mascara com perfume. Mascaramos a vida com poesia e a vida sempre nos deixa despidos. Repugnantemente despidos. Como se fôssemos poetas. Como se fôssemos. Novamente, como se… Porque quase tudo na vida é como se…
Armem-se de valor e leiam Os Passos da Procura. É a verdade. É real.
Não me consta, porém, que nas ruas durmam os desamparados. Não me consta, direi, que nós sejamos os desamparados. Não me consta, direi, que nós sejamos os desterrados, os expulsos. O êxodo. E, sim, nisso consiste a vida. Como diz o Celso numa entrevista do Portal Galego da Língua: a vida consiste apenas “[n]uma sucessão de expulsões dos berços, das casas, de todo o tipo de côncavas nações pequenas, sempre à procura de sei lá o quê. E se não é fisicamente, é por dentro, no processo de ir deixando peles ou cadáveres de nós próprios no interior de nós”.
Nem me consta que nós sejamos nós. Consta-me, sim, que o primeiro cadáver que deixamos no caminho é o nosso. Isso é verdade. Leio: “É verdade a solidão. / É verdade o corpo nu / frente ao espelho. / Frente ao espelho, o corpo nu / é verdade”. Como se fôssemos poetas. Despidos. Corpos nus. Sempre frente a um espelho. Sempre em guerra.