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Isaac Alonso Estraviz: «Triunfaremos!»

António Carvalho – Partimos ao meio-dia da cidade das Burgas, a caminho da pequena paróquia de Santa Marinha de Águas Santas (Alhariz), onde o professor Estraviz tem a sua moradia. Um sol esplendoroso acompanha o nosso percurso pola velha estrada que escolhemos para fazer a pequena viagem, totalmente rodeada de natureza.

Chegamos e vemos o professor a aguardar na quinta que compartilha com a sua companheira, Manuela Ribeira, cheia de árvores de fruto, legumes, hortaliças… Aos seus 74 anos o professor Estraviz trabalha e cuida como ninguém a sua horta e confessa-nos que todas as manhãs – agora no verão pola fresca – dedica algumas horas a esta atividade que acha realmente gratificante, saudável e produtiva.

Apanhamos três cadeiras e a partir da varanda, com uma paisagem de inveja, iniciamos uma conversa que se prolongará durante mais de uma hora. As conversas com o professor Estraviz não são conversas ao uso pergunta-resposta… Não, o professor Estraviz começa a falar e nós só temos de apontar e deleitar-nos com o seu verbo fácil, reflexivo e sempre forte, aproveitando alguma parêntese para intervir sem perturbarmos muito a excitante oralidade do professor…

 

O que nos oferece a nova versão do e-Estraviz e o que espera dela?

Acho que é uma versão muito melhorada, modernizada na mostragem das definições, com destaque para as frases feitas, locuções… Além disso é uma versão que incorpora mais de 30.000 verbetes a respeito da anterior, chegando a mais de 120.000 no total… e a cousa não vai ficar por aqui, pois eu próprio estou a acrescentar novos verbetes, novas definições.

Na verdade que o léxico galego é muito abundante, pois responde a diferentes climas, paisagens e uma outra série de fatores que influem, mesmo a falta de comunicação entre lugares, fruto do tipo habitat populacional da Galiza, faz com que um mesmo significado seja representado por muitos vocábulos. É claro que neste dicionário não aparecem todas as variantes («eiqui, aiqui, aqui…»), julgo que isso não convém pois talvez acabe por gerar uma certa confusão.

O problema que tivemos de sempre na Galiza é que partimos de localismos, cada pessoa defendia o galego da sua zona, da sua comarca, mas é preciso irmos superando isso e termos um léxico básico comum, embora eu pense que é bom documentarmos e conservarmos as variantes, sim, dando conta delas, também, mas não fazermos disso o centro…

 

Qual é a prática comum dos diferentes dicionários à hora de recolher léxico?

Os brasileiros normalmente tendem a recolher absolutamente tudo, os portugueses, polo contrário, não. Através da história foram deixando fora dos dicionários muito léxico do Norte. Ora, atualmente começa a haver um maior equilíbrio, sendo incluídas muitas variantes, mas nem todas, na linha que eu apontava anteriormente.

Posso ilustrar com um exemplo o que quero dizer: eu tenho recebido mensagens-e pedindo a inclusão do verbete «huje» e até «hoj», à par do padrão «hoje». É claro que podemos falar de muitas maneiras, mas é bom termos uma grafia e uma representação única. Acho que me explico.

 

O léxico recolhido no e-Estraviz é tudo da Galiza?

Bom, nesta nova versão aumentamos enormemente o vocabulário científico e técnico, pois este é comum a todas as línguas, com pequenas variantes nalgumas palavras à hora de serem pronunciadas em castelhano ou em português… Assim, o léxico científico e técnico vai na linha do português padrão, com algumas diferenças a respeito do léxico brasileiro que inclui variantes diferentes. Tendo em conta que 99% do léxico patrimonial galego-português é o mesmo, introduzir o léxico técnico-científico à castelhana constituiria um pegão. Enquanto não houver um acordo entre Portugal e Brasil sobre todo o léxico técnico e científico acho que para nós é melhor confluirmos com o de Portugal.

De resto, o léxico do dicionário é recolhido todo ele na Galiza, mas acontece que este léxico acaba sendo o mesmo, na maioria dos casos, que em Portugal, especialmente no Minho e Trás-os-Montes. Tenho inúmeros exemplos muito curiosos de que eu próprio não acreditava quando estava no trabalho de recolha.

Por exemplo, eu pensei que a palavra «bardo», renque de videiras ligadas por varas, canas ou arame formando um suporte vertical; estaca alta para suster videiras, era exclusivo de Santa Marinha de Àguas Santas, vi-me surpreendido quando soube que tinha o mesmo significado em Braga… Olha para os lados, Estraviz, e verás bardos por toda a parte!!

E assim por diante. A expressão «ficar malhado», com o significado de «ficar terminado, perfeito», também pensei que era só própria do lugar em que moro. Horas depois num jantar de mais de duzentas pessoas, sentaram-me ao lado dum jornalista de Montalegre (Portugal) descobri que era comum a Portugal  e a Galiza. E aqui comum à Límia, Carvalhinho e a inúmeras partes da Galiza, onde se conserva com esse significado de acabado, perfeito.

E poderia continuar… «Nai, choiva…» variantes galegas que eu encontrei em Trás-os-Montes. Ocorre que em Portugal optaram por uma variante determinada, virada para o sul, e não tiveram em conta muitas do Norte. Nós, por isso, não devemos criar desnecessários diferencialismos, mas considero que é bom e devemos defender ainda a vigência deste léxico. A Galiza poderá dizer muito aí, caso haja um dicionário comum, trabalho em que está hoje a AGLP.

 

Que outros dicionários achas de interesse dos atualmente existentes na Internet?

Bom, eu tenho em CD o Dicionário de Dicionários, que inclui realmente uma recopilação de velhos dicionários, sem rever o léxico recolhido neles, sem verificar se é correcto ou incorrecto o vocábulo, com ou sem definições. Existe também um Novo Diccionario Castelán-Galego da RAG, com 25.000 verbetes, colocado em Internet depois do e-Estraviz. Que eu saiba, não há outros. Falando já em portugueses o de mais destaque é o Priberam, que mesmo já está a ser adaptado ao Acordo Ortográfico em muitos pontos.

Se falamos noutros dicionários o Bluteau é de grande interesse, colocado na rede polos brasileiros, é um dicionário que em papel foi distribuído em dez volumes, embora muito do léxico já estivesse noutros dicionários. Tem questões históricas de grande importância.

Poderia falar-se mais. Enfim, tenho que dizer, e reconhecer, que os brasileiros estão a trabalhar muito o assunto das novas tecnologias e há muitos e bons produtos neste campo.

 

 

Em que vem a contribuir o dicionário e-Estraviz, então?

Bem, enche um espaço grande, aquele que diz respeito a que os galegos e as galegas realmente não tínhamos um dicionário de tal dimensão que conservasse toda a riqueza da língua, de tal projeção que nos abrisse ao mundo como tais e que faz com que os brasileiros o consultem muito habitualmente e encontrem nele léxico que pensavam que era exclusivo deles.

De Portugal acontece o mesmo, pois de Coimbra para o norte é considerado por muito pessoal como o dicionário português mais completo, mesmo que inclua formas próprias galegas adotadas pola norma AGAL, como os finais em —om e —am, realmente frequentes ainda na pronúncia nortenha.

Eu não digo que o e-Estraviz seja o melhor dicionário da língua portuguesa, mas acontece que este dicionário recolhe todo o léxico da Galiza, que é também léxico do Norte de Portugal e, portanto, recupera todo esse legado e revitaliza-o.

Sendo assim, a maioria do léxico é, pois, comum a Portugal, nomeadamente ao Norte, e ao Brasil. Falando no Brasil, tem a ver muito o fato de muitos dos colonizadores desse grande território serem do Norte de Portugal e da própria Galiza, pois houve nessa época participação de muitos mais galegos de que se pensa e levaram a língua e o léxico com eles, claro.

 

O e-Estraviz é um sonho realizado, ou ainda pensa em mais?

Bom, seria preciso falarmos e darmos a conhecer a minha história de vinculação com o galego – por sinal, aos 17 anos decidi que ia falar sempre galego em toda parte. E assim o tenho feito. Fiz os meus estudos de Teologia em Usseira. Filosofia Pura e Filologia Românica em Madrid, quando em 1970 deixo Albacete para deslocar-me a Madrid. Terminados os meus estudos em Madrid, tinha em mente elaborar uma gramática do galego baseado em textos do século XIII e XIV, redigidos em escritórios galegos e portugueses para comprovar onde havia divergências. A falta de computadores e de ajudas fez com que ficasse um trabalho interrupto. Depois decidi-me por um dicionário galego em galego.

Ora bem, a minha decisão de utilizar uma visão etimológica e ligada ao tronco comum da língua fez com que as dificuldades fossem maiores. Akal, Galaxia… tiveram nas mãos o projeto, mesmo utilizando a normativa da pré-autonomia atribuída a Carvalho Calero, aceite por mim com apenas o pedido para colocar entre parêntese os verbetes em escrita histórico etimológica tendo em conta a fase medieval e moderna que em Portugal foi comum até séculos muito posteriores, algumas dessas formas escritas chegam ao século XIX. Formas que posteriormente se conheceriam como norma AGAL. Mas não esqueçamos que estamos em 1979 e que AGAL foi constituida e aprovada em 1981.

Com Galaxia o projeto faliu, mesmo que estivesse previsto a sua publicação em fascículos, Pinheiro até acabou por pedir que fosse na normativa ILG-RAG, além de outras questões económicas que deixaram o projeto por aí. A seguir acabamos na editorial NOS (Nos) da Corunha, que apenas publicou um volume ilustrado (1983) dos cinco previstos. Seijas Fornos estava a publicar todo tipo de material -com o qual eu não concordava muito- pois estava a ver que ia à falência, e assim foi. Nesse tempo tive oferecimentos de editoras da Catalunha, de Saragoça…

 

E finalmente o dicionário foi publicado…

Finalmente, fundamos Alhena em Madrid: eu, uma licenciada em Românicas de Málaga no desemprego e o sogro toledano do fotocompositor, o sócio capitalista, e foi aí onde conseguimos publicar o dicionário em três volumes (1986), de maior tamanho ao longo e largo e com menos ilustrações do que o NOS. Foi um sucesso, pois na primeira semana já se tinha amortizado seis milhões de pesetas. Dinheiro que não chegamos a ver polo individado que estava o fotocompositor. Contudo chegou a se esgotar. E foi um sucesso pois nalguma universidade houve pessoas que o único que gostavam era de o criticar, e por vezes isso é bom sintoma, o trabalho valeu a pena.

A seguir Sotelo Blanco pediu a publicação de uma nova versão (1995), mais reduzida e adaptada para os liceus galegos, eu aceitei com a condição de incluir igualmente entre parêntese a escrita histórico-etimológica. Sei bem que essa versão foi muito utilizada, pois é uma obra de consulta efectiva já que aparecem realmente as palavras procuradas, ao contrário do que acontece com as versões mais «oficialistas», onde muitas palavras não estão ainda hoje recolhidas.

 

E depois disso… a Internet?

Sim, realmente o fantástico para mim chegou quando Vítor Lourenço me fez a proposta de levar para a Internet uma versão do dicionário adaptada para a escrita e a visão de língua que eu defendo. O PGL impulsionou esse trabalho no qual houve um interessante grupo de pessoas que ajudaram no processo inicial de revisão. O e-Estraviz está na rede desde o 1 de janeiro de 2005. Tinha uma seção muito interessante, obra de Valentim Fagim: Brincar com e-Estraviz, com jogos como Trivial, Falsos amigos… semente do futuro Planeta NH. Desde então não deixei de rever, corrigir e ampliar, até chegarmos a esta versão de 2009.

Tenho de agradecer os inúmeros contributos e mensagens-e enviadas por pessoas de todas as partes, estou certo que a cousa vai continuar e o produto continuará a melhorar. É claro que a Internet permite modificar, melhorar, corrigir continuamente, ampliar mais… Nisso estamos agora, pois ainda está inacabado…

Posso avançar que, quando eu achar que o dicionário tem uma feição já definitiva, e eu me sentir satisfeito por completo, é que darei o seguinte passo (ou passos): a adequação ao Acordo Ortográfico e a plasmação em papel, pois alguma oferta já tenho para isso. Faço votos para que seja em breve, mas ainda fica trabalho para fazer.

 

E acabamos. Uma frase para definir o seu desejo para a língua na Galiza?

Triunfaremos!!!

 


 

 

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