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Na defesa dos ideais republicanos, segundo o filme ‘Terra e Liberdade’

Terra e liberdade foto 3Para comemorar o Dia da República, que todos os anos celebramos na data de 14 de abril, e promover nos estabelecimentos de ensino atividades educativo-didáticas ao seu redor, dedico a este importante tema um segundo depoimento. Para o que tomo como base um lindo filme, realizado em 1995 pelo grande diretor britânico Ken Loach, sob o título de “Terra e liberdade”. Com o depoimento anterior, centrado no filme “Libertárias” de Vicente Aranda, por este ano de 2015 completo a mencionada comemoração, com o nobre objetivo de que crianças e jovens conheçam uma etapa histórica do nosso país, que nunca deveríamos esquecer.

Enric Mompó realizou no seu momento uma muito interessante, ampla e fundamentada crítica do filme de Loach, da que tomo várias de suas acertadas asserções, para mim mesmo enormemente esclarecedoras de uma etapa histórica tão importante para o nosso país. Ainda hoje não superada em muitos aspetos, permanecendo da mesma vivas muitas sequelas.A história tem sido sempre escrita pelos vencedores. Esta realidade configura-se como um dos obstáculos enfrentados pelo historiador que se debruça no estudo da Guerra Civil Espanhola, devido à grande quantidade de mitos e deformações que vêm sendo veiculados sobre o tema. A historiografia oficial, ou seja, a institucional, apresenta-nos o conflito que assolou o território espanhol durante três anos como uma simples disputa de poder entre as forças da democracia e do fascismo, fechando os olhos para o processo revolucionário que ocorreu no interior do movimento. Com frequência, exalta o seu caráter antifascista, visando ocultar a existência de dous projetos sociais e políticos diferenciados e claramente antagónicos: o dos que pretendiam que a revolução chegasse às últimas consequências e o dos que defendiam, a todo o custo, a restauração da velha República. Esses dous projetos enfrentaram-se, muitas vezes de forma sangrenta, e definiram, em grande medida, com o resultado das suas luitas, o destino da guerra civil. Muitos livros, procedentes de testemunhos, já foram escritos sobre a Revolução Espanhola. No entanto, a maior parte destes trabalhos, quando não coincidem com a versão oficial, vêm sendo discretamente marginalizados. Apenas alguns historiadores de envergadura, a exemplo de Pierre Broué e Emile Temime, dispensaram o devido valor e atenção a esses factos, escrevendo obras que se converteram em verdadeiros clássicos do género.

Ken Loach no seu filme conseguiu, com recursos muito limitados, fazer chegar ao grande público uma parte dessa história maldita. A estreia de Terra e Liberdade nas telas de cinema espanholas provocou uma intensa e apaixonada polémica em torno do tema da Guerra Civil, demonstrando que, apesar dos quase sessenta anos transcorridos, o espectro do movimento ainda se faz presente no país. Com este filme, Loach resgatou a história daqueles milhares de homens e mulheres, espanhóis e estrangeiros, que luitaram e morreram, não apenas no combate contra o fascismo, como também visando a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sem dúvida, o diretor foi muito além de uma homenagem histórica, oferecendo-nos uma mensagem de esperança, muito significativa nos tempos confusos que hoje vivemos. O público, surpreso, assiste e descobre uma das páginas mais intensas da história da Espanha e que não consta em grande parte da historiografia espanhola. Terra e Liberdade não aborda toda a história da Guerra Civil Espanhola. O filme concentra-se na ação de algumas personagens, combatentes do Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), e no processo de decadência e, finalmente, da trágica derrota do movimento revolucionário. Por isso, o filme acaba, de certa forma, sobredimensionando o papel histórico do pequeno POUM e, ao mesmo tempo, fazendo apenas referência às grandes organizações operárias, socialistas e anarco-sindicalistas atuantes na Espanha naquele momento. Para a realização do filme, Loach inspirou-se na obra de George Orwell e nas recordações de um dos seus amigos e companheiros de armas, Stafford Cottman. Os dous foram enviados à Espanha pelo Partido Trabalhista Independente da Inglaterra e combateram nas milícias do POUM, na frente de Aragão. Ambos conseguiram escapar da perseguição estalinista, depois dos combates em Barcelona, em maio de 1937, quando a Revolução Espanhola já havia sido liquidada. Terra e Liberdade conta a história de Dave, jovem britânico, que, sem emprego, decide ir para a Espanha luitar contra as forças fascistas. Dave abandona o seu país convencido de que o que está em jogo na Espanha não é apenas o destino de um país, mas a liberdade e a democracia mundiais, ameaçadas pela ascensão de regimes fascistas na Europa. Como militante comunista, ele acaba-se incorporando, por acaso, nas milícias do POUM. A história do filme mostra também a sua trajetória durante a Guerra e suas transformações político-ideológicas que não se farão sem resistências e vacilações. Sem dúvida, a solidariedade, representada, nesse caso, no exemplo de Dave, é uma das mensagens repetidas ao longo do filme. Algumas vozes críticas tacharam o filme de panfletário e maniqueísta, o que, de forma alguma, corresponde à realidade. Ainda que claramente comprometido com uma determinada visão da Revolução, Loach não cede à tentação de fazer um filme de “mocinhos e bandidos”, ao estilo dos épicos holywoodianos. Nas representações das personagens, apreendemos as suas contradições e diferenças ideológicas que, muitas vezes, ao invés de dividi-los, os unem. As personagens não são apresentadas como heróis idealizados ou inimigos cruéis, mas como indivíduos de carne e osso, com medos, contradições e indefinições. Isso é mostrado com o desenrolar dos acontecimentos, através dos sentimentos das personagens: as suas dores, tristezas, alegrias e a amizade que nasce no interior de um grupo de origens geográficas e políticas tão díspares e que se sentem unidos por uma causa comum.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

  • Terra e liberdade DVDTítulo original: Land and Freedom (Terra e Liberdade).
  • Diretor: Ken Loach (Reino Unido-Alemanha-Espanha-Itália, 1995, 110 min., a cores).
  • Roteiro: Jim Allen, segundo o relato de George Orwell.
  • Fotografia: Barry Ackroyd. Música: George Fenton. Montagem: Jonathan Morris.
  • Produtoras: BBC, BIM, British Screen, Canal Mais Espanha, Degeto Film, Diaphana Films, Eurimages e a European Co-production Fund.
  • Atores: Ian Hart(David Carr), Rosana Pastor (Blanca), Iciar Bollaín (Maite), Tom Gilroy (Lawrence),
  • Marc Martínez(Juan Vidal), Frédéric Pierrot (Bernard Goujon), Eoin McCarthy(Connor), Suzanne Maddock(Kim) e Andrés Aladren(membro da milícia).
  • Argumento: Após a morte do seu avô, uma adolescente decide vasculhar os seus documentos e descobre que ele era um veterano da Guerra Civil Espanhola. Durante a sua juventude, David Carr juntou-se ao Partido Comunista e logo se aliou ao POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista). Ele deixou a Inglaterra para lutar contra os fascistas na Espanha em 1936, vendo os seus sonhos e ideologias serem postos à prova. Era a meados dos anos 30, e David deixa a cidade de Liverpool para luitar pelos seus ideais numa guerra marcada pela polarização ideológica, uma das características que marcaram o período entreguerras, e que foi um dos acontecimentos mais marcantes da história do século XX. A crise desencadeada pela Primeira Guerra Mundial, aprofundada pela quebra da economia mundial após 1929, afetou praticamente todo o mundo, gerando grande desemprego e pobreza. Na Europa essa situação foi responsável pela “polarização ideológica”, ou seja, pelo desenvolvimento das forças populares de esquerda e, ao mesmo tempo, das forças reacionárias fascistas. Na Espanha, essa situação foi responsável pela Guerra Civil, de 1936 a 1939, quando um golpe militar, apoiado pelas forças de direita, provocou a divisão do país. O golpe, pretendia eliminar o regime republicano, instituído em 1931, responsável por uma série de reformas que desagradaram os setores mais conservadores do país, uma vez que os interesses de latifundiários e da Igreja Católica foram duramente atingidos. O conflito teve de um lado os republicanos apoiados pelos grupos de esquerda, comunista e anarquista, enquanto de outro encontravam-se os grupos fascistas e os setores mais conservadores. Enquanto a Alemanha e Itália ajudaram diretamente os fascistas espanhóis, Inglaterra e França adotaram uma política de neutralidade. A principal ajuda material foi dada pela União Soviética, que enviou armas e assessores; no entanto, o grande destaque do lado republicano, foi a das “Brigadas Internacionais”, grupos de voluntários de vários países, que foram combater na Espanha. No início de 1937, as Brigadas tiveram papel importante na vitória sobre tropas italianas. Em abril do mesmo ano, a aviação alemã, em apoio aos nacionalistas, bombardeou a cidade basca de Guernica.

TRAIÇÃO DO ESTALINISMO À REVOLUÇÃO ESPANHOLA:

Terra e liberdade foto 0Terra e Liberdade não é um filme romântico, assim como a Guerra e a Revolução não foram ideais românticos, mas uma dura prova para os revolucionários espanhóis na luita pela realização de seus objetivos e sonhos. A Guerra significa morte e dor, e isso é o que mostra o filme em muitos momentos, a exemplo da cena de morte de um dos milicianos, o irlandês Coogan, durante a tomada de um vilarejo. Tampouco, é preciso ressaltar, Terra e Liberdade é um filme maniqueísta. Isso Loach procura evitar com delicadeza. Ele denuncia a traição do estalinismo à Revolução Espanhola, mas nunca põe em dúvida a honestidade e o arrojo dos militantes comunistas que, convencidos de estarem fazendo o correto, transformaram-se, sem consciência, em peões de Estaline no jogo de xadrez internacional. Dave e Lawrence, por exemplo, são militantes honestos e revolucionários, como muitos comunistas que acreditavam no socialismo e que estavam convencidos de que Estaline e a URSS encarnavam os ideais socialistas. No filme, os dous tiveram que enfrentar a realidade, acabando, cada um, optando por caminhos diferentes. Dave, depois de muitas vacilações, integra-se definitivamente à milícia do POUM, onde estavam os seus amigos. Lawrence, convencido de que os seus companheiros de luita estavam equivocados, abandona-os para fazer parte das Brigadas Internacionais, organizadas e controladas por Estaline.Fernando Claudín, no seu célebre livro A crise do movimento comunista internacional, qualificou a Revolução Espanhola de “inoportuna“, ao se referir à postura estalinista no conflito. Para os dirigentes do Kremlin, a vitória de uma revolução na Espanha era contrária aos seus interesses e precisava ser combatida a todo o custo. Naquele momento, Estaline havia consolidado uma frágil aliança com a França e a Grã-Bretanha, que funcionava como um contrapeso à ameaça da Alemanha hitlerista. O estalar da revolução na Espanha interferia nos delicados mecanismos da diplomacia internacional. Ela poderia levar a uma aliança anticomunista da França e Grã-Bretanha com a Itália e a Alemanha. Por outro lado, uma revolução que fugia ao controle do Komintern, exercido através da liderança do Partido Comunista Espanhol (PCE), e que tinha uma forte influência do espírito libertário e do socialismo de esquerda, contando com a presença de organizações comunistas dissidentes, como o POUM, por exemplo, convertia-se numa grave ameaça à hegemonia estalinista na URSS e ao movimento comunista internacional. Era necessário impedir o triunfo da revolução e demonstrar aos novos “aliados” do Kremlin, a França e a Inglaterra, o valor desta aliança e em que consistiria a sua intervenção no interior de movimentos revolucionários que pudessem vir a ameaçar os seus interesses futuros. Fiel às diretrizes de Estaline e do Komintern, o PCE converteu-se no adversário mais tenaz das conquistas revolucionárias de julho de 1936. Em nome de uma hipotética “revolução burguesa“, que não deveria ser ultrapassada, o Partido defendia a necessidade de reconstrução do derruído aparelho de Estado republicano e de eliminação progressiva da multidão de organismos que haviam surgido no calor da Revolução.O filme revela-nos aspetos fundamentais para a compreensão da natureza socialista da Revolução Espanhola, frente a todos aqueles que pretendiam conseguir a quadratura do círculo, ou seja, limitar a sua realidade, que teimosa, obstinava-se em ir mais além, às estreitas causas da revolução democrática. Para representar esta ideia, Loach deleita-nos com uma das cenas mais emocionantes da película: a assembleia de camponeses e milicianos, o povo recém-libertado, organizada para decidir o futuro da terra, na qual fica estabelecido, pelo voto maioritário, a sua coletivização. O facto de a maioria dos camponeses optarem pela socialização das terras, frente àqueles que, simpatizando com a revolução, que os havia livrado do jugo dos fazendeiros, resistem a entregar as suas pequenas propriedades, é um dos elementos chaves para se entender o processo revolucionário. Nas cidades e no campo, milhares de operários e camponeses pobres coletivizaram, de forma completamente espontânea, os meios de produção, sem esperar pelas diretrizes dos seus partidos e sindicatos. O facto de um setor importante do campesinato espanhol ter alcançado um grau tão elevado de consciência socialista fez com que muitos afirmassem que a Terra e liberdade foto 6Revolução Espanhola foi, em muitos aspetos, mais profunda do que o movimento russo de 1917. Com a Revolução, os trabalhadores deram início à organização das novas bases da sociedade e, para isso, utilizaram os seus próprios métodos, a exemplo da democracia das assembleias. Alguns historiadores têm caracterizado a opção pelas coletivizações como um fenómeno que foi impulsionado por grupos extremistas. Sem negar que, como em todo o movimento revolucionário, existiram excessos durante a Revolução Espanhola, as coletivizações foram muito mais que experiências de “fanáticos esquerdistas”. Elas expressaram a vontade dos trabalhadores de superar coletivamente a exploração que os havia unido na miséria durante séculos. Quando, em 1938, as colunas do general estalinista Enrique Lister invadiram Aragão para destruir as coletividades, tiveram que enfrentar a dura resistência de parte considerável do campesinato. O objetivo do governo republicano e dos seus aliados não era, pelo menos naquele momento, devolver a terra a seus antigos proprietários, que estavam do lado dos franquistas, mas reparti-la em pequenas parcelas individuais, fórmula aceitável para uma República burguesa. No entanto, tiveram, finalmente, que retroceder, porquanto a apatia que se apoderava do campesinato, impedida de levar adiante os seus ideais coletivistas, ameaçava pôr a perder a colheita. Não seria isso uma prova irrefutável da consciência dos camponeses? Isso não demonstraria ainda o caráter socialista da Revolução Espanhola?

Outro elemento importante da Revolução, abordado pelo filme, é o papel e a atuação das milícias no processo revolucionário. Formadas precipitada e improvisadamente, as milícias quase não possuíam armamentos e os seus integrantes, na sua esmagadora maioria, não contavam com nenhuma formação militar. Elas tentavam compensar as suas limitações com a única força que podiam contar em abundância: o entusiasmo dos milicianos pela causa em luita. As cenas do quartel, onde as colunas de voluntários, armados com pedaços de madeira, se esforçam para aprender a marchar, refletem bem essa situação, com uma boa dose de humor. As milícias, em nada, pareciam com um exército clássico, no qual reinam a disciplina cega, a conduta apolítica, os uniformes, a continência, os privilégios e as castas. Pelo contrário: elas eram um espelho da nova sociedade igualitária a que aspiravam os revolucionários que nelas combateram. Um dos pontos que refletiam esse espírito igualitário, bem retratado pelo filme, é o papel desempenhado pela mulher no interior da organização. Blanca e Maite, duas personagens importantes do filme, eram respeitadas pelos seus companheiros, combatendo, ao seu lado, nas trincheiras e suportando as duras condições do front. Elas expressam-se nas assembleias e nos debates e as suas opiniões são escutadas por todos, através de um espírito de camaradagem e de solidariedade. Os comandantes convivem, em condições de igualdade, com o restante da tropa. A noção de privilégio encontra-se completamente ausente nas milícias. Nos momentos de combate, a milícia funciona por meio de assembleias, onde os seus integrantes debatem e tomam as decisões, através do voto maioritário. A heterogeneidade de suas origens políticas, muitas vezes, faz com que suas opiniões divirjam. No entanto, as diferenças são aceitas com naturalidade. Numa cena do filme, por exemplo, Lawrence, estalinista convicto, opina, durante uma assembleia camponesa, contra a coletivização da terra. Num outro momento, decide incorporar-se ao Novo Exército Republicano, por acreditar que as milícias não tinham condições de fazer face às necessidades do conflito naquele momento. No entanto, em nenhuma das duas ocasiões, os seus companheiros censuraram a sua liberdade de expressão ou a sua partida.

As milícias, com seus erros e limitações, constituíram-se num dos símbolos da Revolução. Orwell, na sua obra Homenagem à Catalunha, descreveu, deliciosamente, a perplexidade e a admiração que sentia um militante inglês ante o espírito igualitário dos revolucionários milicianos espanhóis, levado, às vezes, ao extremo grotesco. O principal mérito dos milicianos foi terem impedido que, nos primeiros momentos, a sublevação militar se convertesse em um passeio triunfal. As limitações de algumas milícias, improvisadas, com poucas armas e com uma reduzida formação militar, foram superadas no campo de batalha com o entusiasmo oriundo do facto de saberem que estavam luitando pelos seus próprios ideais. Porém, as limitações acabaram por se transformar, mais tarde, num obstáculo para a vitória definitiva. A dura realidade da guerra impunha a necessidade de que as milícias se convertessem em verdadeiros exércitos, capazes de superar os seus adversários no terreno militar. A mesmo tempo, os milicianos resistiam a integrarem-se ao Novo Exército Republicano, apesar de chantageados com a injusta divisão das armas e recursos materiais, devido ao facto de acreditarem que, mais cedo ou mais tarde, este se voltaria contra a Revolução que eles defendiam.

Terra e liberdade foto 2Dave, ferido durante um acidente, desloca-se para Barcelona para ser hospitalizado, exatamente em um dos momentos decisivos para o destino da Revolução. Cheio de dúvidas, pressionado pela situação, é levado, pela sua ideologia comunista, a ingressar nas Brigadas Internacionais. Entretanto, o cenário visto nas ruas de Barcelona o deixa confuso. A Revolução cede terreno por todas as partes, enquanto a velha ordem republicana levanta cada vez mais a cabeça. A abundância de armas contrasta com a penúria que sofrem os seus ex-companheiros nas trincheiras aragonesas. A realidade, vivida em Barcelona e contada através das duras palavras de Blanca, obriga-o a ter que optar entre os dous lados (estalinistas e milicianos), que estão a ponto de se enfrentar. Quando, finalmente, explodem os combates nas ruas de Barcelona, Dave participa, desconcertado, das fileiras comunistas do PSUC (o Partido Comunista Catalão), sem saber o motivo pelo qual está combatendo contra pessoas que estavam ao seu lado nas trincheiras, luitando contra o fascismo. A cena do filme, em que os combatentes (comunistas e milicianos), num intervalo da luita nas barricadas, dialogam entre si, retrata bem esta situação, com bastante humor. As jornadas barcelonesas de maio de 1937 selaram o final da Revolução Espanhola. Os dirigentes anarquistas, tendo que fazer face à provocação do assalto policial à central telefónica, que até aquele momento estava sob o controle sindical, vacilaram e retrocederam, demonstrando que não estavam dispostos a defender a todo o custo o movimento revolucionário, nem mesmo quando este se encontrava seriamente ameaçado. Junto aos seus adversários, acabaram por convidar os trabalhadores a largarem as armas e voltarem ao trabalho. O POUM, no dilema de ter que permanecer sozinho nas barricadas junto aos combatentes ou seguir os passos da CNT, para não ficar isolado, optou pela segunda alternativa. A situação foi rapidamente aproveitada pelas forças pró-governamentais no sentido de promover uma restauração da ordem republicana na Catalunha, que, em poucos meses, consegue desmantelar o que ainda restava da Revolução. Dave, confuso diante do que assistia, ao escuitar calúnias grosseiras e machistas de um grupo de jovens recrutas do Novo Exército dirigidas contra os seus ex-companheiros, decide, definitivamente, tomar o partido dos milicianos. A sua decisão é consciente e deixa para trás as últimas dúvidas que tinha sobre o papel “revolucionário” das Brigadas Internacionais na Espanha. Dave rasga a sua carteira de militante do Partido Comunista, numa cena que traduz simbolicamente sua rutura ideológica com o estalinismo, traidor da Revolução pela qual tanta gente, e, entre estas, ele e os seus amigos, estava dando as suas vidas, e retorna ao front, onde luitavam os seus camaradas milicianos. No entanto, a situação já não era a mesma de quando ele havia partido. As milícias, pressionadas pelo Novo Exército, caminhavam para a aceitação da sua direção. A sombra da reação já se encontrava no seio das milícias. Ainda que estas conservassem a sua essência igualitária, vêem-se obrigadas, cada vez mais, a ceder terreno. Mesmo assim, a carência de armas e de recursos materiais ainda persistia, contrastando com o abundante e moderno armamento com que contavam os guardas de assalto e o Novo Exército Republicano. O triunfo da contrarrevolução revela-se também no que concerne ao papel da mulher no interior do movimento. A igualdade entre mulheres e homens já não existia mais. O Novo Exército, ao qual as milícias haviam sido obrigadas a se incorporar, não permitia que as mulheres cumprissem as “funções masculinas”. Elas veem-se relegadas, mais uma vez, ao “lugar tradicional da mulher”: Blanca passa a trabalhar como enfermeira e Maite como cozinheira. Entretanto, elas ainda possuem o respeito e a consideração dos seus companheiros. Apesar de todas as imposições, o espírito revolucionário continua vivo. Embora que, oficialmente, pertencessem à estrutura do Novo Exército Republicano, as milícias não haviam perdido a sua natureza revolucionária. Por isso, o governo desconfiava tanto delas. Os seus integrantes não estavam dispostos a serem instrumentos cegos e obedientes da sua política. Em determinado momento, o esquadrão do qual Dave fazia parte recebe ordens para assaltar uma posição inimiga. Os milicianos combatem honrosamente e, depois de sofrer algumas baixas, conseguem ocupar o posto. No entanto, trata-se de uma cilada mortal. A operação é feita sem a prometida cobertura da artilharia. Uma vez conquistado o objetivo, os combatentes têm que resistir em condições penosas, sofrendo continuamente ataques do exército franquista, até que a defesa se torna praticamente impossível. As ordens que vêm do alto, aparentemente absurdas, buscam, na verdade, que os franquistas façam o trabalho sujo que o governo e os estalinistas não se atreviam a realizar. Finalmente, os milicianos têm que abandonar a trincheira, defendida durante muitas horas, sem ter recebido nenhuma ajuda, com um saldo de vários mortos e feridos. No momento em que os milicianos poumistas estavam-se recuperando da operação suicida, entram em cena as tropas do Novo Exército Republicano, equipadas com grandes camiões, uniformes e as modernas armas, ou seja, toda a infraestrutura de que careciam os combatentes do POUM. As tropas tinham ordens não de combater as forças franquistas, mas de dissolver e desarmar as unidades milicianas, além de deter os seus líderes, acusados de colaborar com o inimigo. A situação parece absurda. Homens que haviam luitado e arriscado as suas próprias vidas, durante meses de sublevação, eram acusados de traição. As tropas enviadas são formadas de jovens, crianças, adolescentes, recrutados à força e sem nenhuma consciência da causa pela qual têm que luitar. Os seus rostos estão cheios de medo e de desconcerto, os seus olhos falam-nos da sua falta de convicção. Estão ali porque não têm outra opção. A cena do desarmamento e dissolução da milícia parece inspirada no filme Noveccento, de Bertolucci, não obstante a sua carga dramática ser muito superior. A raiva e o desespero dos milicianos traduzem-se na expressão das suas faces, traídos pelos próprios companheiros de luita. Na mesma cena, reaparece a personagem de Lawrence, convertido num brilhante oficial do Exército Republicano. Nesse momento de tensão, as palavras de Lawrence não são muitas. Ele dirige-se aos antigos companheiros de armas, dizendo-lhes apenas: “os seus chefes enganam-nos“. Entretanto, as suas ações não demonstram o convencimento de antes. A tensão torna-se quase insuportável até que se inicia a tragédia, quando Blanca é assassinada. A morte de Blanca, não pelas balas franquistas, mas pelas do Exército Republicano, simboliza a morte da Revolução, que já se encontrava debilitada. De facto, com a derrota dos revolucionários nas ruas de Barcelona, em maio de 1937, a revolução já se encontrava mortalmente ferida. Os líderes anarco-sindicalistas haviam demonstrado que estavam dispostos a seguir o caminho da colaboração, apesar de verem as suas conquistas desfeitas progressivamente. Um grande abismo abriu-se entre as bases e os seus dirigentes. A partir daquele momento, o avanço da restauração não poderia mais ser detido. Os protestos da CNT e da Esquerda Socialista em nada adiantaram. Em meados do mês de julho, o secretário do POUM, Andreu Nin, foi detido e pouco depois assassinado. O poumismo foi posto na ilegalidade e os seus líderes presos e acusados de colaborarem com Franco. Apenas algumas semanas depois das jornadas de julho de 1936, o PCE lançou, através do seu aparelho de propaganda, uma vasta campanha contra o POUM, acusado de ser “um ninho de trotskistas, de traidores e aliados de Franco“. A obsessão do estalinismo não era casual, como tampouco o era a acusação de trotskista que se fazia aos dissidentes. Na verdade, o POUM, partido anti-estalinista, fruto da fusão do Bloco Operário e Camponês com a Esquerda Comunista Espanhola (grupo que havia rompido com Trotsky), era a única organização de esquerda espanhola que denunciava com firmeza os crimes de Estaline contra a velha guarda bolchevique (Zinoviev, Kamenev, Smirnov e tantos outros) e, devido a isso, havia ganhado o seu ódio eterno. Stalin, através do PCE e com o argumento de o seu país ser o único que “ajudava” a República, exigiu a ilegalidade e o extermínio dos militantes do POUM. As pedras do dominó continuaram caindo. Os sangrentos sucessos do maio barcelonês e a ilegalidade do POUM geraram uma crise no governo central, provocada pela sua ala direitista, atingindo o poder de Largo Caballero, muito reticente em submeter-se aos ditames estalinistas. Com a esquerda socialista e o anarco-sindicalismo debilitados e o POUM dissolvido, o PCE pôde controlar facilmente o reconstruído aparelho de Estado republicano. No entanto, a desmoralização e a apatia das classes operária e camponesa, ao se verem eliminadas das conquistas de julho, facilitariam a vitória do exército franquista.

Terra e liberdade é um convite à reflexão, não apenas sobre o passado, mas sobretudo sobre o presente e o futuro. O filme vai além da simples narração de um período histórico esquecido e posteriormente redescoberto pela neta de Dave, ao encontrar a maleta do seu avô, contendo cartas, recortes de jornais e documentos que relatam a sua história. Loach trata, de maneira bastante aprofundada, de um dos momentos mais extraordinários da história, em que o povo toma, com suas próprias mãos, a direção do seu destino, dispondo-se a transformá-lo no sentido de fazer uma sociedade mais justa e humana. O triste final do filme, bem qualificado por um crítico como “comovedora derrota“, é uma mensagem carregada de futuro. A frase de Dave, que corresponde a uma das suas últimas cartas, é um canto à esperança: “As revoluções são contagiosas. Se tivéssemos triunfado aqui, poderíamos ter mudado o mundo. Não se passou nada, já chegará a nossa hora”. E esta semente de futuro, nascida da derrota daqueles que quiseram construir o céu na terra, volta a surgir fortemente no espírito da sua neta, simbolizado no pano vermelho e no punhado de terra espanhola que atira sobre a tumba do seu avô. Por último, por que não repetir um dos comentários anónimos que fez um dos assistentes na estreia do filme: “Obrigado por nos devolver a nossa história“.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Com a técnica do Cinema-fórum, analisar o filme de Loach do ponto de vista formal e de fundo, além de debater sobre as diferentes personagens que no mesmo aparecem, os seus ideais e as suas condutas, as suas dúvidas e as suas decisões.

Elaborar pelos escolares uma monografia, ao estilo das da Biblioteca de Trabalho freinetianas, sobre os processos e factos que aconteceram na denominada “revolução espanhola”, durante os anos republicanos e os três da guerra civil. Na mesma devem ser incluídos textos, fotos, relatos e opiniões de historiadores importantes. Com toda a documentação podem organizar-se também amostras nos estabelecimentos de ensino.

Organizar um debate-papo entre docentes e alunos, depois de ler entre todos a crítica que sobre o filme fez um amante do bom cinema, na que diz: “Grande filme este. Um dos melhores que assisti nestes últimos tempos. Uma verdadeira aula de história do tempo presente. É curioso ver este filme ser vendido em bancas de jornal (pelo menos foi onde eu comprei). Mais um grande e maravilhoso drama do diretor Ken Loach, que foi o primeiro a contar a verdade sobre a guerra civil espanhola. Já vi alguns trabalhos sobre o tema, mas nada contado de maneira tão verdadeira como este. Baseado no livro “Luitando na Espanha” de George Orwell, o filme começa com a cena em que uma jovem chama o serviço de emergência, pois seu avô, David Carr, está gravemente doente e precisa ser levado ao hospital. Enquanto o avô está no leito de morte, a jovem ao arrumar os seus pertences encontra algumas cartas, recortes de jornal e um punhado de terra escondida em um velho lenço vermelho. Ao ler aquelas cartas e analisar os jornais, ela descobre que o seu avô foi um revolucionário e que havia lutado contra o fascismo na Espanha. Alguns dias depois o ancião vem a falecer. O filme é um vai e vem ao passado, mais precisamente à Europa dos anos 30, quando o jovem David Carr deixa o conforto da sua cidade Liverpool, para lutar voluntariamente por seus ideais na Revolução Espanhola. O sangrento confronto entre os comunistas e fascistas, um dos fatos históricos mais importantes do século 20, serve de pano de fundo para as discussões humanistas do consagrado diretor britânico. O filme conquistou diversos prêmios internacionais, além de revelar ao mundo o talento (em todos os sentidos), da atriz espanhola Rosana Pastor, que venceu o premio Goya Awards de 1996 por sua atuação. Ao ressuscitar a Guerra Civil Espanhola, Loach coloca em destaque um momento em que a esquerda, mundialmente, uniu-se em torno de uma causa. Simplesmente sensacional!”.

Wael Al-Dahdouh, Pablo González, Nilufar Hamedi e Elahe Mohammadi e Fran Sevilla, candidaturas ao XX Prémio de jornalismo José Couso

A república dos sonhos já tem a sua Unidade Didática

Almôndegas de tofu

Uma esquina e muitas vozes

Portugalego, nova digressão do poeta Juan Carballo

234 estudantes da IES Concepción Arenal de Ferrol começam a falar galego

Wael Al-Dahdouh, Pablo González, Nilufar Hamedi e Elahe Mohammadi e Fran Sevilla, candidaturas ao XX Prémio de jornalismo José Couso

A república dos sonhos já tem a sua Unidade Didática

Almôndegas de tofu

Uma esquina e muitas vozes