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‘Galeg@’: um olhar brasileiro

 

Carla Carbatti

No Brasil, no nordeste e no sul precisamente, galeg@ é o adjetivo para as pessoas muito brancas, loiras, de olhos claros e para @s gring@s (que é o jeito coloquial de nomear @s de fora, @s estrangeir@s). Consultando o Priberam eu encontrei outras “definições” que desconhecia e outras bastante interessantes:

-[Linguística] Língua românica ou variedade do português falada na Galiza
[Este ‘variedade’ que me chama atenção. Eu já escutei d@s amig@s brasileir@s frases como estas: “o galego parece um português antigo”; “o galego é um português mal falado”; “o galego é uma espécie de portunhol” etc.]
– [Informal, Depreciativo] Indivíduo que faz trabalho pesado e intenso

– [Informal, Depreciativo] Homem grosseiro, malcriado e rude
– [Brasil, Depreciativo] Português de baixa instrução

Para português:

[Figurado] Franco, leal, apesar de rude
Obs: no Brasil é sempre o padeiro

Para brasileiro:

[Portugal, Informal, Depreciativo] Homem rico

Para o Priberam, galega, portuguesa e brasileira, segue sendo costelas de Adão: somente o feminino singular das citadas palavras, sem nenhuma particularidade.

No mínimo curiosas as aplicações dos gentílicos destes países lusófonos, não? Bastante sugestivas. Eu que não me meto neste ninho de mafagafinhos, aqui termino minha brevíssima digressão dicionaresca, e só fui por aí porque se tratava de usos populares, quem quiser que quebre a cabeça com o tema.

Antes de prosseguirmos, é melhor eu esclarecer certas coisas: eu não estou apta a falar do galego no Brasil, nem em Minas (meu Estado), nem em Belo Horizonte (minha cidade), nem em Esplanada (meu bairro), nem na Hortênsia (minha rua), nem no número 807 (do meu edifício), nem no número 1 (meu apartamento), talvez, apenas talvez, desde o número MG.8 111 174 que corresponde ao meu número de identidade. Falarei das minhas experiências, meus sentires, minhas afetividades e reflexões sobre a lusofonia aqui.

Pois bem, exceto o Caminho de Santiago de Compostela, que para mim estava na Espanha, a primeira, a mais bela e a insuperável descrição que eu tive dessa terra desconhecida foi esta:

Nasci onde borbotou a primeira fonte do interminável rio desta língua. Vivo em uma aldeia de pedra e musgo construída ao redor de um segredo, onde se caminha, desde muito longe, desde tempos imemoriais à procura de um jubileu.

Nos meus olhos, ervas no oceano, estão todos os reflexos das águas desse lugar, o lugar onde mais chove no mundo.

Nada, nenhum lugar do planeta, pareceu-me mais estranho e mais íntimo ao mesmo tempo. Então, gestamos, eu e o dono destes olhos líquidos, durante 9 meses, uma ponte de palavras no oceano Atlântico. Palavras digitais, porque durante todo este tempo não trocamos um telefonema, nada sonoro, somente cartas eletrônicas. E quando faltavam 2 dias para a primavera explodir no continente europeu, eu desembarquei no frio tímido de Lisboa.

O encontro foi nervoso, mas de mãos, bocas e braços que pareciam conhecer o itinerário. Eu falava acelerada, no ritmo do coração, ele repetia: – que? E eu respondia: como? E conversa travava entre estas duas palavras, entre risos e nervosismos. Ele me perguntou por que diabos eu falava tão complicado e não como o Caetano ou a Maria Bethânia. Falávamos tropicando nas frases, nos sentidos. Num dado momento, ele me contou uma história que entrava um ‘can’ no meio. Eu, que não entendia as conexões entre o que eu sabia por ‘cã’ e o que ele me dizia, perguntei se ‘cã’ era o cabelo branco. Ele pareceu levar um susto tremendo. Eu reformulo a pergunta, remendo: o que é um ‘cã’: e eis a definição que até hoje nos rouba muitas risadas:

– Bicho de catro patas de ladra!

Muitas aventuras linguísticas! Mas o tempo passava e a necessidade de encontrar sossego na língua aumentava. Falar com @s galeg@s se tornou o cansativo ofício de se fazer entendida a cada palavra, a cada sílaba, a cada fonema. Era uma experiência nova e perturbadora. Antes eu falava como quem espirava. O Brasil é quinto maior país do mundo e do Oiapoque ao Chuí uma percorre toda sua extensão territorial falando um único idioma. Isso sim, com uma variedade de sotaques infinita. Os gaúchos tomam: lei[t]e quen[t]e. Nós, mineir@s tomamos: lei[tʃ]im quei[tʃ]im. Tive que aprender a conjugar (e até hoje não sei bem) na segunda pessoa do singular e do plural: tu e vós! Eu não tinha trato com estas duas pessoas, só de romances e poesias, geralmente, antigas.
Na passagem por Lisboa, apesar do falar lisboeta muito mesmo curvilíneo, muito menos sinuoso, muito menos demorado nas vogais que o da minha gente, ainda havia a familiaridade do ‘ão’, a melodia melancólica e arrojada do ‘J’ e do ‘g’ as ondulações entre ‘s’ e ‘z’. Aqui não, aqui isso tudo me foi roubado: o ‘ão’, o ‘j’, o ‘g’, o ‘z’, as minhas queridas africadas [tʃ] e [dᶾ]. O meu nome nem era mais Ca/h/la, era Ca/r/la. Todos os meus erros ortográficos perderam espaços, as gírias, os gingados linguísticos. Falar era como escalar uma montanha cheia de áreas minadas.

Percebam, uma coisa é quando você chega num lugar com uma perspectiva de passagem, como é o caso de quase tod@s minhas/meus colegas brasileir@s, que estiveram ou estão aqui por um período máximo de 1 ano como bolsista de doutorado, sem nenhum envolvimento com a política, com a língua, com a cultura, com os problemas do lugar. Outra muito diferente é quando uma chega para viver, para fazer sua morada. Aí você tem que se entranhar, conviver, compartilhar, encontrar motivações comuns, sentir-se em casa. “Minha pátria é minha língua” eu me repetia e me sabia estrangeira. E vejam bem, não falo aqui de purismos linguísticos, de narcisismos, egos, falo justo o contrário, eu queria roçar minha língua na língua de Machado e Rosalía, queria que do contato inventássemos um brasilego, um minerego, o que fosse. Eu queria, quero, uma lusofonia promíscua, contaminada, que fala blecaute, abajur, bunda, agogô, cafuné, curumim, jururu, agarimo, brêtema, dreda, aledar, fixe, fixo, que não fixa, que não se fixa em regras e gramáticas. Porque a língua, meus caros, não é dos gramáticos nem dos catedráticos, a língua é nossa!

Eu cheguei aqui iluminada pela Verdade do galego-português. Ouvi palestras, explicações, gráficos, tabelas, razões irrefutáveis. Racionalmente não havia dúvida: galego e português a mesma merda é. Mas eu já andava farta dos intelectualismos platônicos, dos metafísicos argumentos. Eu não queria, nem precisava, de um profeta ou uma salvadora que me dissera como eram as coisas. Eu queria entrar numa maldita loja para comprar um brinco, sem antes sofrer pelo caminho para me decidir se eu falaria em castelhano ou galego, da Real Academia, e se me decidisse por este, como se diz brinco em galego??! Um rollo!! Eu queria contar uma piada sem antes ter que dar tantas explicações que já perdia a pausa da graça. Eu queria falar português na Universidade sem que isso fosse interpretado como uma deficiência linguística. Eu queria falar com minha colega de mestrado da Corunha sem que ela me dissesse: yo no te entiendo!. Eu queria viver uma Lusofonia, não uma Ilusofonia!!! Nada contra à ilusão, ao contrário, por ela estou aqui, por ela estamos aqui, por ela seguimos adiante… só um cansaço, um fastio do discurso intelectualizado desassociado dos afetos, das vivências da gente.

Mas, no verão tinha as escaladas pelos montes, pelas aldeias perto de Compostela e outras cidades da Galiza. No verão tinha o falar simples, cheirando a terra das senhoras galegas que sempre motivavam uma conversa, nos ofereciam palavras de incentivo para encararmos uma encosta dura. Tinha os senhores acenando ‘olás’ e ‘tchaus’ e algumas considerações sobre nosso desempenho ciclístico. No verão, a verdadeira iluminação, a epifania de pertence ao mesmo idioma, guardadas as idiossincrasias de cada qual, claro. No verão, a constatação que a verdade da língua foge das cartilhas e manuais caducados da Verdade sobre a língua, a verdade da língua vinga, brinca, sobrevoa e sobrevive na voz do povo. Essa é a língua que eu falo.

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