Os lerandantes não abundam, mas existem os suficientes para toda a gente ter passado por algum em alguma ocasião. O que não é costume é coincidirem dois a escrever o mesmo livro, que, na verdade, são dois livrinhos, um de ortografia e outro de pronúncia. Mas o que é verdadeiramente extraordinário é que autores de manuais para falar e escrever corretamente inventem uma palavra para se explicarem a si mesmos, como se não houvesse palavras bastantes nos dicionários que listam nas suas Referências Bibliográficas. E é nesta minudência que o estudante já irá começando a perceber que Ortografia/Pronúncia do Português Passo a Passo (Através Editora) não se pode agrupar junto dos compêndios de fonética/ortografia do costume. Desde a primeira página, o teor pedagógico impõe-se à rígida sistematização que orienta a maior parte destes manuais. Não esperará outra coisa quem continuar a ler esta entrevista ou conhecer o dilatado percurso didático destes dois professores de língua portuguesa nas Escolas Oficiais de Idiomas da Galiza. [Nota: as respostas a esta entrevista foram consensualizadas por Valentim e Joseph.]
Os manuais de ortografia e fonética também se conseguem lerandar?
O verbo lerandar, criado polo Valentim, descreve uma prática de ler ao caminhar, que temos os dous em comum, mas não recomendamos — se alguém bater com um poste da luz ou for imprecado pola rua, nós não ficamos responsáveis!
O Valentim leranda quando deixa a miúda nalguma atividade e, em lugar de esperar num bar com uma banda sonora impossível, avança pelos muitos parques de Compostela, às vezes meditabundo, outras furibundo, sempre felizmente errabundo.
O Joseph leranda quando vai para o trabalho, polo Passeio Marítimo da Corunha, que tem umas balaustradas a uma altura ótima para fazer anotações nos livros. Para ler, inspira-se o barulho do mar, do vento, do bule-bule da cidade, ou o tlim-tlim de uma chávena de café.
Cremos que estes manuais não se lerandam bem, por causa dos exercícios e dos áudios — sugerimos a sombra de um castanheiro ou o café preferido.
O livro que assume que a ortografia e a fonética se podem explicar. Como se organizaram os conteúdos de forma a conseguir este objetivo.

O primeiro desafio é arrumar os conteúdos em capítulos e que estes mostrem uma progressão do mais simples ao mais complexo. O título passo a passo não é apenas uma frase, mostra uma intenção.
Dentro de cada capítulo, o próprio título já tenciona ensinar/aprender. Por exemplo, ao abordar a passagem do fonema [o] para [u] nas vogais átonas, uma epígrafe como FECHA A BOCA COMO O CROCODILO, já nos “instala” no mapa.
Para as diferentes secções dos capítulos recorremos a metáforas náuticas. No foco aparece a imagem de um farol, o de Hércules, por sinal, e aí mostramos o que vai ser trabalhado, ou navegado. A seguir surge o pormenor, com a imagem de uma luneta, onde explicamos o que é relevante com um equilíbrio, é a nossa intenção, entre o sintético e o analítico. A teoria deve ser praticada e passamos agora para a secção de marrar e desamarrar. A imagem agora é a de uma gaivota pousada na bitola de um cais, e aí aparecem exercícios que, no caso do manual de pronúncia, possuem evidentemente apoio sonoro. Por fim, cada capítulo conclui com a grumete pergunta, onde uma grumete de ficção tem dúvidas com algum dos conteúdos e pede ajuda a quem está a ler. Tanto nesta secção como na anterior, as soluções aparecem logo a seguir num tamanho de letra menor, evitando desta forma termos que ir até ao final do livro.
Relativamente à IA, assume-se que pode pôr em questão a utilidade destes livros, nomeadamente quanto à ortografia. Mas dominar a ortografia ajuda a escrever, não ajuda?
Falamos disso no livro, mas nesta entrevista pareceu-nos mais interessante interrogar o próprio “réu” — neste caso, a ferramenta de IA Deepseek. A pergunta colocada foi: faz sentido escrever um livro sobre ortografia nos tempos da IA? A resposta foi: “Absolutamente, sim”.
A IA dá o mesmo argumento que nós destacamos no livro: a aprendizagem da ortografia torna os aprendizes mais autónomos.
Além disso, em apoio da aprendizagem da ortografia, a IA refere os seguintes argumentos adicionais: cognição e desenvolvimento mental; maior capacidade para discernir os sons; prática da capacidade de observação e concentração; atenção à origem das palavras; capacidade para quebrar conscientemente as próprias regras ortográficas, por exemplo com fins humorísticos ou publicitários; credibilidade e profissionalismo, nomeadamente em contextos em que a tecnologia não está à mão.
Então, se a própria IA admite as suas limitações, não queiramos ser mais papistas que o papa…
O livro contém reflexões interessantes sobre o papel do sotaque nativo (o volume da Pronúncia) ou da pontuação (o volume da Ortografia) na aprendizagem do português como língua estrangeira (PLE). Acham que podem ser úteis para docentes doutras LE?
Com efeito, no prólogo perguntamo-nos se a aquisição de um sotaque apelidado de nativo deve ser o objetivo da didática da pronúncia. Em primeiro lugar, referimos vários argumentos a favor. Por exemplo, as pessoas costumam ser aplaudidas quando se aproximam dos falantes nativos na sua pronúncia. Logo a seguir, questionamos essa ideia: é mui difícil definir o que é o tal sotaque nativo, dadas as variedades geográficas e sociais; mui poucas pessoas conseguem de facto “passar” por falantes nativos; a pronúncia com marcas da língua (ou variedade) materna faz parte do acervo de sotaques de uma língua; e outros…
Em suma, defendemos que a exposição extensiva a sotaques “nativos” de diversas variedades sociais e geográficas é fundamental, sim, na aprendizagem. No entanto, julgamos que os objetivos devem definir-se em termos comunicativos. Espera-se que os estudantes se sirvam de uma variedade de língua que seja reconhecida como fazendo parte do português, e que permita transmitir os significados desejados com naturalidade. Mais do que mimetizar um sotaque específico, o esperado é que cada estudante desenvolva uma variedade própria, porventura com influência maior de uma variedade geográfica, mas também com marcas de outras (e da sua própria variedade materna), e, ainda, com variações dependendo do contexto de uso.
Defendemos que a exposição extensiva a sotaques “nativos” de diversas variedades sociais e geográficas é fundamental, sim, na aprendizagem. No entanto, julgamos que os objetivos devem definir-se em termos comunicativos.
Estas reflexões podem ser de interesse para qualquer docente de língua, mas nós não dizemos nada novo. É uma questão já abordada na bibliografia sobre didática de línguas, com visões nem sempre consensuais.
À diferença do sotaque, a pontuação não costuma ser uma das prioridades dos estudantes no início dos cursos de português. Assume-se às vezes que é algo que deve vir aprendido “da casa”, ou que depende da inspiração ou estilo de cada um.
Nós entendemos que aprender português (ou qualquer língua) é também melhorar a competência linguística geral através do português. A pontuação, que depende em grande medida da sintaxe, é fundamental para transmitir com clareza as mensagens. Uma pontuação deficiente compromete a compreensão do texto e a imagem de quem escreve. Além disso, alguns aspetos da pontuação são comuns, mas outros específicos de cada língua. Por exemplo, o travessão português não se usa exatamente como o guión largo do espanhol ou o dash do inglês.
A Galiza está presente nas explicações?
Haveria que se esforçar para que assim não fosse e preferimos investir as nossas energias noutras searas. Os materiais didáticos feitos a partir da Galiza, para um público global, podem servir para veicular aspetos concretos da realidade galega. Isto pode ser feito por meio de explicações específicas sobre a variedade galega da língua, por exemplo, a realização fonética do ditongo <ou> ou o desafio de usar a letra <x> apenas quando for preciso, bem como a inserção de elementos textuais ou paratextuais que tornem visível a Galiza. Entre os elementos textuais, incluem-se as frases de exemplo com referências à toponímia galega; entre os segundos, elementos visuais como a inserção da Torre de Hércules.
Um livro “made in Galiza” com foco na pronúncia da “variedade portuguesa”, mas útil para “qualquer pessoa interessada no português” seja qual for a variante do mesmo. É a primeira vez que isso se faz, mas como isso se faz?
No prólogo, com efeito, diz-se ser um livro “made in Galiza”, mas não apenas “made for Galiza”. Aonde pretendemos chegar com isto?
No prólogo, com efeito, diz-se ser um livro “made in Galiza”, mas não apenas “made for Galiza”.
Quem cria materiais didáticos de português na Galiza pode fazê-lo a pensar exclusiva ou prioritariamente em estudantes que têm o galego como referência. É uma opção inteiramente válida e que tem dado frutos de já provada utilidade, como do Ñ para o NH ou Portugalizar.
Ora, também podemos levar o jogo para fora do nosso terreno. Se de facto nos assumimos como parte do universo da língua portuguesa, não é natural que criemos materiais didáticos para um público-alvo mais alargado? Em grande medida, a nossa pertença a um espaço de língua portuguesa depende do que fizermos nos jogos fora de casa. Nesses relvados, os contributos concretos e aproveitáveis noutras latitudes poderão encontrar ouvidos atentos.
Estamos a fazer com isto algo novo? Na verdade, não.
Por um lado, nada impede que se escreva um livro de didática do francês na Roménia, ou de didática do alemão em Manaus, visando públicos-alvo alargados. Por outro lado, na bibliografia sobre o português também há livros com esse espírito, como o magnífico Manual de Língua Portuguesa, de Paul Teyssier, cujas alusões ao francês não impedem que seja um livro útil para outros públicos-alvo.
Por fim, os estudantes de português, cá na Galiza, respondem a um perfil cada vez mais variado. Para alguns, com efeito, o galego será a ponte para o português; para outros, que não falam galego habitualmente, ou recém-chegados de outras geografias, o português poderá despertar a curiosidade polo galego. E os dous percursos podem ocorrer simultaneamente na mesma pessoa. Portanto, faz cada vez mais sentido escrever manuais a pensar em perfis diversos.
A pronúncia do atual galego comum cabe na Lusofonia?
Não temos dúvida de que cabe na Lusofonia. Isso transparece muito claramente na esfera musical, em eventos como os Cantos na Maré, onde, por exemplo, também tem tido inteiro cabimento o cabo-verdiano. No entanto, creio que a pergunta relevante, e de difícil resposta, é se os sotaques galegos contemporâneos são identificados como uma forma de português polas comunidades linguísticas dos países de língua portuguesa.
Do ponto de vista estritamente linguístico, acreditamos que o sotaque galego tem ingredientes para caber, sim, numa língua comum portuguesa, bem como o sotaque do Quebeque cabe na língua francesa. Referimo-nos a um sotaque galego rico foneticamente, nomeadamente no que toca às vogais.
No entanto, o que faz a grande diferença não são os ingredientes do código em si, mas a perceção dos falantes, que em grande medida depende da familiaridade, contactos prévios ou preconceitos linguísticos a respeito dos marcos da sua língua. Nesta perspetiva, polo menos no que se refere a Portugal, temos a impressão de que os sotaques habituais do galego contemporâneo em muitos casos não são logo-logo identificados como uma forma de português polos falantes do outro lado da raia.
Vamos responder agora a partir da experiência de aulas: quando perguntados pelas suas prioridades de aprendizagem, os estudantes de português frequentemente referem o sotaque. Porquê? Pois em muitos casos porque tiveram experiências em que sentiram que o sotaque era, sim, um entrave — não para se fazerem entender, mas para que a conversa em português fluísse. Contestar essas experiências no terreno com palavras de ordem ou lugares-comuns sobre a unidade da língua creio que seria insultar a inteligência dos estudantes e abusar da nossa posição de poder enquanto docentes.
Em suma, acreditamos que um sotaque galego com cromatismo fonético pode entrar no pentagrama sonoro da língua portuguesa, mas falta muito contacto e conhecimento mútuo para que o líquido vaze fluidamente no recipiente. Entretanto, o que nos cabe a docentes e estudantes é lidar com um paradoxo: por um lado, procurar a clareza comunicativa numa forma de língua que seja percebida como português; por outro lado, manter o trânsito fluente entre a nossa e outras variedades da língua, sem as tornar mutuamente estrangeiras. A vida é assim, não há ação possível sem um grãozinho de contradição — quem vai fazer desporto para melhorar a saúde, poderá ter uma lesão; que vai morar no campo para melhorar o ambiente, polui com as deslocações frequentes de carro; quem aprende português na Galiza, vai topar-se nalgum momento com os ditongos nasais e o “s” sonoro. Não adianta sofrer por isto: por vezes é mesmo do lusco-fusco do paradoxo que nasce a faísca de uma ideia.
Numa só palavra, que conselho daria cada um de vós a um estudante galego de português.
Valentim: mergulhar.
Joseph: apreciar.
