Estou a recuperar para a minha série de grandes vultos da Lusofonia aqueles que, especialmente no Brasil e em Portugal, se dedicaram à sétima arte do cinema, e que chegaram a ter uma destacada filmografia que ficou para a posteridade, para desfrutar das imagens dos seus filmes, tanto jovens como pessoas adultas. É por isto que, dedico o presente depoimento a um cineasta do chamado “novo cinema” brasileiro. Estou a referir-me a Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). O presente artigo dedicado a ele faz o número 70 da série que estou a escrever sobre os grandes vultos da Lusofonia, e o 182 da série de grandes vultos da humanidade iniciada no seu dia com Sócrates, o grande educador grego da antiguidade.
UMA PEQUENA BIOGRAFIA
Nascido no Rio de Janeiro a 25 de maio de 1932, filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade (fundador do IPHAN) e de Graciema Prates de Sá, Joaquim passou a infância no Rio e em Minas Gerais entre os mais importantes intelectuais brasileiros da época. Manuel Bandeira era tão amigo da família que acabou sendo o seu padrinho de crisma. Em 1950, iniciou a sua graduação em Física na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio, onde frequentava o Cine Clube do CEC, criado por Saulo Pereira de Melo e Mário Haroldo Martins. Recebeu a influência de Plínio Sussekind Rocha, professor de mecânica analítica, teórico e defensor do cinema mudo e fundador do Chaplin Club.
Nessa época, Joaquim escrevia sobre cinema no jornal da faculdade e chegou a fazer experiências com cinema amador. Namorou com Sarah de Castro Barbosa, com quem se casaria mais tarde. Entre as experiências cinematográficas da época, atuou no filme Les Thibault, de Saulo Pereira de Melo, e trabalhou como assistente de direção na curta-metragem Caminhos, de Paulo César Saraceni.
A sua troca definitiva da física pelo cinema viria em 1957, mas antes de sua primeira experiência profissional como assistente de direção do filme Rebelião em Vila Rica, foi obrigado pelo pai a fazer um estágio em Congonhas, na restauração da obra Os Passos da Paixão, de Aleijadinho. O seu primeiro filme como diretor foi a curta-metragem O Poeta do Castelo e o Mestre de Apipucos, financiada pelo Instituto Nacional do Livro. O filme regista a intimidade do poeta Manuel Bandeira e a do escritor e sociólogo Gilberto Freyre.
Em 1950, iniciou a sua graduação em Física na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio, onde frequentava o Cine Clube do CEC, criado por Saulo Pereira de Melo e Mário Haroldo Martins. Recebeu a influência de Plínio Sussekind Rocha, professor de mecânica analítica, teórico e defensor do cinema mudo e fundador do Chaplin Club. Nessa época, Joaquim escrevia sobre cinema no jornal da faculdade e chegou a fazer experiências com cinema amador.
Em 1960 ele produziu a curta-metragem Couro de Gato, filmada no morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, e fotografada por Mário Carneiro. Contemplado pelo governo da França com uma bolsa de estudos, foi estudar cinema na França. Em 1963, foi convidado para dirigir o documentário Garrincha, Alegria do Povo, ideia de Luís Carlos Barreto, que o produziu e roteirizou, ao lado de Armando Nogueira. Em 1965, fundou a produtora Filmes do Serro e iniciou as filmagens de O Padre e a Moça, com Paulo José e Helena Ignez. Preso pela Ditadura militar em 1969 e libertado alguns dias depois, começou a filmar Macunaíma, o seu maior sucesso de crítica.
Casou-se pela segunda vez em 1976, com a atriz Cristina Aché com quem teve dois filhos e a quem dirigiu em Guerra Conjugal e Contos Eróticos. Vítima de cancro no pulmão, morreu aos 56 anos, antes de realizar o seu projeto de adaptar Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre para o cinema. Em 2006, durante o Festival Internacional de Cinema de Veneza, foi-lhe dado uma secção especial com uma retrospetiva completa da sua cinematografia. O festival exibiu seis longas-metragens restaurados em formato digital 2K pela sua filha, a também cineasta Alice de Andrade.
Faleceu na sua cidade natal, Rio de Janeiro, a 19 de setembro de 1988.
Nota: Mais informação sobre a sua vida e obra pode encontrar-se nas ligações de scielo.br, filmaffinity.com, adorocinema.com, e na wikipedia aqui e aqui.
FICHAS DOS DOCUMENTÁRIOS E FILMES
A.-Documentários
0.-Joaquim Pedro de Andrade.
Duração: 5 minutos. Ano 2012.
1.-J. P. de Andrade: Obra completa restaurada (trailer).
Duração: 2 minutos. Ano 2018.
2.-O Cinema de Joaquim Pedro de Andrade.
Duração: 9 minutos. Ano 2015.
3.-O Padre e a Moça de J. P. de Andrade.
Duração: 21 minutos. Ano 2020.
4.-Diverso: Joaquim Pedro de Andrade.
Duração: 14 minutos. Ano 2014.
5.-Entrevista a J. P. de Andrade.
Duração: 57 minutos. Ano do vídeo: 2020.
6.-Obra e vida de J. P. de Andrade.
Duração: 13 minutos. Ano 2014.
B.-Filmes
1.-Garrincha, Alegria do Povo (filme completo de 1963).
Duração: 61 minutos. Ano de restauro do filme pela Cinemateca Brasileira: 2006.
2.-Couro de Gato (1960).
Duração: 16 minutos. Ano de restauro: 2019.
3.-O Padre e a Moça (1965).
Duração: 86 minutos. Ano de restauro: 2018.
4.-Macunaíma (1969).
Duração: 99 minutos. Ano de restauro: 2018.
5.-O Aleijadinho.
Duração: 23 minutos. Ano do vídeo: 2019.
ANÁLISE DA SUA OBRA CINEMATOGRÁFICA
Por considerá-lo de grande acerto e interesse, apanho da Enciclopédia “Itaú Cultural” o texto que coloco a continuação.
Entre os cineastas do cinema novo, Joaquim Pedro de Andrade é o que mais demonstra a afinidade do grupo no diálogo com a literatura brasileira. Os seus primeiros filmes, O Mestre de Apipucos e O Poeta do Castelo são documentários com forte impulso ficcional, que registram o cotidiano do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) e do poeta Manuel Bandeira (1886-1978), nomeadamente. Semelhantes nos elegantes movimentos de câmara e na narração verbal com a voz dos retratados, as curtas acabam por compor dois estilos distintos da vida intelectual do país. Freyre apresenta-se como um senhor da casa-grande, dentro de uma propriedade reduzida ao jardim rústico, em ações que insinuam uma persistente situação patriarcal. Bandeira é o homem urbano, de uma cidade que reflete a sua própria solidão, resgatado por uma arte própria que o transporta para o território de sua invenção – Pasárgada.
Em Couro de Gato, observação social e convicção lírica se unem à vertente política de um cinema novo embrionário. Coincidente com os objetivos da produção cepecista, realizado antes da idealização do longa Cinco Vezes Favela, o episódio de Joaquim Pedro retrata as peripécias de um grupo de garotos do morro que, durante o Carnaval, consegue dinheiro com a venda de gatos roubados, que têm o seu couro utilizado na fabricação de pandeiros. Um dos garotos rouba um lindo gato de uma madame, situação que opõe a rica zona sul do Rio de Janeiro à pobreza dos moradores das favelas. Apesar do apego ao gato, inclusive dividindo com ele parte de seu modesto lanche, troca-o, enfim, por dinheiro: com a responsabilidade precoce de sobreviver às próprias custas, resta a ele enxugar as lágrimas enquanto a câmara o focaliza de costas, em plano geral, descendo a favela, possivelmente para um novo assalto.
Garrincha, Alegria do Povo descreve a biografia do jogador, apresentando lances e dribles que o deixaram famoso e, na sua parte final, abandona o mito do jogador e se dedica à paixão do torcedor. O seu primeiro longa de ficção, O Padre e a Moça, é criado devido à sugestão de um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Diálogos ambíguos explicitam aos poucos os relacionamentos escusos que tanto o espectador quanto o novo padre, que chega a um lugarejo decadente de Minas Gerais, conseguem captar nas sombras e nos cantos das casas e da igreja. A protagonista luta para ter uma vontade própria, mas, subjugada pelos homens do local, busca ajuda no titubeante padre, o auxílio para escapar à opressão. Esta é uma forma subtil de mostrar um Brasil preso a formas socioeconómicas arcaicas, em que predominam a repressão e o patriarcalismo.
Desde então, o cineasta realizou diversas adaptações literárias. Nelas se veem não apenas o encontro do realizador com o tema desenvolvido pelo escritor (o chamado respeito e fidelidade ao original), mas um embate reflexivo e crítico com as próprias obras literárias, procurando extrair uma ponte entre a criação escritural e o compromisso do cineasta com a época de realização dos filmes e com sua visão pessoal da cultura brasileira.
Macunaíma, o seu primeiro filme colorido, promove uma “radicalização ideológica” no romance de Mário de Andrade (1893-1945), propondo uma reflexão voltada tanto para a questão do mito da identidade nacional e da fundamentação ética de um herói brasileiro quanto para a constatação de um processo antropofágico institucionalizado, segundo o qual o Brasil devora os brasileiros pela miséria e pelo subdesenvolvimento em estado perpétuo.
Coproduzido pela Rádio e Televisão Italiana (RAI), em plena ditadura militar e no ano dedicado à comemoração dos 150 anos da Independência do Brasil, realiza Os Inconfidentes. Numa perspectiva distante da oficial, traz ao presente a discussão proposta pela história e rompe com uma série de dispositivos clássicos dos chamados filmes históricos, como nos momentos em que os personagens se dirigem diretamente ao público, olhando para a câmara e virando pelo avesso as oficialidades. A força dos diálogos, extraídos dos autos da Devassa, de poesias dos inconfidentes e do poema Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meirelles (1901-1964), questiona a ação de um grupo de intelectuais conspiradores que, juntamente com Tiradentes (1746-1792), único membro que não pertence à elite local, idealizam os efeitos prováveis de uma revolução, sem considerar nesta luta a presença do povo. A conjuntura política do período está presente no questionamento dos sonhos da sua própria geração, já que o diretor faz um paralelo entre a ação da luta armada e a abjuração dos ideais mostrados no filme e a ação da luta armada e o aparato repressivo do regime militar.
A capacidade de Joaquim Pedro em inverter os valores de um sistema de produção dominante reitera-se em Guerra Conjugal. Travestido em pornochanchada, o filme procura trazê-la para um plano mais subversivo, no qual a violência, presente nas relações amorosas quase canibalescas, sai das prisões da ditadura e se instala diretamente no cotidiano. São reunidos vários personagens de contos de Dalton Trevisan (1925), em que se alternam o inferno matrimonial de um casal de velhos, o assédio pegajoso de um advogado familiar e suas clientes e os desejos pervertidos de um jovem amante. Vereda Tropical, episódio do longa Contos Eróticos, ainda em diálogo crítico com a pornochanchada, descreve o relacionamento íntimo e pessoal do seu personagem com as melancias. Joaquim Pedro sugere que a sexualidade é uma questão de imaginação particular e privada a que não cabem preconceitos, rótulos ou normas.
Em O Homem do Pau-Brasil, sob o pretexto de criar uma espécie de biografia de Oswald de Andrade (1890-1954), transforma o escritor num Macunaíma de carne e osso, homem e mulher a um só tempo, irreverente e zombeteiro, que retira dos discursos freudiano e marxista o que contêm de libertários, para compreender as virtudes e as mazelas nacionais. Afinal, sob o peso do estrato social burguês ao qual pertence, o Oswald homem é engolido antropofagicamente pelo seu lado mulher, numa utópica revolução matriarcal.
A adaptação não concretizada do livro Casa-Grande e Senzala investiga as origens da civilização brasileira: o patriarcado português, a contribuição indígena e negra, as lutas de afirmação nas quais é sedimentada a cultura do país. Mas Joaquim Pedro, em virtude de sua morte, não consegue fechar o ciclo que teve início com Gilberto Freyre. Fica apenas o roteiro publicado postumamente, numa igual sorte a de O Imponderável Bento Contra o Crioulo Voador, em que, nas palavras de Carlos Augusto Calil (1951), “novela e roteiro cinematográfico (…) convivem num texto que exibe mérito literário evidente”, cumprindo involuntariamente o cineasta a sua vocação inicial de escritor.
FILMOGRAFIA BÁSICA DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE
Longa-metragens
Garrincha, Alegria do Povo (1963).
O Padre e a Moça (1966).
Macunaíma (1969).
Os Inconfidentes (1972).
Guerra Conjugal (1975).
O Homem do Pau Brasil (1982).
Curta-metragens
O Mestre de Apipucos (1959).
O Poeta do Castelo (1959).
Couro de Gato (1960) (Posteriormente incluído como segmento do filme Cinco vezes favela de 1962).
Cinema Novo (1967).
Brasília: Contradições de Uma Cidade Nova (1967).
A Linguagem da Persuasão (1970).
Vereda Tropical (1977) (Posteriormente incluído como segmento do filme Contos Eróticos, de 1977).
O Aleijadinho (1978).
TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR
Visionamos os filmes e documentários anteriormente referidos, e depois desenvolvemos um cinema fórum, para analisar o fundo (mensagem) deles, assim como os seus conteúdos.
Organizamos nos nossos estabelecimentos de ensino uma mostra-exposição monográfica dedicada a Joaquim Pedro de Andrade, importante cineasta brasileiro. Nela, além de trabalhos variados dos escolares, incluiremos desenhos, fotos, murais, frases, textos, lendas, livros, vídeos, DVDs e monografias.
Podemos organizar no nosso estabelecimento de ensino um Ciclo Cinematográfico, escolhendo para projetar (com apresentação inicial de cada um e colóquio posterior entre os alunos e docentes espectadores) aqueles filmes mais interessantes de Pedro de Andrade. Entre eles não devem faltar os seis filmes longa-metragens que realizou de 1963 a 1982.