Letras Galegas, 2018: algo que celebrar?

Partilhar

Mais um ano chegamos neste maio ao Dia das Letras Galegas, uma celebração instituída pela Real Academia Galega, e mais um ano perguntam-nos os nossos amigos dalém-fronteiras e além-mar por quê é que são sistematicamente ignorados para essa honra destacados vultos das nossas Letras como Ricardo Carvalho Calero, Ernesto Guerra da Cal ou Jenaro Marinhas del Valhe (que foi Presidente de Honra das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, e derradeiro representante das IF históricas)?

“Será que a Real Academia é real e académica, mas se esquece de ser Galega? Como pode negar dez vezes, ano após ano, a um dos filhos mais ilustres da sua Nação uma honra que obviamente merece? […] não estará a Real Academia dando-nos o recado que Carvalho Calero nunca será escolhido? Ao menos que haja a coragem de nos dizer porquê. O silêncio também será uma eloquente resposta. Eloquente, mas cobarde” (assim escrevia o jornalista português Carlos Loures lá no 2011).

Passados os anos, nada mudou. Ou sim. Diz-nos agora um relatório dessa RAG que o galego deixou de ser a língua maioritária da Galiza. Algo a ver com a política linguística das instituições autonómicas? Lembremos que a RAG é uma delas, financiada com fundos públicos. E lembremos também que:

“Hoxe podemos dicir que o ILGA está practicamente integrado na Academia” (Xosé Ramón Barreiro, anterior Presidente da RAG, na revista Grial, outubro 2007).

Esse ILG (também custeado com cargo a fundos públicos), o denominado “Instituto da Lingua Galega”, foi presidido por Constantino García González (que presidiu assim mesmo o departamento de “Filoloxía” românica da USC), quem declarou a um membro das Irmandades da Fala:

“Eu non teño nada que discutir con ninguén. Eu teño o poder agora e solo teño que poñer a miña xente nos postos claves e de poder. Será Carballo Calero, en representación da Academia Galega, quen terá que explicar a súa normativa. El non ten o poder”. E também disse: “nós non debatemos nada mentras teñamos o poder” (José Paz).

Então parece que vai ficando claro para os nossos amigos que esse “porquê” não é cultural, nem científico, mas político. E assim, não admira que também Ernesto Guerra da Cal seja anatematizado por ter revelado essa trapaça linguística do “galego autonómico”:

“Eu, sem pejo nenhum, afirmo aqui o meu orgulho de ter sido o primeiro escritor galego, desde o Ressurgimento, a levar a vias de facto essa tão repetidamente desejada aproximação da nossa língua escrita ao português […] Em 1959 fui de facto “iniciador dessa reintegração” no meu poemário Lua de Além-Mar, com o que abri fogo nessa batalha […] Esse apelo não caiu em saco roto. Nele teve princípio a corrente “reintegracionista” contemporânea – na que hoje enfileira o melhor e mais capacitado da nossa mocidade. […] os que neste momento detêm o poder autonómico – clientes e agentes do Estado Central […], que, de colaboração com algumas entidades “isolacionistas” esclerosadas, engenhou e “oficializou”, de maneira maleficamente subreptícia, umas aberrantes Normas cujo evidente propósito é condenar o galego ao languidescimento como dialecto – do espanhol […]. (“Antelóquio indispensável”, in Futuro Imemorial. Manual de Velhice para Principiantes, Lisboa, Sá da Costa, 1985, pp. 9-11. Recolhido em Vol II, 1986, de Temas de O Ensino, nºs 6/10, “Linguística, sociolinguística e literatura galaico-luso-brasileira-africana de expressão portuguesa”).

E ainda: “Fui pioneiro do “reintegracionismo” e hoje dou um novo passo à frente como primeiro escritor galego a abraçar o “lusismo integral”; sem ter para isso, já se vê, que abjurar da minha identidade galaica.  Bem ao contrário, é assim que eu completo a minha integração individual no mundo lusíada –que é a última etapa da minha ‘peregrinatio’ íntima.  E posso respirar bem fundo.  Porque a língua portuguesa é o meu lar perdido e reencontrado” (ibid.).

Caberia pensar que o “reintegracionismo” é algo alheio, e desconhecido para a maioria dos galegos, mas como explicar então, por exemplo, os reiterados depoimentos do correspondente da RAG e recentemente homenageado Fernando Pérez-Barreiro Nolla (pela publicação dos seus Poemas do Carricanto) deste teor?:

“En Galicia, a clase traballadora, maiormente rural, falou portugués, máis e máis debilitado e contaminado co decorrer do tempo, e a clase dominante falou castelán” (F. Pérez-Barreiro Nolla: “Amada liberdade”, Eds. Xerais, Vigo, 2013, pp. 243-4); “É certo que o galego de seu é a mesma língua que o portugués, mas por razóns históricas, políticas … deixou de estar no mesmo ámbito que o portugués” (id., “¿ESTAMOS NO MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA?”, março 2007).

E também: “Portuguese is the promised land for Galician. At present, however, everything seems to conspire against the fulfilment of that promise. This should not necessarily preclude the possibility of a reintegration which seems to me, however difficult it may be to achieve, the only legitimate solution, since it would be based on the historical and philological grounds of the original identity of the language. Further, it is the only one possible, in view of my belief that the present linguistic policy of the Galician authorities offers the language no future other than dialectization.” […] “The ultimate aim of reintegrationism should ideally be the acceptance by a large majority of Galicians of the fact that Portuguese is the language of which they have been deprived by history and that its recovery would contribute to the assertion of Galician distinctiveness.” (id., Which Language for Galicia? The Status of Galician as an Official Language and the Prospects for its “Reintegration” with Portuguese, revista Portuguese Studies, vol. 6, pp. 191-210, 1990, Department of Portuguese, King’s College, Londres; na Rede).

Será então um caso moderno, enquanto os escritores do “Rexurdimento” escreviam num “galego de seu”? Mas o que pensar da ortografia histórica de Pondal (que escrevia no “verbo do gran Camões, fala de Breogán”)?, ou dos supostos “lusismos” da própria Rosalia (também recentemente lembrada, no “Dia de Rosalia”), como nuben, cantarte hei, confesón, bon Dios?

Como também os sistematicamente ignorados testemunhos de toda a história da língua, dos que basta um exemplo:

“A análise de todos os pergaminhos do mosteiro de Oia denota a total preponderância idiomática de uma língua comum às regiões do sudoeste da Galiza e do noroeste de Portugal, a qual se pode considerar como sendo português ou galego, dependendo do ponto de vista linguístico que se queira aplicar. A questão realmente relevante é que se trata do mesmo idioma, que se afigura como sendo a língua materna dos notários de ambas as margens do rio Minho” (Ana Paula Leite Rodrigues, “Nos dois lados do rio Minho”, I.E.V., Vigo, 2017, n. 91).

Mas nada disto preocupa os detentores desse poder institucional que menciona Guerra da Cal, ao imporem uma ortografia pretensamente “oficial” e fugirem da 6ª estrofe do pondaliano hino galego: “Á nobre Lusitania os brazos tende amigos”.

Não surpreende que os galegofalantes abandonem a sua língua materna, ao verem-na “oficializada” pelo Estado Espanhol como um dialeto do castelhano, até nos nomes dos dias da semana, tradicionalmente os mesmos que na Lusofonia (segunda feira etc.) mas hoje inventados com base no castelhano, com o resultado vulgar de formas acastrapadas como miércoles, ghuebes etc., felizmente contra-arrestados por campanhas de coletivos reintegracionistas como a AGAL (Associaçom Galega da Língua).

A política de avestruz das instituições autonómicas ignorou ainda a Lei Paz-Andrade, aprovada por unanimidade no Parlamento galego em 11 de março de 2014 (“Lei para o Aproveitamento da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia”), por considerarem que isso nada tem a ver com a Galiza, igual que no seu dia ignoraram a adesão galega ao Acordo Ortográfico de 1990 (conseguida graças a uma Comissão Galega integrada por pessoas que anos depois viriam a formar parte da AGLP-Academia Galega da Língua Portuguesa). Assim, na altura, o diretor do “Instituto da Lingua Galega”, Antón Santamarina, declarou a La Voz de Galicia, em 17 janeiro 1991, que o Acordo assinado em Lisboa não tinha interesse para a Galiza. Mas já anos antes Ramón Lorenzo, um dos redatores das normas ortográficas e “morfolóxicas” do ILG, declarara: “No nos interesa una normativa para que nos entiendan en Angola, Mozambique, o Brasil” (em: La Voz de Galicia, 4 julho 1982, p. 51).

Lembremos que vários presidentes da RAG têm afirmado que o galego literário nasceu praticamente no século XIX (vide p.ex. J. Alonso Montero, “Luis Luciano Bonaparte promovió la traducción gallega del Evangelio de San Mateo”, La Noche, 6/12/58; e X.L. Méndez Ferrín [“a literatura nacional de Galicia nace con Sarmiento”], nos mins. 3.48-4.08 de Fronteiras ), e consideram alheia ao “galego” a fonética da Baixa Límia (com as sibilantes e palatais fricativas sonoras, vide p.ex. seq.), ao tempo que consideram “galego” as falas dos concelhos estremenhos de Valverde del Fresno, Eljas e San Martín de Trevejo.

Mas, afinal, conseguiram o alvo tão almejado pelo velho franquismo: o “gallego sano y bien entendido”, ou seja “para que nos entiendan en” quatro províncias os restos da minoria rapidamente decrescente de galegofalantes.

Fica alguma esperança? Fica, mas não nessas instituições financiadas pelo Estado Espanhol. Sim nas organizações reintegracionistas e associações cívicas mais ativas, nos grupos e coletivos de base, autofinanciados, e nas mães e pais daquelas comunidades, rurais ou urbanas, que continuam a transmitir aos seus filhos a língua própria da Galiza, aberta ao mundo da lusofonia.

Deixemos, pois, as palavras finais ao Ramón Lorenzo (um dos fundadores do ILG, e experto em “filoloxía”): “qué desgracia ten o galego en caer en mans de xentes que non debían estar co galego ás voltas” (in: “Actas” do Colóquio de Tréveros, de 1980, publ. pela “Xunta de Galicia”, Santiago, 1982 [parece que não havia por ali um espelho à mão…]).