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Álvaro Salgado: “O reintegracionismo deve ser capaz de mostrar que o galego é uma oportunidade para todos, independentemente das suas convicções políticas”

Álvaro Salgado é da cidade da oliveira e o seu rebento, como o da maioria de pessoas da sua idade, falava espanhol. A passagem para o galego ocorre fora da Galiza, em Madrid, onde trabalha na área da Tecnologia da Informação. A sua paixão pelas línguas transparece na sua formação como tradutor onde contacta com a estratégia reintegracionista da mão do professor Carlos Garrido. Ora, assumir esta forma de ver ler a realidade demorou um bocado e para isso ajudou uma viagem ao País Basco.

Álvaro é viguês, de mãe sevilhana e pai baionês. A tua língua primeira foi o espanhol, não foi? Como era o contacto com o galego?

O meu contacto com o galego foi, basicamente, através da escola. Em casa não se falava galego: o meu pai sabia falá-lo, mas vinha de uma família que já tinha adotado o castelhano como língua principal, algo bastante comum na sua geração. A minha mãe, sendo sevilhana, sempre falou apenas castelhano, por isso a língua portuguesa (ou galega, como então lhe chamava) nunca teve presença no ambiente familiar.

Apesar disso, eu gostava muito das aulas de galego na escola. Sempre tive curiosidade por aquelas palavras “diferentes”, com sons e formas que me pareciam especiais — como se fossem uma chave para algo que me era próximo, mas ao mesmo tempo desconhecido. Tive também a sorte de fazer a ESO durante a vigência do decreto 124/2007, que estabelecia um mínimo de 50% das aulas em galego. Isso deu-me um contacto mais constante com a língua, não só nas aulas de galego, mas também noutras matérias.

Esse contacto inicial não foi suficiente para que eu adquirisse fluência real, mas deixou uma semente. Só mais tarde, já fora da Galiza, comecei a perceber o verdadeiro valor da nossa língua e a importância de a recuperar, não só como herança cultural, mas também como parte de uma identidade mais ampla e viva, ligada ao mundo da lusofonia.

A tua formação é em Traduçom e Interpretaçom. Como nasceu a vontade de te formares nesta área? Em que medida o desenvolvimento da IA está a afetar o teu ramo profissional?

Desde criança senti um grande interesse pelas línguas. Tudo começou com um livro sobre a Grécia Antiga que tinha uma página dedicada ao alfabeto grego. Lembro-me de passar horas a tentar copiá-lo e memorizar os nomes das letras. Mais tarde, na adolescência, comecei a interessar-me pelo latim, depois pelo inglês e, pouco a pouco, por línguas não indo-europeias como o coreano ou o turco.

O mais natural teria sido estudar Filologia, mas na altura ouvi dizer que era muito difícil arranjar trabalho nessa área. Foi assim que acabei por escolher Tradução e Interpretação, que me pareceu uma opção mais prática e próxima dos meus interesses. No entanto, acabou por ser muito difícil encontrar trabalho como tradutor. Trabalhei durante algum tempo como professor de inglês e francês, até conseguir um emprego no setor das tecnologias da informação, área em que continuo até hoje.

Quanto à inteligência artificial na tradução, acredito que hoje em dia está a ser usada sobretudo como forma de substituir trabalhadores humanos e reduzir custos, evitando os “privilégios” básicos de lhes pagar salários justos. Temo que o impacto vá ser ainda maior do que já tem sido. Não é só uma questão de eficiência técnica, mas também de desvalorização do trabalho humano, como se traduzir fosse apenas trocar palavras, quando na verdade envolve compreensão cultural, sensibilidade linguística e pensamento crítico.

É precisamente na tua formaçom universitária onde surge o teu primeiro contacto com a estratégia reintegracionista.

Foi na aula de Introduçom à Teoria da Traduçom, com o professor José Henrique P. Rodríguez, que ouvi falar pela primeira vez do reintegracionismo. Até então, nunca tinha tido qualquer contacto com o tema e, para ser sincero, a primeira impressão não foi positiva. Ninguém nos explicou o que era, nem por que razão era uma posição legítima. Os meus colegas e eu achávamos que se tratava de uma língua inventada.

Nessa altura, encontrei um site do professor onde ele defendia o uso dos nomes tradicionais dos dias da semana. Até aí, eu pensava que esses nomes eram apenas “coisas do português”. Fiquei surpreso ao descobrir que existiam gravações de pessoas idosas a dizer que esses eram os nomes usados pelos seus pais e avós.

Mesmo assim, o reintegracionismo ainda me causava uma certa resistência, por causa das associações negativas que tinha construído. Só este ano decidi, finalmente, explorar o tema com mente aberta.

Moras em Madrid desde há vários anos, como se vive o galego na distância? Os livros ajudam?

Moro em Madrid desde dezembro de 2021. A primeira coisa que chamou a minha atenção foi que há um restaurante galego em quase todos os bairros. Também vejo a nossa língua nos nomes de muitas marcas galegas que fazem negócios aqui. Depois de morar aqui algum tempo, ficou claro que as pessoas de Madrid adoram os produtos galegos e têm muito interesse em conhecer a Galiza, mas não têm fácil acesso a essa informação. Acho que aqui existe um espaço onde há mais pessoas do que imaginamos que estariam abertas a ouvir-nos.

Já aconteceu mais de uma vez alguém me perguntar se o galego e o português são a mesma língua, o que mostra que há curiosidade, mesmo fora da Galiza, e que talvez falte apenas contexto e contacto real com a nossa realidade linguística.

Viver fora também me fez valorizar ainda mais a importância dos livros. Livros como Vidas LGBT na Idade Media, de Carlos Callón, ajudam-me a manter a ligação com a Galiza e também a perceber que o galego pode ser usado para tudo. Para falar de história, de identidade, de género, de política… tudo o que faz parte da vida. Agora, além disso, tenho também livros em português da editora Através que acho geniais.

Mais do que nunca, acredito que o galego não cabe nas fronteiras administrativas da Galiza e que os livros são uma das formas mais poderosas de manter essa consciência viva.

Numa viagem ao País Basco, começas a interessar-te pela hibridaçom das falas galegas com o castelhano e daí…

Numa viagem ao País Basco, tive a oportunidade de conhecer aquela formosa terra e estava especialmente ansioso por escutar a língua, que sempre considerei única no mundo inteiro. Fiquei impressionado ao ver famílias inteiras a usá-la no dia a dia — crianças, adolescentes, adultos e pessoas idosas — todos a comunicar naturalmente em euskara. Essa convivência intergeracional com a língua fez-me refletir sobre a situação do galego na Galiza. Se os bascos conseguiram aumentar o número de falantes nas últimas décadas, por que motivo o galego continua a perder terreno? Ainda por cima, o basco é uma língua isolada, sem relação com outras línguas do mundo e sem o apoio de uma comunidade internacional que o fale. Mesmo assim, conseguiram revitalizá-lo com políticas claras e vontade coletiva.

Nessa mesma viagem, ouvi duas senhoras idosas a falar em galego numa aldeia basca, algo que, ironicamente, raramente escutava em Vigo. Isso fez-me pensar muito sobre como está o galego hoje em dia. Foi a partir daí que comecei a interessar-me mais a fundo pelas causas do declínio da nossa língua e pelas possíveis soluções.

Descobri o reintegracionismo nesse contexto, como uma proposta que não só reconcilia o galego com a sua origem histórica e linguística, mas que também lhe oferece um futuro mais amplo e internacional. Também descobri que, ao contrário do que se costuma dizer, muitas diferenças entre o galego e o português não surgiram por mudanças feitas no português, mas sim por alterações que o galego sofreu ao longo do tempo devido à influência do castelhano.

Percebi que o problema não é apenas linguístico, mas também simbólico: o galego tem sido isolado e desvalorizado, muitas vezes tratado como um dialeto menor, quando na verdade é uma variante da língua portuguesa, falada por milhões de pessoas no mundo. Essa perceção mudou completamente a minha forma de ver a situação linguística da Galiza e foi o primeiro passo para me aproximar do reintegracionismo.

Na tua opiniom, por onde deve transitar o reintegracionismo para avançar socialmente, e quais seriam as áreas mais importantes?

O reintegracionismo deve ser capaz de mostrar que o galego é uma oportunidade para todos, independentemente das suas convicções políticas. É fundamental que a nossa língua seja conhecida pelos benefícios económicos e pelo prestígio que pode trazer, pois é isso que, hoje em dia, atrai novos falantes a qualquer língua.

A longo prazo, se conseguirmos que o reintegracionismo se torne popular, o movimento já não poderá ser ignorado. Para isso, é importante reforçar que o castelhano não é o nosso inimigo — é, aliás, uma das línguas mais faladas do mundo e uma ligação aos povos de Espanha. Porém, devemos também mostrar que o galego tem um futuro promissor, sob o nome de português.

O galego não é apenas a nossa língua; é a língua de mais de 265 milhões de pessoas espalhadas por quatro continentes, com um papel cada vez mais relevante no mundo. É essa dimensão global que torna o reintegracionismo uma proposta de futuro para a nossa língua e cultura.

Porque decidiste tornar-te sócio da Agal e que esperas do trabalho da associaçom?

Decidi tornar-me sócio da Agal porque quero estar do lado do futuro e da modernidade, apoiando a valorização e a promoção do galego como parte integrante da língua portuguesa. Acredito que o galego, enquanto variante do português, tem um papel fundamental na construção de uma identidade cultural viva e na recuperação da sua unidade linguística, e quero contribuir para esse processo.

Espero que a associação continue a ser um espaço aberto, inclusivo e dinâmico, capaz de envolver cada vez mais pessoas interessadas na defesa e expansão do galego. Que a Agal mantenha o seu compromisso com a inovação, a colaboração e o diálogo, promovendo iniciativas que tragam visibilidade e prestígio à nossa língua.

Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que foi o melhor e que foi o pior?

O melhor foi que, pela primeira vez desde a Idade Média, a nossa língua esteve presente nas instituições administrativas e também no sistema educativo. Foi um passo histórico para o reconhecimento e a valorização do galego.

O mais grave, contudo, foi o isolamento derivado da ideia de que o galego só se fala na Galiza e de que adotar a ortografia portuguesa significaria romper com a Espanha. Esse isolamento, que persiste ainda hoje devido à inércia social e à pressão de instituições interessadas em manter subvenções, contribuiu para a nossa baixa autoestima enquanto povo.

Se tivéssemos adotado o português padrão na Galiza, o português já teria sido oficial em Espanha há 40 anos. Talvez, assim, existissem acordos semelhantes aos que a Itália tem com a Suíça e a Eslovénia para proteger o alemão e o esloveno nos territórios italianos onde essas línguas são faladas.

Como gostavas que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2050?

Gostava que, em 2050, a Galiza fosse verdadeiramente bilíngue — não apenas no papel, mas na prática do dia a dia. Uma sociedade onde o galego e o castelhano convivem com naturalidade e respeito mútuo, sem hierarquias nem preconceitos, e onde o galego recupere o prestígio que nunca devia ter perdido. Essa igualdade só será possível se deixarmos de tratar o galego como uma língua “local” ou “doméstica” e o reconhecermos como o que realmente é: uma variante histórica da língua portuguesa, com acesso a uma das maiores comunidades linguísticas do mundo.

Gostava de uma Galiza onde o galego esteja presente em todos os espaços: na rua, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos supermercados, nas redes sociais, nas empresas, nos videojogos, no cinema, na ciência e na tecnologia. Uma Galiza onde ninguém tenha de mudar de língua para ser levado a sério, para conseguir um emprego ou para ser entendido fora das fronteiras.

Imagino um povo com autoestima linguística, que não sente vergonha de falar a sua língua — muito pelo contrário, que a vê como uma ponte para o mundo. Uma Galiza aberta à diversidade, onde se respeitam todas as línguas, mas onde a língua própria ocupa o lugar central que merece.

Gostava que, em 2050, a fotografia linguística da Galiza mostrasse uma sociedade consciente, livre e orgulhosa da sua identidade. Uma Galiza onde a língua é um património vivo, não uma herança em perigo. Uma Galiza de cabeça erguida, que fala de igual para igual com Portugal, com o Brasil, com Angola, com Moçambique, com Timor-Leste… e com o resto do mundo.

Conhecendo Álvaro Salgado:

Um sítio web: Wikcionário.

Um invento: as línguas.

Uma música: Medieval Spells de Pat Moon, também conhecida como Kate de Rosset.

Um livro: a série da Fundação, de Isaac Asimov.

Um facto histórico: A transformação de Bizâncio, uma cidade helénica, em Constantinopla, uma cidade ecuménica e mundial.

Um prato na mesa: a diversa gastronomia turca, com destaque para o mantı (uma espécie de ravioli turco) e a sopa ezogelin.

Um desporto: caminhar.

Um filme: She-Ra e as Princesas do Poder, embora seja uma série.

Uma maravilha: todas as aves são dinossauros!

Além de galego: crítico do eurocentrismo e amante da natureza.

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