Partilhar

“Os outros galegos”: Barrancos

8. Barrancos

8.1. Introdução

Mudamos neste capítulo do Reino para a República e, ainda que os protagonistas continuem a ser os mesmos que nos casos anteriormente vistos, aqui vão ter os papéis trocados. Em Barrancos o idioma oficial vai ser o (galego-)português e o castelhano(-andaluz) uma língua tão, tão menorizada, que até se torna invisível aos olhos de muitos filólogos. Uma situação paradoxal para nós habitantes do Aquém-Minho, habituados a que o castelhano torne invisível outras línguas como o asturiano, o aragonês… ou, mesmo, a nossa.

Como é óbvio, este enclave linguístico não formou parte do documentário “Entre Línguas”, pois não se trata de um dos “galegos” ibéricos, mas de uma fala andaluza em situação de inferioridade e risco de extinção frente à língua do poder, a que impõe o Estado, neste caso, Portugal.

Barrancos, Praça da Liberdade.

Vanessa Vilaverde e eu visitámos Barrancos em maio de 2016. Íamos à procura do barranquenho, movidos pola curiosidade filológica de ouvir um dialeto do qual tínhamos referências vagas. Sabíamos que tinha sido estudado por Leite de Vasconcelos e pouco mais. Encontrámos que o barranquenho era esmagadoramente maioritário na oralidade dos moradores desta vila. Aparentemente, um português “peculiar” pronunciado com sotaque andaluz aos ouvidos de uns galegos… A surpresa chegou, quando na Sociedade Recreativa Artística Barranquense, tomando um café, escuitamos as conversas dos velhos. Estas transcorriam em barranquenho até que os anciãos contavam alguma piada, então mudavam de idioma e falavam num sonoro castelhano-andaluz.

Barrancos é um concelho do Baixo Alentejo, distrito de Beja, na Raia com as províncias de Badajoz e de Huelva. Constituído por uma única freguesia, é o município menos povoado do Portugal continental, tendo uma área de 168,42 km² e 1440 habitantes (Instituto Nacional de Estatística 2021), que se concentram na vila homónima. Mas em 1950 chegou a ter 3624 habitantes. O declínio demográfico, como nos restantes territórios deste trabalho, é evidente.

Até à entrada em 1986 de Portugal e Espanha na, então, Comunidade Económica Europeia, desenvolveu-se em Barrancos, como em toda a Raia, uma intensa atividade de contrabando. As principais atividades económicas, na atualidade, estão relacionadas com o setor agro-pecuário, nomeadamente a criação de porco ibérico nos montados, e o turismo rural.

Vanessa Vilaverde na Sociedade Recreativa Artística Barranquense.

Geograficamente, este concelho parece encravado como uma cunha em Espanha. O rio Ardila marca a fronteira norte com os concelhos de Valencia del Mombuey e Oliva de la Frontera, pertencentes à província de Badajoz, limitando a leste com o município de Encinasola, província de Huelva. Encinasola é a localidade mais próxima da vila de Barrancos, da qual dista apenas 9 km. Santo Aleixo da Restauração, a povoação portuguesa mais próxima, está situada a 21 km de distância1.

8.2. Ligações culturais com a Andaluzia

Dentre os vínculos culturais com a região andaluza, o mais polémico e conhecido é a sobrevivência até aos nossos dias das corridas da “Feria de Agosto” com morte do touro na arena. Este tipo de touradas foram proibidas em Portugal em 1928. Uma proibição que não foi respeitada em Barrancos. Mas, em 2002, a Assembleia da República legalizou esta tradição2. Os toureiros contratados são sempre espanhóis ou hispano-americanos. Diferentemente das típicas touradas lusas, nunca houve toureio a cavalo3.

As celebrações natalícias em Barrancos também são especiais a respeito do resto de Portugal. Em “Noche Buena” acende-se uma fogueira de dimensões monumentais e cantam-se em castelhano4villacincos” andaluzes, alguns muito conhecidos e outros mais invulgares5.

Até ao ano de 2003, o serviço militar era obrigatório em Portugal, e em Barrancos festejava-se a inspeção militar daqueles moços que ingressavam no Exército, os “Quintos”. Estes festejos tinham lugar entre outubro e novembro. Incluíam “celebrações gastronómicas e báquicas” e “muitos cantes, sempre em castelhano”, coplas que “variavam entre o sério e grave e o satírico”, muitas improvisadas6. Desde 2003, só se juntam quintos veteranos, que raras vezes saem à rua a cantar7.

Noche Buena” e os “Quintos” são tradições comuns a Barrancos e a Encinasola (Huelva). Outra festa comum é o “Día de Flores”, que tem lugar na Segunda-feira de Pascoela, uma semana depois da Segunda-feira de Páscoa. Nesta romaria é homenageada a Virgen de las Flores, padroeira de Encinasola, na Ribeira da Murtega. Até há uns anos os barranquenhos e os de Encinasola festejavam juntos na Ermita de las Flores, mas ultimamente os de Barrancos preferem concentrar-se no sítio do Cadaval, próximo desta ermida. O “Día de Flores”, para além de comer e beber, bailam-se e cantam-se fandangos e fandanguillos, também, é claro, em castelhano. Existe na entrada de Barrancos a “Rua do Quiligrito” chamada assim, segundo os velhos, porque as pessoas que ficaram em Barrancos, esperavam nela para cumprimentar os que vinham das Flores e diziam-lhes “D’aquí le grito”8.

No Carnaval são típicas nas ruas barranquenhas as estudantinas, grupos musicais que cantam quadras satíricas e às quais se oferecem moedas para “unas copas”, hoje só sobrevive a dos “Enguripitados-Associação de Jovens de Barrancos”. Esta associação para além da estudantina, formou um grupo de baile de “sevillanas9. Tradicional também é o chamado “chilladero” ou “chillar”, grupos de pessoas mascaradas, denominadas “pantarallas”, que provocam com os seus gritos, preferentemente, as moças solteiras10.

Leite de Vasconcelos, que visitou Barrancos em 193811 e 1939, refere no III volume da sua Etnografia Portuguesa que, antigamente, na noite do casamento padrinhos e amigos cantavam “malagueñas” como a que segue12:

Hermanito te casaste
Con la bendición del cura
Con la de la madre no,
Porque está en la sepultura.

Em geral, a literatura oral e tradicional em Barrancos, como o resto do folclore, é o resultado do encontro entre o castelhano de Barrancos e o português do Alentejo, aparecendo, portanto, em castelhano com mais ou menos interferências do português, em dialeto barranquenho ou num português alentejano com mais ou menos interferências do castelhano, Como é lógico, progressivamente, a penetração do português vai fazendo recuar o castelhano também neste âmbito13.

Segundo Leite de Vasconcelos, os seus moradores tinham um “… certo carácter de tradicional independência moral. Quando chega a Barrancos algum aldeão de Moura, Beja, etc., dizem os Barranquenhos: «é um Português, vem ali um Português.» Como se êles não o fôssem! Mas não deixam de dizer a quem vem de Hespanha: «vem ali um Hespanhol!»”14.

Acrescenta o mesmo autor “Sem embargo, rara será a família de Barrancos que não descenda de cepa hespanhola, ou não possua costela hespanhola. Por isso todos ou quási todos os habitantes da vila, ou cultos, ou apenas instruídos de algumas letras, ou de todo analfabetos, falam, sem diferença, a língua de Hespanha e a portuguesa.”15.

Podemos concluir este apartado com as palavras de M. Victoria Navas, que realizou a sua tese de doutoramento sobre esta vila, Barrancos é um “lugar administrativamente portugués pero de cultura mayoritariamente española16”, andaluza ocidental matizaríamos nós.

8.3. Descrição da variedade linguística

Em primeiro lugar, teríamos que definir a qual das variedades linguísticas faladas em Barrancos nos estamos a referir, ao barranquenho ou ao castelhano de Barrancos?

Segundo M. Victoria Navase Lindley Cintra, o barranquenho é o resultado do “contacto de variedades meridionales del portugués (alentejano) y del castellano (extremeño y andaluz)17. Como afirma M. Victoria Navas “El barranqueño, en otras palabras, sería el aprendizaje que hicieron los castellanos del portugués18. O próprio Leite de Vasconcelos dizia “o barranquenho, no seu estado actual, e segundo o conhecimento, por ora muito imperfeito, que possuo dêle, parece-me constituir variedade notável, e especialíssima do falar do Alentejo Baixo, devida principalmente à influência hespanhola (…) ainda que sobrepujada pela portuguesa”19.

Concordamos plenamente com Juan M. Carrasco na sua recensão crítica sobre a obra de Navas20 de que a “situación de convivencia de las tres opciones lingüísticas a la que asistimos en la actualidad retrata quizás un momento de tránsito entre el español de la localidad y el portugués oficial que acabará imponiéndose.” E ainda que o dialeto barranquenho “es, sobre todo, un modo de hablar la lengua portuguesa”, mas “con numerosos elementos de influencia española”, onde a “participación de ambas lenguas no es paritaria”. Carrasco chega a afirmar que “quizás estemos tentados a creer que el barranqueño ni nunca fue la lengua tradicional de Barrancos (que debió ser el español desde su fundación en la Reconquista), ni nunca fue de uso generalizado por parte de toda la población”. Discrepa Carrasco de Navas na origem do barranquenho que ele situa, possivelmente, no século XIX (como o demonstraria a existência de vestígios de barranqueños monolingues em castelhano até finais do século XX) e Navas, no entanto, na Idade Média21. Outros autores datam o seu nascimento e desenvolvimento no século XVIII com a incorporação definitiva de Barrancos a Portugal22.

À vista disto, o que nos interessa não é o barranquenho, mas o castelhano-andaluz de Barrancos. E se o primeiro foi amplamente descrito por Leite de Vasconcelos na sua obra póstuma23 e por M. Victoria Navas24, não assim o segundo, do qual ninguém se ocupou em profundidade. Contudo, M. Victoria Navas assinala algumas das suas características: É uma variedade do castellano, “el andaluz o el extremeño25; cheia de arcaísmos e de ruralismos “como vide, diz que, ansina”; de algumas hipercorreções “como tiengo, niervos” e de certas interferências de outras línguas como o portugués ou o (asturo-)26leonés “la mi hija27. A mesma autora, quando estuda as “coplas de Quintos”, que lembremos eram sempre em castelhano, analisa as suas características fonéticas, que são, em geral, coincidentes com as dos seus vizinhos espanhóis28:

  • Enfraquecimento das consoantes finais.
  • Aspiração ou elisão do -/s/ em posição implosiva.
  • Elisão do -/r/ em final de palavra.
  • Realização do jota espanhol [x], como fonema aspirado [h].
  • Tendência, generalizada, a elidir o -d- intervocálico em particípios e substantivos.

Mesmo assim, existem nestas coplas numerosas transferências fonéticas, morfológicas e lexicais do português29. Vejamos alguns exemplos30:

Estos quintos “deste” años
ni son feos ni bonitos
los hay gordos y “delgaos”
los hay grandes, los hay chic[u]s
Ya venimos de Setúbal
de “sermos” “inspeccionaos” (bis).
Ay, por favor, abran la puerta
que van a entrar los “soldaos” (bis).
Y aunque me veas no llores
con la “farda” militar (bis).
Ay, el que la manda poner
también la manda quitar (bis).

Aprioristicamente, podemos concluir que a fala andaluza de Barrancos, devia ser em origem muito similar à de Encinasola, a povoação com maiores ligações familiares, sociais e culturais com Barrancos. Sendo as inevitáveis interferências do português, neste caso a língua da cultura e do prestígio, o verdadeiramente determinante e diferencial à hora de descrever o dialeto andaluz de Barrancos em relação à fala dos seus vizinhos. Esta hibridação com a língua estatal será, previsivelmente e como nos outros enclaves já tratados, menor em falantes com um nível cultural mais baixo, nos de maior idade e nas mulheres, pois estas não tinham a obrigação de fazer a tropa e, em geral, estavam menos escolarizadas do que os homens.

8.4. Origem desta variedade linguística: História de Noudar e Barrancos

Interior do castelo de Noudar.
Autor: Vítor Oliveira from Torres Vedras

A posição geográfica desta região, a referida cunha inserida em Espanha, explica, do nosso ponto de vista, que, durante séculos, a maioria dos seus moradores tenham sido de ascendência e fala castelhana31. Assim, os primeiros povoadores conhecidos de Barrancos procediam de localidades próximas como Cumbres de San Bartolomé, Cumbres Mayores e Encinasola, entre outras32. Estes movimentos de população continuariam ao longo de toda a história de Noudar33 e Barrancos, sendo especialmente importantes no começo do século XIX, durante a Guerra Peninsular34. Como nos outros casos já vistos, as múltiplas relações históricas, humanas e comerciais com os seus vizinhos, com especial destaque para os matrimónios mistos e o contrabando, contribuiriam para reforçar o dialeto andaluz dos barranquenhos.

O castelo e o que resta da antiga vila de Noudar localizam-se numa atalaia abrupta entre o rio Ardila e a ribeira do Múrtega, na mesma Raia. Ficam a doze km de Barrancos. As suas origens e história, ao longo da Idade Média, são obscuras e confusas como as de tantas outras povoações raianas. Menciona M. Victoria Navas, um documento de 1493 em que aparece pola primeira vez o topónimo dos Barrancos35, como aldeia de moradores castelhanos36, dependente da fortaleza de Noudar. Outro texto de 1527, citado por Leite de Vasconcelos, corrobora o anterior, assinalando que a maioria dos seus 73 moradores eram castelhanos37. Dize Norberto Franco: “Outra documentação dos séculos XVI, XVII e XVIII, igualmente já apontada deixa bem claro que os moradores de Noudar e Barrancos eram maioritariamente castelhanos. (…) E o Folheto Municipal (p. 3 e 4) garante que ainda no século passado ¾ da população era castelhana ou daí originária”38. Por exemplo, só na segunda metade do século XVIII encontramos em Barrancos 8 capelães e 2 médicos de origem castelhana39.

Segundo Leite de Vasconcelos, desde 1729, encontramos documentação em que aparece Barrancos como vila e não apenas como simples lugar40. No entanto, Noudar foi sede de concelho até o ano de 1825, quando a capital municipal mudou para Barrancos. Iniciando-se nessa altura um lento processo de despovoamento de Noudar, que ficou completamente desabitada nos inícios do século XX41.

A história pouco pacífica desta parte da Raia tem levado a que, segundo Clements, Patrícia Amaral e Ana Luís42, entre 1167 e 1715, a posse do castelo de Noudar43 e o seu território tenha mudado oito vezes entre Portugal e (Galiza-Leão)/Castela/Espanha44, ficando definitivamente do lado português em 1715. Vamos ver estes factos, nem sempre claros, para o que, essencialmente, nos guiaremos pola crónica histórica feita por Norberto Franco45. Aqui não interessa saber exatamente quantas vezes este concelho tenha mudado de mãos (8/9?), como ver que tem sido muito disputado entre Portugal e os seus vizinhos, especialmente, durante a época medieval:

  • Em 1167, em tempos do primeiro rei português, Afonso Henriques, esta região de Noudar foi conquistada por Gonçalo Mendes da Maia, “o Lidador”. Em 1169, Fernando II da Galiza e de Leão toma posse das praças da margem esquerda do Guadiana (Mourão, Moura, Serpa… e, obviamente, Noudar), mas nesse mesmo ano foram recuperadas polo Império Almóada. Com a desintegração deste, foram reconquistadas para Portugal por Sancho II em 1232, embora em termos eclesiásticos continuaram a depender do Bispado de Badajoz até finais do século XIII.
  • Em 1250, Afonso III de Portugal ocupou o Algarve, que era reclamado polo rei Fernando III de Leão e de Castela, este responderia apoderando-se da região de Arouche-Aracena (talvez, também, do vizinho castelo de Noudar). Em 1267, Afonso III e Afonso X “o Sábio” assinam o Tratado de Badajoz, polo que Portugal renuncia à margem esquerda do Guadiana em troca do Algarve. Mas em 1281, as vilas de Mourão, Moura, Serpa voltam a ser portuguesas por um novo acordo entre estes dous reis, no entanto, Noudar ficaria castelhano-leonesa. Datado em 1283, encontramos um documento controverso em que Afonso X “o Sábio” doaria à sua filha Brites46, casada com Afonso III de Portugal, as quatro vilas de Mourão, Moura, Serpa e Noudar. Já em 1295, polo Tratado da Guarda47, Maria de Molina, a rainha castelhana regente, cede a Portugal as quatro vilas da margem esquerda do Guadiana e a região de Arouche-Aracena, conforme determinara no testamento o seu marido Sancho IV de Castela e Leão48. Posteriormente, a região de Arouche-Aracena ficaria do lado castelhano-leonês49 de acordo com o Tratado Alcanizes (1297), assinado polos reis Dinis de Portugal e Fernando IV de Castela e de Leão50.
  • Em 1308, foi criado em Noudar o primeiro couto de homiziados português com o objetivo de travar o despovoamento e de defender a fronteira. Na sequência de outra guerra com Castela (1336-1339), parece provável, que Noudar tenha sido invadida em 1339 e logo restituída a Portugal pola paz de Sevilha (1339 ou 1340). Numa nova guerra luso-castelhana (1369-1371), Noudar é tomada, mais uma vez, por Castela e só volta a soberania portuguesa em 1372, após as Pazes de Alcoutim e o posterior Tratado de Tui51, entre os reis Fernando I de Portugal e Henrique II de Castela, que restituiria a fronteira prévia à guerra.
  • Na chamada crise de 1383-1385 retorna a administração castelhana, sendo devolvida a Portugal no II Tratado de Monção assinado em 1389 entre João I de Portugal e João I de Castela. A praça volta a ser invadida em 1396 polo Marechal Diego Fernández de Córdoba e o Mestre de Santiago Lorenzo Suárez de Figueroa (provavelmente nascido em Abegondo como Lourenço Soares de Figueiroa) para Henrique III de Castela. Uma paz transitória chegaria com o Tratado de Ayllón (assinado em 1411 e ratificado em 1423)52.
  • Em 1475, Noudar novamente é ocupado, esta vez polas tropas isabelinas do Mestre da Ordem de Alcântara, Francisco de Solís durante a Guerra de Sucessão de Castela (1475-1479), em que o monarca português Afonso V apoiava a sua esposa Joana, a Excelente Senhora, frente às ambições da sua meia irmã Isabel de Castela. A guerra acabou em 1479 com a assinatura do Tratado das Alcáçovas-Toledo53. No entanto, em 1477, o alcaide da praça o segoviano Martín de Sepúlveda tinha tomado partido pola Excelente Senhora, tornando-se aliado do rei Afonso V, e, assim, Noudar ficou português, mas com Martín de Sepúlveda de alcaide. Só em 1485, um novo rei luso, João II, dá ao exilado Martín de Sepúlveda o senhorio da vila de Buarcos em troca do castelo de Noudar54. Era esta uma praça raiana demasiado importante do ponto de vista estratégico, como para ficar em mãos de um castelhano…
  • Em 1640, na Guerra da Restauração da independência portuguesa, os de Barrancos são alcunhados polos restantes povos do Alentejo de “janízaros”55, devido a que quer a fala quer a origem deles os tornava suspeitos de traição. E o próprio rei de Portugal, João IV, ordena o despovoamento e destruição de Barrancos para castigo destes “maus vassalos”56. Em 1644, Noudar seria tomada polas tropas castelhanas, tendo sido recuperada com posterioridade por Portugal. E ainda que não conheçamos exatamente esta data de recuperação, pola documentação existente sabemos que já era portuguesa em 1646.
  • Envolvido Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha, Noudar é conquistado em 1707 polo Duque de Osuna e permanece em poder das tropas espanholas até o ano 1715, em que é devolvido a Portugal polo Tratado de Utreque (artigoV)57.
  • Ainda assim, segundo Norberto Franco, “a conflitualidade quase ininterrupta” nessa região continuaria “até 1894”, quando se resolveu a questão da Contenda58. A Contenda era um território fronteiriço de aproveitamento comunal, com uma superfície de 12.289 Ha, que tinha sido fruído polos concelhos de Noudar/Barrancos, Moura, Encinasola e Arouche, permanecendo indiviso durante séculos e dando origem a inúmeros pleitos e disputas. A partição definitiva entre os dous estados, com colocação dos correspondentes marcos fronteiriços, foi acordada polo Convénio de Madrid (1893) e a Acta de Demarcação (1894), ambos consignados no Convénio de Limites assinado em Lisboa em 1926.

8.4. Análise sociolinguística

Dizia Leite de Vasconcelos, “Na povoação corre que ainda pelos fins do século XIX as profissões de médico, mestre-escola, alveitar, coveiro, as desempenhavam exclusivamente Hespanhóis, e que bem assim havia muitos que exerciam as de barbeiro, sapateiro, carpinteiro e negociante. Sòmente dos começos do século XX em diante as cousas mudaram, e melhoraram em sentido português, por natural evolução do sentimento patriótico e político, acompanhada de intervenção do Govêrno Central, e por sucessivas facilidades das comunicações. (…) Casos curiosos: inicia-se por vezes uma conversação numa língua e acaba na outra. Um filho dirige-se à mãi em hespanhol, e ao pai em português59. Um marido fala com a mulher em português, e os filhos falam entre si também em português, e hespanhol com os pais. A preponderância portuguesa a que se aludiu e o apoio das escolas primárias fazem que os novos já hoje falem menos espanhol de que os indivíduos de 40 e 50, ou mais anos de idade”60.

Casos curiosos: inicia-se por vezes uma conversação numa língua e acaba na outra. Um filho dirige-se à mãi em hespanhol, e ao pai em português59. Um marido fala com a mulher em português, e os filhos falam entre si também em português, e hespanhol com os pais.

O que nos relata Leite de Vasconcelos neste parágrafo é a perda em Barrancos, nas primeiras décadas do século XX, do monolinguismo social em castelhano. Este monolinguismo social não significa que o português não estivesse presente na vila desde tempos medievais, mas não era a língua do povo, era apenas o idioma de nobres, militares ou de alguns imigrantes vindos de outras localidades portuguesas. Assinala o autor como fatores chaves para esta progressiva hegemonia do português: A ação governativa, nomeadamente através do ensino primário, e a perda do isolamento geográfico, com estradas melhores e meios de comunicação modernos.

E se Leite de Vasconcelos visitou Barrancos em 1938 e 1939, M. Victoria Navas realizou o trabalho de campo para a sua tese de doutoramento, fundamentalmente, entre 1988 e 1990, esclarecendo, portanto, os usos linguísticos em Barrancos nos finais do século XX. Segundo esta autora, o portugués padrão é a língua da escola, da administração, da Igreja e daqueles portugueses que não tiveram as suas origens em Barrancos. O dialeto barranquenho falam-no hoje entre si os naturais de Barrancos de forma majoritária. O castelhano só se emprega em âmbitos e usos cada vez mais restringidos (família, contos, romances e músicas tradicionais…). A autora declara que “En mi experiencia en la comunidad sólo encontré una persona de 72 años, analfabeta, nacida y criada en Barrancos, de padres barranqueños, que no conseguía decir una frase completa ni en el dialecto ni en portugués, pues rápidamente se trasladaba al español”. Talvez a última monolingüe em castelhano!? Também que mesmo que o castelhano continuasse a ser língua de comunicação habitual entre avós e mães61, não existia já transmissão intergeracional dentro dessas mesmas famílias, e às filhas já era falado o barranquenho (nós diríamos “à barranquenha”)62.

O barranquenho, desde 2008, é “Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal” e, desde 2021, conta com um diploma sobre a sua proteção aprovado pola Assembleia da República63. Mas o castelhano de Barrancos, diferentemente do barranquenho, carece de qualquer reconhecimento legal por parte das administrações públicas. É maioritariamente oral e ágrafo. Não existem em Barrancos associações culturais que se ocupem, propriamente, da conservação do idioma castelhano. A escolarização em português e os meios de comunicação lusos foram e são determinantes no processo de substituição e hibridação linguística. O processo de glotofagia em Barrancos avança inelutavelmente.

(Continuará)

João Aveledo

1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Barrancos

2 Este regime de excecionalidade afeta apenas as vilas de Barrancos e Monsaraz.

3 Franco Norberto (2005). O porquê de Barrancos. Município de Barrancos. Barrancos, págs. 119-137.

4 Entenda-se que quando falemos do castelhano em Barrancos, estamos a referir-nos, realmente, ao seu codialeto andaluz.

5 Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 95-100.

6 Franco Norberto (2005), op. cit., pág. 101.

7 Navas María Victoria (2011) “El barranqueño. Un modelo de lenguas en contacto”, Editorial Complutense,Madrid, pág. 222.

8 Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 109-111.

9 Navas María Victoria (2013) “Mujeres depositarias y transmisoras de un patrimonio intrafronterizo: El ejemplo de la villa portuguesa de Barrancos” in “Mujeres en la frontera”, M. Almela, M. García Lorenzo, H. Guzmán e M. Sanfilippo (coords.). Madrid, págs. 153-170.

10 Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 111-112.

11 Durante 25 días.

12 Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 112-113.

13 Navas María Victoria (2013), op. cit., págs. 6-15.

14 Leite de Vasconcellos J. (1955) “Filologia Barranquenha. Apontamentos para o seu estudo”. Imprensa Nacional, Lisboa, pág. 10.

15 Leite de Vasconcellos J. (1955) , op. cit., pág. 7.

16 Navas María Victoria (2013), op. cit., pág. 4.

17 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 192.

18 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 180.

19 Leite de Vasconcellos J. (1955), op. cit., págs. 30-31.

20 Carrasco González Juan M. recensão crítica de “María Victoria Navas Sánchez-Élez, El barranqueño. Un modelo de lenguas en contacto, Madrid, Editorial Complutense, 2011, 319 págs.”

https://dehesa.unex.es/bitstream/10662/8425/1/1888-4067_6_269.pdf

21 Navas María Victoria (2011), op. cit., págs. 179-181.

22 Clements J. Clancy, Patrícia Amaral, Ana Luís (2007) “El barranqueño: Una lengua de contacto en Iberia.” Estudios Portugueses: Revista de Filología Portuguesa”, págs. 3-4.

https://www.academia.edu/26929658/El_barranque%C3%B1o_una_lengua_de_contacto_en_Iberia

23 Leite de Vasconcellos J. (1955) op. cit.

24 Navas María Victoria (2011), op. cit., págs. 49-191.

25 A autora está-se a referir ao castelhano-estremenho falado na província de Badajoz.

26Acrescentamos nós, que preferiríamos empregar o termo asturiano.

27 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 50.

28 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 224.

29 Navas María Victoria (2011), op. cit., págs. 236-242.

30 Navas María Victoria (2011), op. cit., págs. 247-254.

31Entenda-se procedentes de localidades das atuais províncias de Huelva (com especial destaque para Encinasola) e de Badajoz e, portanto, pertencentes à antiga Coroa de Castela

32 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 33.

33 Em castelhano Nodar.

34 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 6.

35 Navas María Victoria (2011), op. cit., pág. 41.

36 “E que isto parece mall a todolos vizinhos dos Barrancos posto que castelhanos sam”

Centro de Estudos Históricos Ultramarinos (1963): “2853. XIV, 5-2.- Inquirição que se tirou a respeito da aldeia de Barrancos que Castela dizia ser sua, mas que era pertença de Portugal, 1493, Março, 16”, en As Gavetas da Torre do Tombo. Lisboa, vol. III (gav. XIII-XIV), págs. 636-637.

37 Leite de Vasconcellos J. (1955) op. cit., págs. 6-7.

38Franco Norberto (2005), op. cit., pág. 188.

39Espadeiro Ramos José (2012) “Fronteira e relações de poder. Noudar e Barrancos no Antigo Regime”. Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais, págs. 137-138.

https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/14964/1/Fronteira%20e%20Rela%C3%A7%C3%B5es%20de%20Poder.%20Noudar%20e%20Barrancos%20no%20Antigo%20Regime.pdf

40 Leite de Vasconcellos J. (1955) op. cit., pág. 8.

41 https://pt.wikipedia.org/wiki/Noudar

42 Clements J. Clancy, Patrícia Amaral, Ana Luís (2007), op. cit., pág. 3.

43 Ou Nodar entre outras muitas variantes registadas in Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 140.

44 Acrescentamos nós Galiza-Leão.

45Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 144-186.

46Brites é forma arcaica de Beatriz.

47 https://pt.wikipedia.org/wiki/Castelo_de_Noudar

48Baquero Moreno Humberto (1998) “As relações de fronteira no século de Alcañices (1250-1350): O Tratado de Alcañices”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. 15 N.º 1: História, pág. 643.

49 “E eu El Rey Dom Diniz de suso dito por Olivença, e por São Felizes dos Galegos. que vós amim dades, e por Ougela que metedes a meu Senorio, segundo sobre dito hé, parmotivos dos Castellos, e das Villas d’Arouche, e da Aracena, e de todos seus Termos, e de todos seus Direitos, e de todas sas pertenças, e de toda a demanda, que eu hei, ou poderia aver contra vós, ou contra vossos Successores per razom destes Lugares sobreditos, e de cada hum delles, ou dos fruitos delles, que El Rey Dom Affonso vosso Avoo, e El Rey Dom Sancho vosso Padre, e vós ouvetses, e recebestes destes Lugares e dou a vós, e a vossos Successores todo o direito, e jurisdiçom, e Senorio real que eu hei, e de direito devia aaver em esses Castellos, e Villas d’Arouche e da Aracena por quealquer maneira, que o eu hi ouvesse, e tolhoo de mim, e de meus Successores, e no Senorio do Reino de Castella, e de Leom pera sempre.” (http://pt.wikisource.org/wiki/Tratado_de_Alcanises).

50Neste e noutros casos simplificamos os títulos reais, que neste caso seriam rei de Castela, de Toledo, de Leão, da Galiza, de Sevilha, de Córdova, de Múrcia, de Xaém, dos Algarves e Senhor de Molina. O de rei dos Algarves era já na altura um título unicamente honorífico, que ainda conserva o atual monarca espanhol.

51 https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_de_Alcoutim

52 https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_de_Ayll%C3%B3n

53https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_das_Alc%C3%A1%C3%A7ovas-Toledo

54 Pérez Embid (1975) “La frontera entre los reinos de Sevilla y Portugal”, Sevilla, págs. 103-108.

55Tropa de elite de origem cristã ao serviço do sultão otomano.

56Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 168-169.

57“(…) Especialmente se restituïráô á Coroa de Portugal o Castello de Noudar com o seu destricto, a Insoa do Verdoejo, eo Territorio e Colonia do Sacramento, (…)”

58 Franco Norberto (2005), op. cit., págs. 154-163.

59 Entenda-se em (portugués) barranquenho.

60 Leite de Vasconcellos J. (1955) , op. cit., págs. 7-8.

61 Reparemos em que passaram mais de trinta anos desde a pesquisa!!!

62 Navas María Victoria (2011), op. cit., págs. 49-51.

63 https://pt.wikipedia.org/wiki/Dialeto_barranquenho#cite_note-N%C3%A3o_nomeado-xepu-1-2

Novidades Através: Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram)

Para toda a gente e de ninguém

Academia Galega da Língua Portuguesa celebrou XVI Aniversário com presença brasileira e portuguesa

Sucesso no Dia da Criança Galegofalante em Ferrol

Juan Antelo: “Muitas vezes na rede em galego decalcamos o que se fai em castelhano”

Caldeirada de raia

Novidades Através: Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram)

Para toda a gente e de ninguém

Academia Galega da Língua Portuguesa celebrou XVI Aniversário com presença brasileira e portuguesa

Sucesso no Dia da Criança Galegofalante em Ferrol