Tudo começa com a fita de Moebius, uma superfície dum só lado e duma única borda, um desses objetos não orientáveis da matemática que põem a prova o entendimento e a imaginação. Se dermos cor ao aparente exterior, ficará corada toda a fita, que, portanto, representa um caminho sem princípio nem fim; sem exterior nem interior. Rebeca Baceiredo decide passar o dedo pela borda duma fita de Moebius, como fizeram Escher e tantos outros artistas, para chegar ao ponto de partida após ter feito o percurso total.
Felizmente, um ensaio nem sempre é um volume erudito onde esgotar completamente um tema. Para isso existem as teses de doutoramento e as publicações especializadas. Ensaio é literatura de ideias, com efeito, mas atravessada pelo interesse criador: importa a achega própria, o diálogo interno com o assunto que se trata, e a poética imprescindível para nos manter dentro desse território amplo da literatura. A autora, nesta entrega como noutras anteriores, demostra a coragem de se enfrentar de peito aberto a um assunto que a preocupa. A coragem é a sua arma. E concede um perfil próprio a toda a sua obra: magmático e provocador.
O ensaio, de facto, foi fulcral na história da literatura galega e, no entanto, hoje é um género relativamente escasso; e, aliás, com poucas assinaturas femininas, o qual numa época em que já temos tantas mulheres peritas nas mais variadas disciplinas deveria ser em si próprio motivo de inquietude para a pesquisa cultural. Nessa tradição de valorizar o ensaio literário, que remonta à Geração Nós, Baceiredo tem-se debruçado sobre diferentes temáticas: o sujeito pós-moderno, o consumo, a apatia na época da globalização, e tem conseguido o Premio Ramón Piñeiro, o único certame específico para este género na literatura galega. O seu pulso sempre é firme, decidido: observa os assuntos por si própria, ajudada pelas ferramentas duma dilatada biblioteca e dum espírito crítico pungente, que fura até revelar algo novo, frequentemente apresentando-o adornado duma capacidade estética comovedora. Observa-se nela um interesse metódico em não dar por certo nada até não ter desmontado as peças da engrenagem e ter volto a montá-las. Isso implica negar as autoridades e alçar-se a dialogar diretamente com o assunto: uma atitude que deve ser celebrada.
Nesta ocasião, em Oiko-nomia do xénero: Relato das clausuras chega-se a um tema que provavelmente estava a ser demandado no conjunto da sua obra, o do género. Na estranha lógica da vida quotidiana, imposta frequentemente pelos médios de comunicação, nunca se pergunta a um autor se considera a sua masculinidade, ponhamos por caso, peça fulcral para escrever teatro, ou como pode conciliar a sua produção intelectual com a sua vida privada. Tais perguntas julgar-se-iam inoportunas e não é assim muito surpreendente. Porém, uma autora deve responder, diretamente nas entrevistas ou indiretamente, no relato da crítica, ao seu relacionamento com o género. Nesse sentido, há de ter-se visto interpelada. E decidiu dar forma a essa resposta num volume breve, mas de certa dificuldade para uma leitura não especializada, que se situa, acho que deliberadamente, nesse circuito infinito de Moebius.
Tratar o tema do género sempre é espinhento: é a cápsula que nos atravessa e que nos representa socialmente. Da mesma maneira que a autora é olhada como mulher na foto da capa, há de ver-se exposta como corpo sexuado ao revistar as políticas que regulamentam a maternidade, o matrimônio, ou as liberdades todas −as das boas mulheres que um dia decidiram tornar-se pérfidas, as das insatisfeitas, as das putas, as das violentadas e as das quem nem cabem em si e resistem a qualquer classificação−. Dalguma maneira, continuamos a ser um sexo com patas e, às vezes, um sexo com patas que faz filosofia. Eis o atrevimento de escrever sobre género assinando com um nome de mulher.
Em consequência, Rebeca Baceiredo decide proteger-se. Visto que se expõe como tal corpo-sexuado-que-também-pensa, agasalha-se com outra tradição: a marxista que, imagino, abraça por motivos ideológicos, mas também está a servir de escudo para ela não se inscrever sem mais no território, vasto e às vezes contraditório, dos estudos de género. Não estamos, portanto, perante um ensaio feminista sem mais apelidos −talvez hoje, com tantos feminismos isso simplesmente não seja possível. Estamos perante um ensaio sobre género que dialoga com o marxismo. Contudo, percebe-se um ponto de vista mais próximo da Rosi Braidotti da subjetividade nómade do que da Kollontai o qual, sem dúvida, também é de esperar, tendo em conta razões cronológicas. A fita de Moebius está já em marcha: mesmo pretendendo uma análise legível em termos marxistas, a autora demonstra sempre uma clara preferência por autores heterodoxos, em especial, por Deleuze, Guattari e Foucault.
Tal e como se situa o tema do começo, o objetivo consiste em justificar a relação entre género e sistemas de propriedade. E a dupla mochila feminista e marxista assoma tanto nos temas que se colocam em destaque como no tratamento da bibliografia. Por exemplo, mesmo se recorre a Eva Illouz, nunca aceita as suas categorias psicológicas, do estilo da felicidade emocional, porque Baceiredo tem marcada preferência neste trabalho pelas questões materiais, pelos dados contrastáveis e evita, na medida do possível, aspetos mais subjetivos. Dalguma maneira está a rejeitar os universos simbólicos, onde, no entanto, ela se mexeu sempre tão bem. Isso, devo confessar, desorientou-me. Esta restrição autoimposta deve querer significar algo: começamos a nos deslizar pela fita. Era uma figura inesperada. Em geral, o ensaio segue a topografia dum vetor: leva para algures, premeditadamente. Não estamos exatamente lá.
A seguinte surpresa chegou dum olhar diferente da Baceiredo que conhecia. Agora expõe as suas ferramentas para darem nas vistas. Vai para a antropologia e para história, continuadamente, às vezes duma maneira reiterativa ou excessivamente abrangente: o povo mbtu do Zaire, o lovedul e o pondo da África do Sul, o povo ganda da Uganda, o nupe da Nigéria, o chinanteco do México, o mbum kupau do Chad, as mulheres iorubas, as iatmul da Nova Guinea e ainda muitos mais casos. E sobrevoa a época das cavernas, as mulier sapiens, com licença da expressão, as das covas de Chauvet ou de Lascaux, as da Mesopotâmia e o Egipto, as que se submetem aos pater familias de Roma… A leitora por um momento entra em alerta e interpela à autora: “Rebeca, se juntares tantos dados em duzentas páginas, não hás de ter espaço para dizer nada próprio”. Evidentemente, ela queria segurar a sua hipótese, para afirmar (2016, 106) que não importam tanto as capacidades que as mulheres demonstrem, mas o regime da propriedade e a forma da superestrutura que se gera para o manter. O relato das clausuras está fechado: nem necessita ser explícito porque se conseguiu que fosse inerente à condição feminina. Tantos dados deitados cá e lá só passam a ser relevantes quando a autora usa o seu dardo para comparar, com evidente ironia, as diferentes tribos, por exemplo ao indicar (2016, 112) que, enquanto Ocidente lutava por ensinar os peitos fora da olhada patriarcal hegemónica, as castas baixas da Índia lutavam para ter a possibilidade de se cobrir, algo que era estritamente proibido para manter as diferenças hierárquicas. Assim sendo, todas as culturas obraram de acordo com um universal que sexualiza as mulheres como suspeitosas: são um ser diferente do demandado socialmente, que deve submeter-se a rígido controlo.
Mas a fita de Moebius é perigosa porque regressa para o princípio. Ser mulher é um dado biológico que em todas as culturas se torna num artefacto simbólico para o domínio. E se o construto se fundamentar numa base biológica universalmente, poderíamos prescindir do construto… e não podemos. O domínio geral do masculino no mundo foi intuído pelos primeiros feminismos e desenvolvido com lucidez pelo feminismo radical e nem imagino que a autora não saiba. Porque é que desliza, então, o seu dedo numa fita infinita que nos vai conduzir para o ponto de partida? Uma das maneiras de desfazer a circularidade, acho, seria demostrar como os traços de feminidade, quando se derem nos homens, são vistos como negativos, porque lá é que deixaram de ser “naturais”. Quando performamos como mulheres, por exemplo gesticulando, não respondemos a um patrão biológico, mas a uma conduta socialmente incutida que também se percebe nalguns homens: isso que em espanhol se chama de pluma e que é tão castigado. Porém, Baceiredo não quer entrar nas tradições feministas, que analisam diretamente a depreciação inerente ao feminino. Não quer entrar, digo, e matizo, não completamente; porque se veria obrigada a atender aspetos simbólicos e tenta é dirigir-se a outro tipo de público. A fita cumpre um objetivo pedagógico? Talvez.
Nos estudos de género aconselha-se incluir o nome das autoridades expostas na bibliografia para salientar que não todas elas são homens e a autora utiliza esse procedimento que permite uma comprovação simples: o 45% da bibliografia final é de autoria feminina e ela passa com sucesso o exame. Não é precisamente habitual isto ainda. Porém, no interior do trabalho, pode notar-se também, não utiliza todas as autoras de que faz citação, de maneira que quando, por exemplo, menciona ao final a já referida Alexandra Kollontai, há que imaginar que simplesmente a autora quer mostrar-nos a sua filiação; inscreve-se num hipertexto. Duma maneira bem reveladora, por exemplo, no capítulo onde se ocupa do processo de imposição capitalista e do género, aparecem Marx, Engels, Negri; também Foucault, Deleuze e vários autores mais, menos conhecidos. Mas apenas uma vez cita Silvia Federici, a autora de Caliban and the Witch, que tão brilhantemente matizou a teoria da acumulação primitiva de Marx e que, embora ser uma pensadora marxista feminista, apoia o reconhecimento do trabalho doméstico, o trabalho sexual e a luta pelos comuns. Marx não se ocupara do trabalho reprodutivo, imprescindível para o capitalismo, e Federici vai interpretar o capitalismo como um movimento reacionário para eliminar o comunalismo e manter o contrato social tradicional. Esta é, grosso modo, uma ideia que Baceiredo partilha, embora passe pela autora precedente em bicos de pés. Para apontar um hipotético caminho de convergência entra ambas, Federici situa a prática da violação, assim como as torturas e queimas de bruxas como um trabalho metódico de doma e castração das mulheres, que depois há de ligar-se à expropriação colonial e proporciona o quadro para entendermos o labor de tantas instituições (ponhamos por caso o FMI ou o Banco Mundial) que promovem uma nova acumulação dos bens comuns. Porque neste momento histórico a água, as sementes ou o próprio código genético estão a ser privatizados. E não por acaso, conseguir água potável ocupa muitas horas na vida das mulheres fora do primeiro mundo; os transgénicos acabaram com um tipo de saber em que eram peritas as mulheres idosas (o de decidir em que momento semear, quais são as sementes melhores e mesmo o modo de conservá-las) e a engenharia genética pratica-se diretamente sobre corpos femininos. Seria muito interessante, e perfeitamente acorde, acho, com o pensamento de Baceiredo, explorar estas linhas.
A Oiko-nomia que se nos presenta tenta ser ortodoxa e só esporadicamente entra nas tradições dos estudos culturais (via Spivak); nunca noutras tendências anticapitalistas mais genuínas dos estudos de género, como o ecofeminismo. Nem Vandana Shiva, nem Maria Mies, nem Greta Gaard, nem Carol Adams. Por isso, a leitura pode surpreender. A mim, pelo menos, surpreende-me um ensaio sobre género que cite Aristóteles ou até cinco trabalhos de Marx e prescinda, no entanto, das mais inovadoras formas de feminismo que conheço. É certo que isto, como quase tudo, é subjetivo. É certo que eu posso encontrar o ecofeminismo estimulante e ela não. Mas num relato sobre a oiko-nomia achei em falta alguma reflexão sobre a conexão entre os direitos das mulheres e os dos animais (na linha que vai da ética de Tom Reagan e Peter Singer às ecofeministas mencionadas), ou sobre a relação entre a opressão da classe proletária e a opressão do Terceiro Mundo e das mulheres; ou falar em propriedade da terra ou em engenharias genéticas.
A tese fundamental é que as mulheres são oprimidas em todas as culturas. Nisso consiste o género: em que as condições e peculiaridades da fêmea entrem na sociedade como um mecanismo de opressão. E a autora revista as cavernas, as civilizações antigas, Roma, a Idade Média para dizer que tudo foi a pior e não a melhor com o capitalismo. Concordo. Porém, na linha da Historiografia da vida quotidiana, o feminismo começa a ter certo impacto em Ocidente na mesma época em que se popularizam os eletrodomésticos; a época em que Betty Friedan assinala o mal-estar e o aborrecimento da ama de casa burguesa, quer dizer, justo quando o trabalho de cuidados passa a ser aparentemente menos necessário. Não sei se importa só que um trabalho seja mercantilizado ou não; importa, e muito, a noção de ser apreçado, de se considerar útil: importa, portanto, também o capital simbólico.
É fundamental que se escrevam em galego ensaios que olhem além do contorno social imediato: autora e editora devem ser parabenizadas. Mas lamento que não se dialogue com nenhuma pensadora galega. Aurora Marco ou Maria Xosé Rodríguez Galdo, por mencionarmos figuras de reconhecido prestígio, proporcionam dados de inestimável valor. Bastante mais úteis do que os de Aristóteles. Para apoiarmo-nos num exemplo, ambas investigadoras documentam a figura de Elvira Rodríguez, uma mulher de Ourense que denunciou o seu homem por maus tratos e conseguiu que um tribunal a protegesse com uma sentença de afastamento, a primeira em toda Europa, que se dita em Ourense… antes de Colombo chegar à América. Como Rebeca Baceiredo trata a violência em termos nada rotineiros, como faz análises rigorosas e sistemáticas que enunciam o que todo livro deveria conter, algo novo e não trivial, a hipótese de ela caminhar de mãos dadas com outras pesquisadoras que, também com coragem, maridam o velho e o novo, convida a pensar que talvez a oiko-nomia ainda não esteja completa. Gostaria de que estas palavras servissem para animar Rebeca Baceiredo a continuar a sua exploração. Porque, após ter dilucidado neste ensaio tantas questões, a sua ótica há de ser mais profunda. Nas redes sociais, difundia a autora nesta época pós-parto do seu livro uma interessante reflexão contra o uso do termo terrorismo machista, tao habitual em ambientes feministas para denominar a violência de género. Precisamos isso: fazer uma análise (política) do discurso, para não emitirmos simples palavras de ordem, abrir debates incansavelmente; não achar conforto perante a violência; essa tensão.
O livro é uma revisão crítica da condição de vítima de cápsula. Informa, faz pensar e a editora Axóuxere fez um trabalho cuidado, mantendo a linha que a carateriza de publicar textos críticos, que impregnam a nossa sociedade de dinamismo e, aliás, neste caso, acompanhados de ilustrações magníficas sobre fundo negro: o livro é até um lindo objeto. Como em toda fita de Moebius o inquietante é que a autora não nos permita entrever um via de escape para o relato das clausuras. Nega nalgum momento a reiteração proposta por Judith Butler como saída possível. Mas é possível, a meu ver, intuir lá uma via. Dito em breve, os feminismos fundamentaram-se num nós forte: somos mulheres e somos tratadas como menores, convocando outras mulheres a entrarem num conflito aberto. Mas a partir de Butler cria-se uma fenda imensa. Se o género não existe −se só for possível representá-lo−, o nós apaga-se. Escapar à feminidade foi a solução proposta por algumas feministas, que passam a ser caricaturadas como mulheres feias, que não se depilam, terrivelmente suscetíveis, masculinas, e profundamente anti-homem, para além de mal-humoradas. Porém, no Body Art, muitas artistas, como Hannah Wilke ou Ana Mendieta desafiaram hiperfeminizando-se, mas… demonstrando que possuíam os médios de produção, a câmara fotográfica, de maneira que podiam retratar-se despidas e não ser mais um objeto de consumo, se se quiser “ao serviço do patriarcado”. Por isso, nesta época, não podemos estar certos de que repetir o género até a saciedade não sirva: a reapropriação é uma tática underground, de despossuíd@s e absolutamente feroz. E explica que tantas mulheres utilizem as velhas etiquetas insultantes como bandeira, chamando-se de putas, elaborando consignas que brincam com a obscenidade (“na minha cona não manda ninguém); convencidas de que iterar um termo resta poder à injúria. Importa saber estreitar o laço: retorcer a fita de Moebius para achar uma saída.
Na ótica de Butler, um termo como marica é um insulto dito num posto de trabalho a um companheiro e não é dito no tempo de lazer ao mesmo companheiro, for homossexual ou não (embora tenha diferentes resultados). Nesse sentido, um termo como mulher poderia ser insultante nalgum contexto e não noutros. E isso não dependeria, só, de possuirmos os meios de produção. A linguagem, mecanismo simbólico, cria o mundo. Neste contexto de mutações, o género há de vir travar uma batalha ainda mais dura em pouco tempo: o problema dos big data, dos dados sobre a nossa identidade com que ficam as grandes companhias para vender-nos qualquer coisa, mesmo se estão a negociar com a nossa intimidade, obrigará a formular a pergunta de se é uma informação relevante a de ser eu mulher. Pode virar contra mim? Estou em disposição de não permitir que se use essa informação biológica na maioria dos contextos? O dado é meu? Ou é o poder quem o regula e o usa à vontade? Nesta altura, a revisão da sexualidade da Messalina, do caráter mágico de certas deusas, sendo interessante, é já arqueologia. Gostaria de que Rebeca Baceiredo, pensadora, regressasse a este tema. Para dizer o que ainda não disse. Ela é uma máquina inferencial; pode cá iluminar. Muito.
Rebeca Baceiredo tenta responder à questão de como se constrói o relato de gênero. Podemos imaginar, apesar do seu tom de distancia científica, que mesmo conhece bem o artefacto em carne própria: é uma ela, não um ele. O assunto, na tradição marxista, não está em desmascarar o como funcionam os procedimentos, mas em transformarmos esse funcionamento; em tornarmos o aborrecimento num impulso revolucionário. Na Oiko-nomia realizou um exercício forte de síntese, com resultados sugestivos. Agora, poderia abandonar o X onde se situou −olho, o X com que se pretende evitar o masculino genérico é uma armadilha: continua a demandar qual é a identidade verdadeira−; e ir para a @, que também tem as formas sinuosas da fita de Moebius, mas está aberta: é instável, permite a mudança e convida a experimentar até o fundo a experiência teatral do género. Poderia indagar, com rotundidade, sobre se o ser-mulher é um papel executado. Porque, num tal caso, bastaria com alterar a performance para que deixasse de existir, como nas práticas queer. Haveria que perguntar também ao editor se editaria o livro na hipótese de ser um corpo não sexuado quem o assinasse. Seria possível a estratégia de não defender o livro com o relato adicional duma autora interpretável na sua cápsula? Se não fosse assim, a clausura viria a fechar-se mais uma vez sobre nós. Não podemos derrotar o amo com as ferramentas do amo. Podemos interpretar um papel, mesmo histriónico −o das femem exibindo os peitos, o da companheira de trabalho que insiste em que a interrompem por ser ela mulher e que isto é um micromachismo−, mas dificilmente poderemos criar um espaço como o que pedia Julia Kristeva, onde o género for tao irrelevante como a cor de olhos. Podemos ser quem queremos ser? Podemos sair da fita que nos obriga a repetir circularmente um retorno insuportável? Podemos (ainda) libertar-nos? E viríamos a libertar-nos exatamente de quê?
* Texto publicado no Blogue A Tecer Aranheiras