Reintegracionismo: em que tecla havia que bater?

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Um maior consenso ortográfico dos reintegracionistas ajudaria a apresentar com mais consistência e clareza as nossas propostas. Esse consenso não devia ser guiado pola mania da uniformidade, mas sim mostrar que guiamos por uma estrada bem alcatroada e sinalizada –que nalguns lanços dá a escolher entre faixa da direita ou a da esquerda. Por mais que a tarefa seja árdua, tenho o palpite de que o caminho se fazia melhor com um mapa que simplificasse e mostrasse claramente as alternativas, do que com um GPS que não apanha rede porque há mil sinais à sua volta.

Nesta estação de serviço rumo ao sul: que tecla do carro haverá que bater para ver a Ilha de São Simão sem perder de vista Santa Cristina de Cobres?

Por um lado, há uma diversidade de usos ortográficos que transparecem sobretudo na dualidade çom/ção e nas formas de alguns verbos. Nada faz pensar que essas divergências se venham a resolver impondo umas soluções sobre as outras, a não ser que se assuma a exclusão dos usos linguísticos de um número bem relevante de reintegracionistas e sócios da Agal. Prescindindo dessa diversidade, ia-se contra a aceitação mútua das práticas de todos os que defendem a reintegração do galego. Postos a escolher entre ção e çom, nesse caso, eu ficava-me com os dous gémeos para que as pessoas também ficassem à frente das ideias abstratas; os homens e mulheres concretos, por cima da Humanidade.

Ora, por outro lado, também é claro que o excesso de opções de escolha e a sensação de labirinto ortográfico dificultam o caminho a quem começa. Uma pessoa que aceita o desafio do reintegracionismo merece algo mais do que respostas ambíguas, evasivas ou condicionadas pola opinião de quem responde, quando pergunta se tem de escrever com til de nasalidade ou não, ou se vai usar os verbos de uma maneira ou de outra. Sugerir que escreva como bem entenda, mais do que um respeito pola sua liberdade de escolha, é um desleixo por parte de quem o seduziu para iniciar a aventura. Não acredito que as entidades académicas sejam legitimadas a impor usos, mas sim tenho claro que são obrigadas a fornecer pautas que simplifiquem o caminho aos utentes da língua. E hoje quem passa para o lado obscuro da ortografia tem que preocupar-se muito mais do desejável por como escreve.

É por isso que acharia inspirada uma proposta com soluções duais no que toca ao uso do til de nasalidade, à conjugação verbal e outras poucas outras áreas da ortografia, como a acentuação do a (cámara/câmara); que promovesse soluções convergentes com as outras variantes afro-luso-brasileiras em aspetosque parecem menos controversos (uma, alguma); e com certeza, que valorizasse o vocabulário genuinamente galego, mesmo o dialetal, como elemento a acarinhar do nosso acervo linguístico. Isto não é destruir a norma da Agal ou um padrão galego em construção – nem o valioso trabalho de adaptação ao Acordo Ortográfico já feito pola comissão linguística da Agal –, mas estender essas ferramentas para que também aí se reflitam os usos que de facto já foram adotados por muitos membros da tropa integrante.

Esse consenso não fecharia o debate ortográfico – o tempo e o uso iriam mostrando as soluções mais apropriadas –, mas sim sossegava o tom azedo que a conversa toma às vezes, ao ligar-se a questões identitárias, quando todas as partes querem levar a bandeira de maior fidelidade às raízes, ou fala-se em nome de um povo feito à medida das ideias com que nos interessa pintá-lo. A questão não deve ser debatida atribuindo-nos adjetivos uns aos outros (que se podem resumir em estrangeirados ou isolacionistas), mas procurando uma sintaxe que nos permita – como poderia dizer o Valentim Fagim – dançar uns com os outros. Afinal, são os substantivos (qualidade humana, esforço, curiosidade, respeito polo outro e humildade sem submissão) e os verbos (aquilo que fazemos ou deixamos de fazer pola vitalidade da língua) o que nos ajuda a ganhar a adesão da sociedade em que nos mostramos: não que batamos mais ou menos nas teclas CTRL + ALT + 4 do computador.

Se o objetivo de um debate ortográfico é dar mais folgos ao galego, queiramos combinar bem o respeito às várias sensibilidades com a inspiração didática necessária para balizar bem o caminho, somando em vez de subtraindo. A saída desse debate não é a vitória do ção sobre o çom ou ao contrário, mas algumas – quantas menos, melhor – pautas bem simples que permitam a qualquer pessoa começar a escrever em galego internacional, com incremento simultâneo da sua confiança, aproveitamento imediato dos conhecimentos prévios, valorização das suas origens sejam elas quais forem, e auxílio gratuito das ferramentas de tecnologia linguística necessárias para fazer a passagem.

Para muitas pessoas e coletivos as terminações em çom são um sinal de identidade a que não se deve renunciar: pois está bem que as mantenham, divulguem e até que tentem seduzir mais pessoas nesse sentido. Seria absurdo esperar que os que aderiram ao reintegracionismo pola norma Agal tivessem por força que tirar cursos de português afro-luso-brasileiro para serem passageiros deste barco.

Mas tampouco se vai pedir a uma pessoa que está a estudar português numa escola pública, que por força tenha que fazer uma terceira realfabetização (galego ILGA > ortografia do português de Portugal ou Brasil > Galego Agal, com todos os pormenores da sua codificação atual) para ganhar a confiança de que o que escreve é tão galego como português. E dá nas vistas que hoje em dia há mais pessoas a aprender uma variedade lusógrafa na Galiza através do ensino do português do que por contacto direto com o reintegracionismo – o que nem tira méritos ao reintegracionismo nem significa que haja que prescindir do seu discurso mais explícito.

No caso de quem anda a estudar português e pede alguma orientação, bastaria com sugerir: «olha, com o que aprendeste de português, já estás a escrever em galego. Ademais, podes usar o léxico da tua freguesia, que provavelmente já consta neste dicionário – e se não aparece aí, contacta-nos para que o incluamos. E se a ti te parece mais galego, podes escrever “aviom” em vez de “avião”, e “fai” em vez de “faz”: este corretor ortográfico adapta-se a essas duas opções, só tens que fazer clique duas vezes para escolher as que preferes. E ouve, isto de ser reintegrata às vezes não é tão fácil, e no mundo não estamos para sofrer: não é pecado escreveres às vezes de uma maneira e outras da outra, segundo a situação, ou mesmo usar o galego dito oficial, que também é português, quando não te apetecer ou convier expor-te tanto».

Eu, pecador, confesso que às vezes também danço.

E canso-me de tanto rodopio, sim, mas agora deixai-me ir até o fim: se confiarmos de verdade nas nossas propostas e algum dia quisermos reclamar a sério os nossos direitos linguísticos, tanto os sócios da Agal que escrevem ção quanto os que escrevem çom deveriam ser amparados com o mesmo afinco, no que toca à defesa dos seus usos da língua, pola associação que os representa e à qual dedicam em muitos casos uma parte considerável do seu tempo livre. Falo da Agal porque sou sócio, mas nesse enquadramento seria razoável esperar que todas as entidades reintegracionistas dessem passos a caminho dessa aceitação mútua.

E ainda, uma proposta ortográfica que admita a dualidade nessas áreas viria a facilitar a colaboração entre os especialistas de mais que provada competência que há cá entre nós, tanto a escrever com çom como a escrever com ção, tão dignos da nossa admiração e gratidão uns como os outros. Sem o apoio mútuo de quem mais bate e de quem bate um pouco menos em CTR + ALT + 4, dificilmente poderemos construir ferramentas em que dancem juntos o rigor científico, a eficácia tecnológica, a projeção pedagógica e a capacidade de seduzir.

Enfim, se cada um de nós quer bater apenas na tecla do CTRL, pois bom, mudamos de assunto e cada um faz como fazia, que não vale a pena avinagrar-se por questões deste tipo. Só me pareceu que quem levanta pontes e se expõe ao bombardeio merece bem que se lhe dê uma mãozinha – pois sempre foi essa a forma de coragem que mais me seduziu.

 

Máis de Joseph Ghanime