A doença do horizonte

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Umha resenha para Tempo Tardade, de Raquel Miragaia

Como aquele que se embarca num navio para cruzar o basto oceano sem a garantia de vencer o fracasso. Como aquela que regressa ao espaço onde começou o exílio. Sempre há um horizonte que doe. Chegamos tarde. É umha tardança que nom se mede num tempo cronológico (o relógio nunca avisa da hora em que tudo acaba e ninguém fica). É um tardar que magoa no fundo do coraçom por estar sempre a perder-se, a perder de fazer cousas. Doe, sim. Assusta. Atravessa-nos em vertical como se dumha espiga se tratar.

Um medo primitivo, aprendido, é o que sente Branca ao voltar à casa familiar trás a morte da nai. O que experimenta esta mulher, ainda criança, ao descobrir entre as gavetas do quarto umha moreia de cartas sobre um tio seu emigrado a América. Dele nada sabia. Tampouco da sua própria nai, agora já só umha ausência, nem dela mesma. O que significa ser Branca? Com o tempo, que tarda em chegar, irá afundando mais em cada umha destas frontes abertas.

Há um desamparo nestas páginas. Enquanto às persoas mas nom só. Também no que atinge ao lugar. A casa do regresso é umha casa vazia, o berço da infância que se perdeu entre os dixo-me dixo-mes e as expetativas incumpridas. Entre a incompreensom. Estar sem saber cara aonde ir, o que fazer, perguntar sobre o que nom sabemos e o que presupomos. Isto está aqui, em Tempo Tardade. Isto é.

«Pela primeira vez desde a morte da mãe tive o impulso de chorar. Pelas ausências, pela nostalgia, por mim e pelo meu crescimento que não acabava de coalhar».

Raquel Miragaia pom-nos diante o isolamento dum mundo que nos pertenceu noutrora. Um espaço ante o qual surge a dúvida: onde colocamos o silêncio? Cuido que este romance, de querer dar algumha resposta, acha as palavras e os feitos para a soluçom do enigma na memória. Se calhar, ser umha mulher, nova, de aldeia, ou ser um emigrado, nom deixe muitas opçons para começar de novo, do nada. Para construir a história persoal que se inicia com afugida; a qual, dalgum jeito, exige a necessidade da verdade da volta.

For voluntária ou forçada, a fugida sempre se erige como um possível mas também como umha sorte de desterro, de desarraigo. Quiçais por isso seja mais doado esquecer. Quiçais por isso é o recordo o que se rebela e fica. Raquel Miragaia recupera nesta obra a denúncia que outras autoras tenhem tratado igualmente: o desarraigo de María Sánchez (com o poemario Cuaderno de Campo, editado no 2017 por La Bella Varsovia ou o ensaio Tierra de mujeres, publicado em Seix Barral no ano 2019) ou o de Susana Sanches Arins com o Seique (Através, 2015 -ediçom revista e ampliada no 2019-). A urgência dum rural desidealizado marcado pola memória coletiva e individual, sem tópicos e com o que umha reconciliaçom. Também tem que ser um possível.

Fai-se visível a aldeia. O lugar do que herdar a mesma lástima nas mans. A aldeia como limitaçom das oportunidades, como recipiente do destino e dos preconceitos. Como esperança também. A aldeia como o lugar em que se manifesta umha medida diferente das cousas, pois nela o tempo é mais subjetivo que nunca. Um tempo da História que retorna até década de 30 do século XX e um tempo do rural mediado pola natureza e a contorna. Um tempo tardade, demorado no progresso, mas também calmado. Assim, a aldeia contraditória. Assim, o rural que assinala.

«Olhando as minhas mãos, após aqueles meses, percebi o porquê de nunca poder ter tido uma visão romântica do campo. O campo, a aldeia, além do silêncio reparador e do canto dos passarinhos, eram as mãos secas e gretadas de meu pai, as mãos cheias de frieiras de minha mãe e, também, as minhas mãos toscas, sem manicure nem unhas pintadas».

Como falar do que ninguém nos falou? Como nomear o inominável? Que fazer quando nom encaixamos? Como sujeitar-se num mundo alheio? Branca, a nai, Modesta, Serafim. Todas, personagens a mover-se por riba das letras de Raquel Miragaia, nas pontas dos pés, para contar umha história acerca do marchar, do ficar e do volver. Umha história acerca do começar a construir-se (se bem me centrei na história de Branca, a de Serafim e a sua emigraçom definidora continua a ser tam clarificadora neste sentido). Se esta obra ainda é mais, muito mais (spoiler: sim), há que descobri-lo lendo-a e gozando-a desde a con(s)ciência, do estilo lírico e cuidado da autora onde cada palavra tem o seu oco na narraçom. Nom cheguedes tarde. Nom vos demoredes em ler este Tempo Tardade. É todo quanto vos podo dizer.

Estou certa. No fim deste texto semelha que o horizonte se esclarece… Um horizonte que nos evidencia o ponto no que estamos, de onde vimos e cara onde caminharemos. Poderemos ser funambulistes do equilíbrio e da esperança no nosso tempo tardade. Poderemos? Quiçais.

Como sempre… sede livres com os livros!

Ficha técnica
Título:TempoTardade
Autorie:Raquel Miragaia
Anodeediçom:2020
Género:narrativa
Númerodepáginas:171

Elisa Nieves Barreiro (@delibrosalibres)