Descapitalizar a Língua e o Discurso: sobre o galego, o valor e o capital

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Por Celso Alvarez Cáccamo

21 de janeiro de 2013

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Em 1987 eu estava a fazer a tese de doutoramento numa universidade dos EUA. Tinha 28 anos, e vinha periodicamente a estadias na Galiza para a pesquisa. A tese, sobre o que chamei “a institucionalização do galego”, procurou descrever os começos da introdução estruturada do galego no estado e no poder como objeto de legislação, como elemento de ideologia, como recurso apropriável e como prática de uso. A investigação — é significativo indicar para os argumentos posteriores — foi subsidiada repetidamente, ora pola universidade americana, ora por capítulos do ministério espanhol de negócios estrangeiros destinados à colaboração científica com os EUA.

Como parte da tese, nesse ano — há já mais de 25 — realizei um inquérito sobre atitudes linguísticas face ao galego e ao espanhol entre centenas de estudantes de liceus da zona de Vigo. Afinal, nunca terminei a complexa análise estatística dos dados, por insuficiente perícia e por outros fatores, e os resultados nunca viram a luz. Mas, numa análise preliminar, é confiado afirmar que não só a língua que se fala, mas também o sotaque, se apresentava já então como um elemento de diferenciação social: confirmava-se, de maneira pouco surpreendente, que um sotaque “urbano” frente a um “rural” se associava mais, tanto em espanhol como em galego, com sentidos de prestígio, educação, cultura, formalidade, dinheiro e modernidade, entre outros. A fronteira da dominação só entre “línguas” como amplos sistemas começava a diluir-se. A domesticação padronizada do sotaque na então jovem televisão galega, no discurso público, no teatro ou nas aulas universitárias viria confirmar este duplo eixo de distinção cultural e social a meio das línguas e das falas. A observação é relevante para compreendermos as formas da mercadorização do galego que começavam a acontecer.

Uma manhã, ao acabar o demasiado longo inquérito de atitudes entre o estudantado duma aula de Filosofia ou de Ciências Sociais do liceu Santa Irene de Vigo — propositadamente, nenhum inquérito se realizou nas aulas de Lingua Galega ou de Lengua Española, para procurar não escorar as respostas — duas mocinhas duns 15 anos aproximaram-se de mim para perguntar-me o que opinava: se era mais conveniente elas estudarem depois Filologia Hispânica ou Filologia Galega. Falavam espanhol, como eu fizera habitualmente à sua idade. Além de responder qualquer cousa sobre o galego como “nosso” e como necessitado de mais estudo, opinei que, mesmo, com Filologia Galega se abririam mais oportunidades laborais. (Apesar da minha discordância ideológica com o modelo de língua e de institucionalização que se estava a montar desde o estado, polo ILG e pola RAG, e apesar da minha falta de dados claros nesse sentido, a minha impressão na altura era que a reprodução parcial da mudança sociolinguística institucionalizadora numa sociedade de “língua menorizada” como a Galiza, sempre irmã menor doutras nações periféricas do estado, não poderia deixar de gerar algum grau de articulação entre a “língua própria” e as instituições alheias: o estado espanhol teria de produzir mais mão de obra “galego-falante”, e haveria trabalho).

Então uma das moças disse à outra com certa desafiante firmeza adolescente: “¿Ves?, ¿ves?”. Isto é: a minha opinião “experta” concordava com o que ela mesma pensava. Lembro bem o seu físico: face redonda, olhos pequenos e intensos, pele morena, cabelo castanho algo encrespado amarrado atrás. Levava um vestido verde escuro duma peça, com saia longa até aos tornozelos, como signo do que me pareceu um habitus social “conservador”, de classe meia urbana, para nada associado ao ativismo cultural nacionalista e progressista.

Talvez as moças, agora mulheres duns 40 anos, sejam professoras de Galego num liceu. Talvez sejam escritoras, ou ativistas culturais, ou produtoras de cultura em galego. E talvez alguma delas hoje queira publicar o seu último livro de poesia e não encontre editora. Dados recentes dizem que nos dous últimos anos, 2011 e 2012, sem dúvida em paralelo à drástica redução de subsídios institucionais para a cultura, o número de títulos publicados na Galiza se reduziu num 50%; um cálculo é que isto representa uma redução 3 vezes maior que no conjunto do estado espanhol. Esta professora e talvez poeta encontrará que faltam volumes na biblioteca escolar, e que se faz cada vez mais difícil a circulação desse material no círculo de movimento perpétuo entre a indústria editorial galega, o professorado e alunado de Galego, a intelectualidade, e o ativismo cultural, quer dizer, só entre certos campos (superpostos) e as elites que os gerem. A professora terá visto também que lhe baixaram e baixarão o salário ainda mais, que se estiver doente lhe retirarão dinheiro, e que a tratam cada vez mais como uma peça “calibrável” — como me explicou há uns dias a professora e poeta Verónica Martínez Delgado — do sistema de ensino e do empresarial Controlo Total de Qualidade (Total Quality Control). E talvez se pergunte porque e como aconteceu tudo isto com “o galego” e com a sua própria função docente.

O breve diálogo de 1987 ficou gravado em mim porque devia ter um significado para compreender uma mudança sociolinguística que agora se confirma. Não sabemos se o capitalismo é uma doença económica crónica da humanidade, mas sim que as suas “crises” afetam de maneira notável e percetivelmente cruel a hidráulica entre as suas duas faces, a estatista (intervencionista) e a liberalista (de livre mercado), e os graus de presença delas nas políticas económicas. Nestes 25 anos, a parte estatista do capitalismo na Galiza conseguiu introduzir uma dada versão do galego — a conveniente e útil — nas instituições políticas e no sistema educativo, isto é, no aparelho do estado, e no campo cultural e intelectual que o alimenta. Sem querer simplificar, o subsídio material e ideológico a essa versão da língua portuguesa da Galiza, sob a construção duma responsabilidade coletiva de proteção do mercado simbólico, foi importante mecanismo para a produção de língua (não só aconteceu com o galego: o estado subsidia comparativamente mais o espanhol). Mas a parte liberalista do capital impediu sempre que esse mesmo galego entrasse com força no mercado económico. Aí as leis da convertibilidade do cultural (competências linguísticas) em material (benefício) são duras, e na Galiza há décadas que estão em posse de setores que não precisam mudá-las para continuarem a controlar o campo, um campo, além, em (obscuras) relações com outros mais amplos geograficamente. E o resultado, a tensão atual entre estatismo e liberalismo — que pode ser cíclica, estrutural, ou só sintomática mas crónica na prática — está a causar dor, ira, perplexidade e desorientação de ação entre um ativismo ainda focado no identitário nacional fora das lutas de classes, fora da crítica consequente ao projeto do capital. Se a minha hipótese da mocinha espanhol-falante urbana de classe meia “conservadora” que seria agora professora de Galego se cumpriu (sem dúvida, exemplos semelhantes há), isto seria amostra de que algo ou muito da lógica da mercadorização da língua durante os últimos 25 anos lhe escapou ao ativismo linguístico nacionalista para não saber agora gerir a sua orfandade.

Mas a mercadorização da língua em determinados momentos históricos, como recurso que venha substituir outros e produza novas atividades laborais (a “indústria da língua”), não é nem necessária nem inevitável na tensão estatismo-liberalismo. A sociolinguista canadiana Monica Heller e o sociolinguista suíço Alexandre Duchêne, na sua introdução ao recente Language in Late Capitalism: Pride and Profit (‘A língua no capitalismo tardio: Orgulho e Benefício’; Londres, Routledge, 2011), relatam brilhantemente como a possibilidade da conversão das línguas em capital é função também doutros processos económicos, doutras necessidades, doutros recursos disponíveis, e doutros projetos dirigidos, a respeito dos quais se pode discutir (como se continua a fazer) sobre o papel relativo e funções do Estado-nação atual. Nem o estado nacional está morto, nem é o que era. Por uma parte, é mais sólido do que nunca nalguns componentes (o militar, por exemplo), e, na minha impressão, o seu poder de imaginário “nacional” é ainda fortíssimo. Por outra, como observamos diariamente, o estado está sendo crescentemente privatizado em áreas centrais como os serviços sociais. A vaga de privatização do estado pode ser apavorante para quem nos formamos na ideia sublimada de que alguma forma forte mas transitória do estado e do “setor público”, afinal, poderia chegar a representar os interesses coletivos “objetivos”, e portanto preparar a transformação social — daí que nos convoque ainda o ideal da soberania política radical como salvação à doença da “crise”. Mas não está claro que o pêndulo da liberalização atual chegue a subir tão alto que dê a volta polo zénite e seja impossível o seu regresso a esse equilíbrio cíclico de intervenção-liberalização que precisa o capital. Também a “doutrina de choque” não pode ser eterna, pois a destruição sem fim que as visões apocalípticas temem vai contra a lógica de crescimento e de benefício constante do capitalismo: aí estão as guerras e as invasões para regular a destruição.

Leiam-se as reflexões gerais anteriores em relação aos graus relativos de intervenção estatista ou de laissez-faire no mercado da língua e da cultura na Galiza. No que nos centra aqui, as consequências sociolinguísticas da des-intervenção atual sobre a língua, numa sociedade como a galega onde o enraizamento tradicional dos usos estava baseado numa estrutura social muito diferente da que se projeta, e onde a institucionalização do idioma — ainda sendo comparativamente débil — criou novos significados, usos e valores limitados para um setor da população, podem ser insuspeitas. O descenso de falantes habituais de galego pode ameaçar as condições mínimas da sua manutenção histórica. Isto é, para a sociolinguística interessada no funcionamento do capital linguístico, uma pergunta importante é quando (em que limite inferior) a base social de falantes duma língua chega a ser tão baixa que esta deixa de ser possível ou atraente como recurso de mercadorização, de “avanço social” e cultural, e de conversão em vários tipos de benefício: quando é que se torna num idioma “de herança” associado apenas a uma identidade cultural que já não pode produzir “benefício” além dum nicho quase turístico de mercado. O caso do galês vem à mente, e algumas pessoas diriam que o galego está perto dessa fase, se não a ultrapassou já. Acho que esta visão é excessiva, mas não deixa de indicar que se observa um evidente retrocesso no grau de enraizamento do galego como possível prática naturalizada da sociedade. Definitivamente morta a “normalización” — reduzida a vazio envoltório de produto consumido — esvaecem-se os horizontes de intervenção para a naturalização da língua, e há desconcerto.

O reintegracionismo galego é consciente deste perigo, mas um setor dele parece não temer muito porque imagina que o mercado internacional do português, de uma maneira ou outra, chegará a atingir a Galiza tão crucialmente que as posições polas que se combateu com esforço durante décadas afinal darão rédito. Este rédito, claro, etiqueta-se politicamente como “coletivo”, além de que seja prático para indivíduos, empresas e projetos que saibam português. Mas a reprodução do intuito de capitalização do galego via português também no económico, mantra frequente desta visão do reintegracionismo, não deixa de ser uma via arriscada, que talvez produza mais uma ilusão de normalidade nacional, onde cada ator e cada campo cumpram os seus papéis, onde a intelectualidade e a força de trabalho da língua estejam, por fim, onde historicamente deveriam estar, mas que deixe sem tocar as bases que explicam, precisamente, as formas de desigualdade real mediadas pola língua, as ilusões e sofrimentos reais que ela causa, o significado social, por exemplo, do fato de uma moça de 15 anos perguntar-se se no futuro deverá estudar a língua X ou a língua Z, sem grande inquietude por outras questões como o possível prazer desse estudo.

A jovem estudante do relato intuía o sentido do valor da língua. Em termos do modelo do mercado de Bourdieu, talvez ela visava a sua capitalização a meio desse valor. Sabemos que, em economia política, “valor” e “capital” não são o mesmo, e que há formas menos impiedosas que o hipercapitalismo atual para alguma cousa ser valorizada (um bem, um possível recurso material ou simbólico) sem que isto acarrete a pulsão do capital, da capitalização constante, da auto-capitalização da pessoa como alvo vital, que é, na verdade, o procedimento central de terror que nos constitui no capitalismo. Também sabemos que se a atividade do trabalho não produz sobre o recurso mais valor do que ele tinha no início, não há qualquer valorização, e portanto não pode haver capitalização. Se um adolescente destina enormes esforços e recursos para aprender inglês só para, afinal, chegar a dar precárias aulas particulares e fazer alguma tradução, trabalhos com os quais só resiste cada mês, mal se pode dizer que se capitalizou cultural ou economicamente, embora a miragem social funcione (precisamente) para o inglês continuar a ser vendido como mercadoria (mas com benefícios dessa venda para outros agentes noutros campos, não para o aprendente). Mas a questão é, que tipos de valor, e até que grau desse valor, pode ter ou alcançar uma língua, antes que comece a entrar numa lógica em espiral de mercadorização, de ânsia de capitalização, e de fechitização?

A contradição, ou o problema (teórico e social), estão servidos. Valorizar e, sobretudo, capitalizar o galego — nomeadamente como português — entanto tentativa salvadora de criar as condições para a sua manutenção social, é um projeto arriscado. Sei que, em textos e palestras anteriores, tenho apresentado esta via como uma das possíveis, frente à contrária. Sem dúvida, intuitivamente apresenta-se como a mais fácil, pois o modelo é velho e já o conhecemos: compreender e construir a língua do poder como “recurso” e como “produto” cultural; numa variante da hegemonia social sem qualquer ideal emancipador por detrás, esse recurso e esse produto seriam já A Língua, em singular e com maiúsculas. Mas as condições de mercado polas quais o recurso do português valorizado possa apoiar a sua transmissão entre gerações para o “avanço social” e outros ideais do capital não nascem automaticamente. Antes, as brutais condições do mercado não incluem essa reprodutibilidade dos “falantes da língua própria” como requerimento: para o capital o importante é simplesmente ter mão de obra acessível, para o que for, para o processo de produção que surgir. Por outra parte, criar essas condições de necessidade do português implicaria criar na Galiza um campo, um novo campo internacionalizável da língua, duro, sem o apoio do interesse objetivo do capital galego, em concorrência com o projeto isolacionista, e em confronto com a realidade de redes sociais atomizadas. Sem uma forma diferente de fazer as cousas, a tentativa de manter o galego a meio da sua valorização como português pode ser um fracasso, ou outro fracasso: uma mimese do que já aconteceu na Galiza nas três últimas décadas.

Por isso, para abrir uma fenda discursiva, quisera hoje apontar na direção contrária. A observação da dureza do mercado, cujas leis preexistem, e cuja transformação implica um amplo combate social onde as lealdades linguísticas jogam apenas um papel relativo, convida a considerar como cabal a hipótese contrária da capitalização, isto é, a de tentar rachar com a lógica do capital linguístico, naturalmente desde o próprio campo onde a língua é objeto central. O procedimento e o alvo seriam descapitalizarmos a língua e o Discurso, nomeadamente o discurso utilitarista que sustém esta capitalização; racharmos, polo menos, com a lógica da acumulação de capital linguístico, discursivo, académico, intelectual, cultural, literário, científico, educativo, tarefa que deveria ser requisito para uma soberania política futura poder suster formas de vida social emancipadoras, não sujeitas. Com este ponto de partida, polo menos, poderia então discutir-se seriamente o que significam o valor da língua, as formas deste valor, e as suas relações com a utilidade (que não é valor) nas suas expressões pré-mercantis, ou para-mercantis, ou pós-mercantis, como o convívio, a criatividade e o prazer, todas elas não convertíveis nem em prestígio nem em dinheiro. Não há garantia qualquer de que esvaziando propositadamente a língua de certos atributos do capital de mercado se possa inaugurar uma paisagem sociolinguística nova, mas a focagem poderia ativar uma congruência mais harmoniosa nas relações entre o simbólico, o económico e o político, e limpar de cegas cumplicidades o projeto reintegracionista de emancipação social também a meio da língua.

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