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Ângelo Cristóvão: Galiza, mais lusofonia e Língua Portuguesa

Ângelo Cristóvão (JL, janeiro 2015)
Ângelo Cristóvão, secretário da AGLP e membro da Comissão Promotora da Lei Paz-Andrade

Carolina Freitas (JL) – Promover a Língua Portuguesa no sistema de ensino galego; estimular a produção e o intercâmbio de conteúdos em português nos meios de comunicação da Galiza; e integrar essa comunidade autónoma no espaço lusófono, nomeadamente na CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Eis as três principais “linhas de trabalho” da lei para o Aproveitamento da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia, também chamada lei Paz-Andrade, aprovada, por unanimidade, no Parlamento galego, em abril passado. Um consenso “histórico” que assinala um ponto de viragem na política linguística do governo galego, garante, ao JL/Educação, Ângelo Cristóvão, responsável pela Comissão Promotora da Iniciativa Legislativa Popular, que levou a proposta de lei ao Parlamento com o apoio da Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), entre outras entidades, e de mais de 17 mil assinaturas. Nove meses após a sua publicação, o também secretário da Comissão Executiva da AGLP fala sobre o que está a ser feito e o caminho a percorrer na área da Educação, mas também nos domínios político, económico, social e cultural.

Qual é o ponto da situação, passados nove meses sobre a aprovação da lei para o Aproveitamento da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia?

No que toca à implementação da lei, em termos jurídicos e de projetos em andamento, há que perguntar ao governo galego. Da nossa parte, podemos dizer que tem havido, efetivamente, uma colaboração entre o Governo e as entidades promotoras da lei no sentido do desenvolvimento de projetos concretos.

Uma das linhas de fundo é a promoção do ensino do português no sistema escolar galego. O que está a ser feito nesta área?

O Governo está já a contactar alguns ateliês no sentido de introduzir o ensino do português, sobretudo ao nível do ensino primário, básico e secundário. Nós temos também apresentado algumas propostas, que estão ainda a ser analisadas a nível governamental.

O objetivo não é tornar o português uma língua obrigatória nas escolas?

Precisamente. Ninguém está obrigado a aprender português, nem a entrar nesta linha de trabalho. No entanto, isso é agora contemplado pela legislação galega. É necessário entender esta lei à luz dos últimos 30 anos. Ora, desde 1983 – quando começaram a traçar-se as políticas linguísticas dos governos autónomos -, a Galiza seguiu uma orientação anti-lusófona. Houve um grande esforço humano e económico para impedir o ensino do português e afastar a Língua Portuguesa do conhecimento público. Esta lei vem, de alguma forma, reconhecer que essa decisão política foi um erro.

Como?

Desde logo, reconhece-se no prólogo o trabalho do chamado Movimento Lusófono Galego, que foi, nos últimos 30 anos, sistematicamente ignorado. Nomeadamente, o trabalho da Comissão para a Integração da Língua da Galiza no Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, que participou nos acordos de 1986, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, e de 1990, na Academia das Ciências de Lisboa.

No fundo, esta lei é um mecanismo que permite ultrapassar três décadas de políticas anti-lusófonas, de uma maneira suave, gradual e não conflituosa. Porque não pretendemos apontar o dedo a quem durante todo este tempo trabalhou contra o português, nem mexer na ‘ferida’. Estamos numa nova fase e não queremos que ninguém fique fora do ‘jogo’.

LÍNGUA E HISTÓRIA

Celebraçom da ILP Paz-Andrade em Sam Domingos de Bonaval
Celebraçom da ILP Paz-Andrade em Sam Domingos de Bonaval

No seu entender, quais devem ser as prioridades no que respeita o ensino do português?

É preciso dizer que o português já está a ser ensinado na Galiza através do galego, que é uma forma dessa língua. Mas falando do português padrão, ensinálo na Galiza não é o mesmo do que ensiná-lo na Turquia ou na Alemanha. Porque os alunos galegos, no primeiro dia de aulas, já falam português, ainda que tenham um léxico e uma pronúncia diferentes. Ou seja, em termos de currículo e de programa, entram, geralmente, no nível médio. Então, é preciso criar uma pedagogia e uma didática próprias. Os nossos alunos devem aprender a gramática e as regras do que chamamos o português padrão, que é diferente daquilo que se ensina nas aulas de galego.

Esse deve ser, a partir de agora, generalizado?

A posição da Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), criada em 2008, tem sido esta: fazemos parte da Europa e a nossa intenção é reforçar o português europeu. Por exemplo, o Dicionário Eletrónico Estraviz, por certo o maior dicionário galego, com mais de 130 mil entradas, está conforme o Acordo Ortográfico (AO) e segue as regras do português europeu. No entanto, não pretendemos impedir que os alunos tenham acesso a outras formas e a outros sotaques, porque o conhecimento da variedade acarreta o reconhecimento de que todas as variantes são igualmente válidas. Recentemente, o próprio governo galego criou, através do departamento de Educação, uma nova plataforma informática que é uma espécie de portal para aprender português, em situações concretas (turismo, negócios, etc.), e que inclui os diversos sotaques dos vários países lusófonos (Angola, Brasil, etc.).

Existe então a preocupação de divulgar um português ‘múltiplo’?

Sim. Como se vê por essa plataforma, o governo está consciente de que é necessário criar instrumentos que permitam aceder ao português, mas não só ao português de Portugal. Há que facilitar também o conhecimento de outras formas. É importante dar a conhecer que a nossa língua é extensa, útil, e que tem vários registos e pronúncias dentro da unidade de uma mesma ortografia.

São instrumentos para serem utilizados em contexto de sala de aula?

São, mas não só. A área de trabalho do ensino do português passa, naturalmente, pelas escolas – para as quais esperamos que, em breve, sejam disponibilizados professores (pelo menos para aquelas que queiram ter essa oferta). Mas a lei também contempla os funcionários públicos, por isso é importante que também estes tenham acesso gratuito a aulas de português. E inclui ainda um terceiro ‘universo’: as empresas. É natural que haja interesse, da sua parte, em aceder mais facilmente aos mercados da Língua Portuguesa e, para isso, é fundamental conhecer a gramática comum. Mesmo que qualquer empresário consiga expressar-se oralmente, não é o mesmo fazê-lo com um desenvolvimento médio ou fazê-lo bem feito, em português correto.

Além da Língua, a lei Paz-Andrade pretende contribuir também para um maior conhecimento da História comum?

Sem dúvida. Já existem várias iniciativas nesse sentido, como o projeto ‘Ponte… nas Ondas!’, de cooperação entre escolas primárias e secundárias da Galiza e do Norte de Portugal. Ou o festival de música ‘Cantos na Maré’, fomentado pela cantora galega Uxía e organizado pelo concelho de Ponte Vedra. Tudo isto nasceu da sociedade civil. Já existia. A lei veio, de certo modo, legitimar o que já havia e, naturalmente, promover uma maior aproximação linguística e cultural. No entanto, ao nível do ensino, penso que é preciso dar a conhecer mais a nossa História comum, o que compete aos redatores dos manuais escolares. E construir também um futuro em conjunto. Há muitos anos que a fronteira europeia luso-espanhola desapareceu fisicamente, agora é tempo de desaparecer também das mentalidades.

O HORIZONTE DA CPLP

Intervenção de Valentín García Gómez na conferência 'Perspetivas da Língua Portuguesa'
Intervenção de Valentín García Gómez na conferência ‘Perspetivas da Língua Portuguesa’

Outra linha de intervenção da lei é a produção, o intercâmbio e a divulgação de conteúdos audiovisuais em português nas televisões e rádios da Galiza. Já se veem resultados?

A Comissão Promotora tem estado em contacto com a Companhia de Rádio e Televisão da Galiza (CRTVG) para colaborar e assessorar em espaços de produção de conteúdos em português, nomeadamente um curso de Língua Portuguesa, que está a ser pensado para longo prazo. Nesta área, é importante que os outros países lusófonos tenham conhecimento desta lei e que encontrem, também eles, formas da Galiza participar. Em setembro passado, realizou-se o programa ‘Aqui Portugal’, em direto de Ourense, fruto de uma parceria entre a RTP e a CRTVG. Foi um verdadeiro sucesso de audiências. Há que continuar.

Em outubro, a Galiza esteve, pela primeira vez, representada formalmente num encontro da CPLP, em Braga. Qual o significado desse momento?

Foi muito importante. É uma prova dos passos que o governo galego parece estar disposto a dar em direção à Comunidade.

A Galiza pode vir a fazer parte da CPLP?

Essa questão está em cima da mesa, mas tal como aconteceu com a aprovação da lei é preciso criar consensos. Temos de entender onde vamos entrar. Não se trata de obter um título para pôr na parede; é preciso que o governo e a sociedade percebam o que significa fazer parte da CPLP, nomeadamente qual pode ser o papel nela da Galiza.

E qual poderá ser, na sua perspetiva?

Pode vir a beneficiar especialmente Portugal. A entrada recente da Guiné Equatorial modificou, de certa forma, o equilíbrio dentro da CPLP. A minha impressão é que a entrada da Galiza pode vir a restabelecê-lo.

Em que sentido?

Em termos linguísticos, a Galiza reforça o Português europeu. Depois, em termos práticos, existe evidentemente todo um mercado por explorar. Por exemplo: quem vai publicar os manuais escolares para o ensino do Português na Galiza? De onde virão os professores de Português que a Galiza terá de contratar? Além disso, o nosso processo de aproximação à CPLP implica necessariamente parcerias com entidades públicas e privadas dos outros países lusófonos. Com quem vão ser estabelecidas estas parcerias? São algumas perguntas que podemos colocar.

Até que ponto o fator económico pesou no consenso alargado conseguido em torno da lei?

Houve vários fatores, esse foi um deles. Outro foi o insucesso do isolacionismo linguístico galego —da defesa de um galego afastado do Português e da ideia de que isso iria garantir o futuro da própria língua—. A Galiza não melhorou nada, em termos de usos linguísticos ou de número de falantes, afastando-se do português. Depois, contribuiu também o crescente número de entidades, personalidades e escritores da Galiza a adotar o português padrão na versão do AO. E, sim, a própria crise económica levou a pôr em cima da mesa o sentido instrumental da língua. A língua não é só uma expressão cultural. Nem só sentimento. É também um instrumento de comunicação. E o galego na sua versão castelhana revelou-se um instrumento deficiente.

Estão então reunidas as condições políticas para essa aproximação ao mundo lusófono?

Estão. De hoje em diante, tudo dependerá do fator tempo e das oportunidades. Mas esse é o caminho e serão dados passos nesse sentido. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, a Galiza entrará na CPLP. A AGLP tem trabalhado intensamente com as comissões diplomáticas dos países da CPLP e nenhum deles se opõe à nossa entrada. Além disso, há um consenso interno alargado sobre o assunto, o qual inclui o governo de Madrid.

De que forma pode o governo português contribuir para esse processo?

Como diria o cantor José Mário Branco, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Ou seja, Portugal, através do Instituto Camões (IC), poderia começar por repensar a sua política em relação à lusofonia galega. Em 2011, a AGLP apresentou uma candidatura para entrar como setor consultivo da CPLP e o IC foi precisamente o único a colocar obstáculos. Talvez seja altura não de favorecer a Galiza, mas de posicionar-se adequadamente de forma a facilitar o processo.

Tem conhecimento de alguma reação de Portugal nesse sentido?

Não. Sabemos apenas que a Embaixada de Portugal em Madrid mantém contacto com o governo galego, interessando-se pela aplicação da lei. A política exterior de um país tão antigo como Portugal é muito difícil de mudar, por isso não será fácil a classe política portuguesa alterar a sua atitude em relação à Galiza. Certo é que a Galiza vai precisar de estabelecer parcerias. Não podemos inventar tudo de novo. Por isso digo que Portugal poderia repensar certas políticas de obstrução, especialmente da parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros que, por vezes, tem sido mais colaborador com entidades galegas anti-lusófonas do que com as lusófonas.

Esse é um dos grandes desafios da ‘aplicação’ da lei?

É algo que não depende de nós. Compete-nos continuar a manter o consenso alargado e consolidar uma posição única em relação a estas matérias, quando participamos em encontros internacionais. Precisamos de construir uma posição conjunta nos âmbitos económico, cultural e de cooperação internacional. É nisso que estamos a trabalhar.

Houve alguma alteração substancial entre a primeira proposta de lei e a versão aprovada?

Houve algumas melhorias. Por exemplo, a versão inicial estipulava que a lei fosse aplicada no prazo de quatro anos. Mas o governo e o grupo parlamentar explicaram-nos que isso não era possível na atual situação económica de grande fragilidade. Concordámos então que, em vez disso, o governo tem de apresentar um relatório anual a informar o Parlamento autónomo sobre a aplicação da lei.

Quais são as suas expectativas?

Avançar neste processo de aproveitamento da Língua Portuguesa e aproximação à Lusofonia seguindo a dinâmica do consenso, procurando incluir o maior número de pessoas e entidades neste caminho que é benéfico para todos. Quanto a prazos, não sei. Mas não é uma lei para três meses, nem para um ano. É uma lei muito ambiciosa que só faz sentido a longo prazo. E com vontade política. Acreditamos que o governo vai cumprir a sua parte tal como estamos a tentar cumprir a nossa.

Nota:

Artigo publicado originalmente no n.º 1.155 do Jornal de Letras (de 7 a 20 de janeiro de 2015). O artigo é também disponibilizado no formato PDF com a autorização do JL.

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