Com o livro do dragom, de Roberto Samartim, inicia-se a coleção álmafa – árvores e livros da Companha Editora, um projeto editorial que “quer contribuir para a construção comunal de espaços autónomos e não subalternos, vinculados às artes e às ideias da Galiza contemporânea”.
O primeiro que nos chama a atenção é certa dicção clássica, intuída em alguns textos entre a feitura da página – que nos leva a procurar alexandrinos e hendecassílabos, que lá estão, mas não de modo regular nem em estrofe pautada (veja-se “Quando tudo na terra seja ainda crepúsculo” ou “Eu sou todas as mulheres que te amamos”) – e o tom elevado da epopeia. Também a arquitetura do livro, na sua beleza de objeto e na sua estrutura em três cantos, contribui para essa percepção inicial. Mas logo vemos que não temos aqui o herói da epopeia, embora grande parte do livro caminhe por esse mundo em abandono e pela aceleração do tempo histórico que impôs o colapso da nossa civilização marítima e camponesa. Eis o esterno do livro: protege o seu coração, conforma a arca do peito – essa comunidade que partilha o mar e a terra (“O mar é meu”) e que os vê ruir, mas tem a certeza do caminho que resta: “Cortesia obriga, porém, a desvendarmos já agora / que no livro acharás uma única verdade sem sombra / (somos o caminho que temos pela frente / o resto é memória)”, lemos já no segundo poema. E achamos que isto se cumpre porque a memória aqui é produtiva, e aproxima-se, pensamos, tanto do Benjamin das Teses sobre a filosofia da história como do Rancière de A Noite dos Proletários.
Como se conjuga o tom elevado com as vozes baixas? Não apenas através da fragmentação. Se o poema que funciona como limiar começa com “Era eu…”, o Canto I abre com “Nós somos…”. Não encontramos verdades sem sombra, salvo aquela que implica estar em comum – a consciência de (ou do) ser social. Do percurso de mais de vinte anos de (re)escrita resulta também um artefacto coeso, sustentado por um universo simbólico no qual comparece uma geografia emocional que percorre Lisboa, Redondela e Compostela, mas que contém as linhas de fuga que lhe conferem outros lados do mar – ou as antíteses entre deserto e oásis, entre mar e ilha. No entanto, mais do que como elementos excludentes, devemos entendê-los quase sempre como contínuos. Não conseguimos encontrar uma leitura unívoca – nem sequer dos elementos simbólicos recorrentes, muitos dos quais provêm da natureza: carvalhos, pétalas, rochas, tecidos, pássaros…
Se nos detivermos no dragom – inescapável –, temos por trás a lenda da Coca, a dança das espadas com a sua distribuição de género. Mas não conseguimos escolher se prima a desconstrução desta ou o reconhecimento de que o inferno nunca são os outros. Não por acaso, no último poema do livro lemos: “eu sou o dragom”. Reconhecimento do privilégio? Contraponto àquilo que poderia ser lido como a manifestação de um amor sublime (“Eu procurava-te e chegaste”)? Seja como for, estes desdobramentos afastam o dragom do dogma da identidade – omnipresente na cultura consensual, também na do nacionalismo hegemónico – e singularizam o livro. Um livro que, por outro lado, lemos à par da nossa história literária: com os trabalhos e os dias do mar que estão em Avilés ou em Lara Dopazo; com o Ferrín de A Fin dun Canto (“A un meu fillo” ecoa, parece-nos, em “Quando tudo na terra seja ainda crepúsculo”). Também na sua tentativa de recusar o conforto da nostalgia – com o Gonzalo Hermo de Celebración ou O Cuarto das Abellas, de Antía Otero.
o livro do dragom. Roberto Samartim. Companha Editora, 2024. 96 páginas. 14 €