As histórias do futuro de Machado de Assis, Uma novela e vinte e quatro contos que contam é o título do último livro editado na Através. Uma proposta especial, que inaugura a coleção Através do Brasil. Esta coleção inaugura-se com um clássico e referência da literatura brasileira, numa coletânea cuja seleção, edição e estudo ficaram a cargo da professora Alva Martínez Teixeiro e do professor Carlos Paulo Martínez Pereiro. Falamos com Alva e com Carlos Paulo.
Primeiramente, gostaria de saber como se deu o primeiro contato de vocês com a obra de Machado de Assis.
CPMP: Foi fruto do acaso. Na adolescência, na década de 1970, um vizinho que voltou de Cuba, facilitou-me uma tradução latino-americana das Memórias póstumas de Brás Cubas e fiquei fascinado. Daí para a frente, foram 50 anos de tirar do extraordinário fio machadiano, a começar pelo Humanitismo da delirante figura de Quincas Borba e da sua filosofia, sintetizada no desvairado lema darwinista “Ao vencedor, as batatas”.
AMT: No meu caso, foi uma descoberta na biblioteca familiar, mais ou menos, na mesma altura (na adolescência, mas nos últimos anos do século XX): primeiro, das Memórias póstumas de Brás Cubas e, a pouco e pouco, das obras menos (genialmente) irónicas de Machado de Assis. Foi uma descoberta e um encantamento com o Machado satirista, a poética da subtileza do excesso de teor swiftiano e a sua extraordinária criatura, o cínico Brás: ele é tão, tão, egoísta que todos identificamos nele defeitos dos outros, mas ninguém se pode identificar com ele.
Machado de Assis é amplamente reconhecido por seus romances, como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. No entanto, sua produção literária é muito mais extensa e diversificada. Para aqueles que ainda não conhecem sua obra, por que começar pelos contos seria uma boa escolha?
Em especial, consideramos que seria uma boa escolha porque estimulam qualquer prazer da leitura. Além disso, gostaríamos de destacar também que os contos foram, para Machado de Assis, uma espécie de laboratório textual, onde foi testando – com enorme sucesso – o experimentalismo narrativo, as possibilidades das modulações do cómico – do satírico ao irónico – e a capacidade reflexiva do texto literário a respeito da condição social e existencial do ser humano. Portanto, os contos são uma boa ‘porta de entrada’ para os textos mais extensos e conhecidos de Machado, pois condensam em excelência todas as suas virtudes da sua maior e melhor escrita.
É possível identificar diferentes fases na trajetória literária de Machado de Assis: uma primeira, de caráter mais romântico e menos conhecida, e uma segunda, marcada pelo realismo e naturalismo. Os contos e a novela incluídos nesta edição pertencem, cronologicamente, a qual momento da vida e da produção do autor?
Todos eles, tanto O Alienista, quanto os contos, integram-se na fase de maturidade de Machado de Assis, ‘pós-Brás Cubas’. Propositadamente, selecionamos apenas textos desse período, em que a escrita de Machado se distancia dos princípios ‘de escola’ para se tornar expressão de um grande pensador heterodoxo, cómico, mas ‘com rabugens de pessimismo’. É interessante pensar que até hoje os historiadores e estudiosos da literatura experimentam um certo desconforto e dificuldade ao tentar classificar essa escrita ‘pouco ortodoxa’, que acordaram denominar ‘realismo machadiano’, isto é, um realismo-outro, evoluído, porque, Machado, na verdade, se serve das convenções do Realismo para subvertê-las e sugerir que a complexidade do real não pode ser ‘fechada’ num texto acabado, perfeito e com ‘lição moral’.

Nesse contexto, por que o título As Histórias do Futuro do Machado de Assis? Há alguma relação entre essa escolha e as temáticas do romance e dos contos selecionados?
Não se trata tanto de uma relação ‘temática’, quanto de destacar a sua vigência e atualidade nos nossos tempos. Apropriamo-nos do título História do Futuro do Padre António Vieira, porque, na verdade, Machado de Assis parece um profeta, aquilo que Borges denominou um ‘plagiário por antecipação’. De facto, temas como a (problemática) delimitação de ‘normalidade’ e ‘loucura’ ou as fake news estão presentes, com centralidade, nalguns dos seus contos… Contos, aliás, que poderiam ter sido escritos nos nossos dias. Enfim, isto tudo para dizer que a narrativa breve machadiana aproxima-se da definição de Ítalo Calvino do clássico: aquilo que estamos sempre, não a ler, mas a reler.
O Alienista foi a novela escolhida para acompanhar os contos selecionados. Qual foi o critério ou a motivação por trás dessa escolha?
Achamos que se trata de uma das novelas mais representativas e insidiosamente bem humoradas de Machado de Assis. Aqueles leitores que ainda não conhecem essa ficção, poderão realizar uma leitura divertida e ‘divertente’, esclarecedora e deslumbrante. Neste sentido, os leitores que gostem de literatura que ‘testa’ os limites da estupidez humana a partir da procura de um conhecimento cartesiano e totalizante encontrarão nessa ficção de Machado de Assis mais uma figura paradigmática da linhagem dos Bouvard et Pécuchet, de Flaubert, ou do bibliotecário do Homem sem qualidades, de Robert Musil.
Como se deu o processo de seleção dos contos de Machado de Assis que compõem esta coletânea?
Como referimos no próprio livro, no posfácio, trata-se de uma seleção ‘tendenciosíssima’, servindo-nos das palavras do surrealista português Mário Cesariny. Dito isto, a seleção, de entre os mais de 200 contos escritos pelo autor, é fruto da (re)leitura constante, durante muitos anos, da textualidade machadiana, que nos levou a concluir que, sem dúvida, o mais representativo de Machado é a sua escrita mais heterodoxa. Afinal, ele é o pai da fascinante ‘tradição da anti-tradição’ do cânone brasileiro, que integra autores tão excepcionais e singulares como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst ou Nuno Ramos.
Na opinião de vocês, Machado de Assis e a literatura brasileira deveria ter maior projeção na Galiza? Quais seriam os principais desafios ou obstáculos para que isso ocorra?
Com toda a certeza. Acreditamos que a priori não há qualquer desafio ou obstáculo para além do desconhecimento da Literatura Brasileira, pois os assuntos visados e personagens criados por Machado nascem no Brasil oitocentista, mas se projetam para o universal. Esperamos que a singularmente plural Literatura Brasileira se torne a cada vez mais conhecida entre os galegos, pois essa ‘tradição da anti-tradição’ antes referida permite-nos conhecer o Brasil, mas também a nós próprios e a condição humana.
Por fim, poderiam compartilhar quais são os contos machadianos preferidos de vocês, e por quê?
Esta foi, provavelmente, a questão mais difícil… Pois são muitos – todos os desta seleção – os relatos excelentes que poderíamos ‘preferir’, mas, citaremos apenas dois…
AMT: “O Espelho (Esboço de uma nova teoria da alma humana)”, pela lúcida – e subtilmente irónica – reflexão sobre a essência e a existência corporificada pelo memorável personagem Jacobina à procura da sua identidade perdida. Espero que desculpem o laconismo, mas estou a tentar evitar o spoiler… Pois o (re)encontro com a identidade do protagonista é uma verdadeira (e paradoxal) revelação da profundidade e da banalidade humanas.
CPMP: “O Segredo do Bonzo (Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto)”, pela singular doutrina sobre as ‘verdades alternativas’ que ironicamente gera a invulgar ficção: “se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”.