Notas sobre a épica: a propósito d’Os Lusíadas e o feudalismo ibérico

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Convenhamos que a nossa não é época para a épica. O canto elevado das façanhas memoráveis de heróis arremessados contra um destino elusivo, contra um mundo indómito habitado por forças divinas em cujo jogo se veem envolvidos, não se avém com o desencantamento operado na cultura europeia desde o surgimento, lá pelo trânsito do século XV ao XVII, da Idade Moderna. A Revolução Científica, a progressiva racionalização da nossa experiência do mundo, o domínio da técnica como modo de relacionamento ontológico (v. Heidegger, A questão da técnica) etc. fôrom erodindo a possibilidade de acreditarmos seriamente que habitamos um mundo onde o maravilhoso possa irromper entre o ordinário.

Dir-se-á que poemas longos que contenham narrações ou descrições de teor mais ou menos transcendental, elevado, lendário ou “metafísico” ainda tem havido desde esses séculos até hoje. Isto é verdade, mas o género épico é outra cousa. Pensemos no ciclo homérico ou na sua sequela latina, a Eneida. Pensemos em Gilgamés, no Mahabharata e no Ramáiana, nas brigas de Beowulf contra criaturas desoladoras. Pensemos, já ainda que medievalmente, nas matérias de França e da Bretanha ou no Cantar de Mio Cid. O hálito mitológico que anima a epopeia enquanto poesia impede-nos compreende-la como apenas um outro género literário, como apenas um certo tipo de literatura. Além do truísmo de que categorias do presente devem ser aplicadas com excelente cuidado a um passado que operava com categorias distintas, o que chamamos épica remete-nos a um cantar fundacional em que mitologia, história, palavra poética e religião formam uma mesma atitude não diferenciada em relação ao passado (um passado, porém, sempre e de novo presente): a celebração do éthnos através do herói, modelo e aviso sobre as vias da vida humana; o despregar do espírito do próprio povo através dum périplo particular que serve, a um tempo, de exemplo universal para cada membro individual do coletivo; uma grande metáfora —que não quer ser entendida, porém, apenas como metáfora— colocada como monumento, reerigido em cada nova recitação, do que aquela nação pode quando favorecida pelos desígnios divinos. Quem lê a épica apenas como literatura caiu já na armadilha de quem lê as escrituras duma fé à procura de se os eventos históricos relatados são ou não verídicos: toma-a pela sua verdade ou falsidade factual, resistindo-se, naquele talante tipicamente moderno, a tomar seriamente em consideração aquilo que não possa submeter-se a prova. Se procurarmos as ruínas de Troia, seja como quem visita as relíquias santas: para nos reencontrarmos com uma verdade que nunca pugéramos em dúvida; se as não procurarmos, seja porque não precisamos comprovar o que fica para além da lógica da verificação científica.

Quiçá diga alguém que puxo a brasa à minha sardinha ao traçar estas definições e excluir candidaturas legítimas. Quiçá o faça; definir sempre supõe uma decisão parcial sobre o que achamos importante. Quiçá haja épicas modernas que também devam ser tidas em consideração. Vejamos.

Figura 1. The Judgment of Adam and Eve: “So Judged He Man”, William Blake, 1808, Wikimedia commons

O Paraíso perdido (1667) de John Milton renarra os primeiros capítulos do Génesis, em que Adão e Eva são expulsos do Paraíso por violarem a proibição divina de comer da árvore do Bem e do Mal. Funciona antes como uma alegoria, como uma recriação mitológica, antes do que como uma verdadeira épica. Move-se já/ainda no terreno do puramente mitológico, do relato cosmogónico fundacional: a origem de todas as cousas, a fonte do concreto e do abstrato. Uma das características que diferencia a épica da cosmogonia é que na épica o mundo já está criado e as forças divinas originais já estão dispostas no seu lugar: o relato é propriamente da heroicidade humana ou semi-humana, de indivíduos particulares cujas façanhas são tomadas por reais e inseridas num tempo mais próximo e concreto do que “no começo dos tempos”. Assim mesmo, são os heróis e os seus destinos os que movem a ação, e não, ao revés, é a ação um pretexto para pôr em jogo figuras alegóricas que pretendem dar explicação da origem do mundo. Aliás, antecipando o universalismo ilustrado, o de te fabula narratur vai encaminhado aqui a toda a humanidade, e não, como nos outros casos, a um grupo humano concreto, que justamente louva a sua própria concretização através do canto épico.

Que diremos doutras obras, por vezes também qualificadas de épicas, tal que As Folhas de erva (1885), de Walth Whitman, ou O Canto geral (1950), de Pablo Neruda? São casos ainda mais serôdios, num momento, aliás, em que a arte começa a escapar à lógica dos géneros canónicos. Contudo, a discordância com a épica é evidente. Em ambas as obras, os escritores americanos querem elevar a sua pátria para o seu lugar legítimo na História; querem que a História tome conta da vida efetiva da sua gente comum —quer a dos Estados Unidos da América, quer a da América Latina—, dos seus sonhos e alegrias quotidianos, das paisagens que habitam, de todos os particulares jeitos em que compõem a vida coletiva do povo. Mas do que aqui falamos não é somente uma questão de tamanho: o grandioso ou o histórico não fazem épico necessariamente. Estas obras não passam duma reunião de cantos personalíssimos em que o poeta quer cantar o tudo, concretizado no decorrer histórico do seu povo e na imediateza do seu variado quotidiano. Nisso são já/ainda românticos até o tutano e, por tanto, têm uma relação com o mito e o sagrado mediada polo desencantamento. Desde o romantismo e desde aquele século XIX que inventou a História, estamos já para sempre infelizmente condenados a uma relação com o passado que o toma, justamente, como algo passado, já não presente, já não sentido e vivido, mas sim almejado com saudade ou desdenhado com estranheza. O recriacionismo, o restauro dos modos de vida que são passados justamente pelo transcurso do desencantamento, são incapazes de reviver a experiência do mundo original que o encantamento permeia. No sumo, tomam-na como objeto de fascinação museológica ou como impostura fracassada, pois, por muito que quigermos, já não somos capazes de acreditar de verdade em Vénus, em Deus ou na Santa Companha.

Retrato de Eduardo Pondal, Wikimedia commons

Isto que dizemos vale também para a Galiza. Na literatura galega temos dous casos análogos, dous esforços prototipicamente românticos de reencantamento da realidade nacional —neste caso, como em tantos outros, com o intuito de dotar de sacralidade e necessidade mitológica a emancipação da nação: Os Eoas, de Eduardo Pondal, e Na noite estrelecida (1926), de Ramón Cabanillas. Em ambos os casos, os pretendidos vates recriam-se no que os (supostos) ancestrais do passado faziam e acreditavam na procura duma ação política presente, justamente porque o presente não permite já acreditar naquilo em que, julga-se, é preciso acreditar para suster essa ação. A fé (porque disto vai acreditar, de tomar algo como uma certeza básica sobre o funcionamento da realidade sem estar disposto a submetê-lo a prova) só pode ser tomada a sério mediante o seu deslocamento para o passado. No presente, no melhor dos casos podem ser tomadas como metáforas doutra cousa—é isso o que acostumamos fazer quando analisamos obras desta casta, e perguntamo-nos pela função legitimadora que tem a a suposta origem galega de Cristóvão Colombo na articulação dum projeto iberista para a Galiza ou o que consigna queria simbolizar o autor com o sono profundo do Rei Artur. Os povos que no s.XIX querem reconstruir, letra mediante, o ser nacional, acodem a esta instauratio magna do passado glorioso e da imago mundi que o dotava de sentido. Fazem-no, porém, já duma distância infranqueável. Sirvam de exemplo, além do mais, o Kalevipoeg(1861), poema nacional da Estónia, ou o mais conhecido Kalevala(1835), da Finlândia, que, como o labor de Homero, integram uma tradição oral popular pré-existente num cantar coeso, de jeito a legitimar e inspirar a própria pátria, mas que, a diferença do labor de Homero, não podem ver nessa tradição um relato de sabedoria ancestral, mas sim apenas folclore a preservar, junto às vestes regionais ou às danças camponesas, como símbolo e depósito duma essência nacional que deve ser homologada à dos restantes Estados-nação europeus.

Excerto de Na noite estrelecida, Os libros de Ánxel Casal

Vivemos, enfim, uma idade prosaica e profana. Quando, em 1881, Manuel Curros Henríques sacraliza a chegada da locomotora a Ourense, faz dela um milagre mariano («tan milagrosiña, con paso tan meigo,/que parece unha Nosa Señora,/unha Nosa Señora de ferro.» ) precisamente porque já não acredita na Virgem. O santoral fica como recurso para a metáfora, aliás porque se carece dum outro vocabulário para falar do sagrado que não seja o herdado da tradição, tradição em que a distinção entre o profano e o sagrado ainda era operativa. O sagrado (e tudo o que vai com ele), por dizê-lo assim, fica fora da ordem do discurso da modernidade. Quem teimar em falar do além-factual, de valores num sentido não utilitário, de acontecimentos que rompem a mecânica natural, e quem teimar em fazê-lo seriamente, expõe-se ao riso, pois demonstra que não sabe jogar o jogo da racionalidade moderna.

Por todo o dito até aqui, tem um aquele de estranho que a única obra épica original em língua galega (ou portuguesa, isso é à moda da casa) seja escrita em data tão avançada, justamente quando a modernidade já está a ganhar a partida à Weltanschauung medieval. Refiro-me a Os Lusíadas, publicado por Luís Vaz de Camões em 1572. O estranhamento vem porque esta costuma ser descrita como uma obra épica moderna, precisamente uma épica da própria modernidade, pois narra as explorações portuguesas pelos mares até chegar à Índia e a conseguinte abertura da rede de contactos interoceânicos que suporia um salto qualitativo na evolução do comércio mundial e, de resto, no curso da História até hoje. Uma épica escrita quando a imprensa, a Reforma Protestante, o nascimento da nova ciência e outros sinais da nova época levavam já décadas a fazerem parte do mundo tem, com certeza, um saibo anacrónico.

Os Lusíadas, seria injusto negá-lo,tem sim aspetos modernos. Porém, o interessante desta obra é que nela o moderno aparece ainda misturado com o medieval —o antropocentrismo com o teocentrismo, a humanitas cruzada com a christianitas, o espírito de exploração indestrinçável do espírito das cruzadas. Nela fulguram como em nenhum outro lugar as contradições culturais do Renascimento serôdio, que são, por sua parte, sinal das distintas vias históricas abertas e em disputa naquele canto do mundo que era a Europa nos limiares da modernidade.

Quem parasse alguma vez a mente a reflexionar sobre o curso histórico dos últimos seis séculos, tivo de ficar impressionado pela contradição manifesta que supõe que aqueles Estados que nos séculos XV e XVI gozavam dum posto de saída na carreira da modernidade estivessem uns três séculos depois na retaguarda do desenvolvimento económico, demográfico e cultural. Falo dos reinos ibéricos, nomeadamante as coroas de Portugal e de Castela, que apesar de usufruírem duma vantagem temporal na expansão colonial e na internacionalização e mercantilização da sua economia, chegavam ao século XX muito por trás doutras potências europeias como a Inglaterra, a França ou a Alemanha em todos os indicadores ao nosso alcance. Este “atraso inesperado”, acho, pode ser melhor compreendido se compreendermos a contradição patenteada n’Os Lusíadas (e vice-versa), que é, aliás, a contradição que caracteriza particularmente as comunidades políticas ibéricas no trânsito para a Modernidade: o facto de serem, por umas décadas, a dianteira da acumulação originária do capitalismo e de mostrarem, ao mesmo tempo, uma contextura feudal que se provou capaz de resistir esse estouro inicial e de reconduzi-lo para o seu próprio reforçamento.

É Os Lusíadas uma obra moderna? É-o na mesma medida em que Portugal ou Castela eram Estados modernos no século XVI: apenas no sentido dum auspício, duma possibilidade em briga por realizar-se, possibilidade que noutros países acabaria vigorando com o tempo, mas que nesta nossa Península mirrou como semente temporã abolida por geadas tardias. Na verdade,Os Lusíadas tem mais em comum com o Cantar de Mio Cid do que com o mecanicismo cartesiano, apesar das proximidades cronológicas. Constitui, de facto, o canto de cisne da visão do mundo medieval, três décadas antes de esta ser pronunciada defunta pelo Quixote (1605), o qual afasta a épica e os livros de cavalarias da primeira linha da literatura e e institui o género literário burguês e moderno por excelência: o romance. Fantasias rocambolescas não pagam a pena serem contadas; se algo pagar a pena ser contado, não seja em verso espalhafatoso, mas em prosa, simples e clara, melhor veículo para uma imagem sóbria e desiludida da realidade. De lá em diante, irão tomando protagonismo para a literatura europeia o indivíduo e a sua psicologia, não já os heróis de seu povo e as aventuras coletivas. Se Os Lusíadas condiz com os cantares de gesta, o Quixote prenuncia o Bildungsroman. De facto, respondendo ao dito três parágrafos antes, Os Lusíadas não é a epopeia da modernidade porque a modernidade só pode ser fundada em prosa. Eis o génio de Cervantes, que nos deixou o primeiro romance moderno, romance que é, neste caso sim, o romance da própria modernidade. Nele assistimos, através do périplo do fidalgo, à própria subjetividade moderna a se desemaranhar do encantamento medieval do mundo. Desfeita a ilusão, Dom Quixote descobre não ser herói lendário lançado à façanha, mas apenas Alonso Quijano, homem como os outros; homem que, vítima do excesso de fábulas, caíra na loucura de tomar moinhos por gigantes.

L’Ingénieux Hidalgo Don Quichotte de La Manche, Gustave Doré, Wikimedia commons

II

Mas queríamos era falar d’Os Lusíadas, da sua particular feitura. Retornemos. Quereria assinalar alguns pontos do poema que julgo serem de importância para decantarmos a balança. Confesso que não haverei cá de ser tão metódico quanto desejaria —esse desideratum iria fazer-me exceder vastamente a extensão decorosa para um escrito que concebi mais como uma sucessão de iluminações do que como um tratado de literatura—; limitar-me-ei, logo, a contornar esses coruscos que me alampavam segundo lia.

O início do poema parece apontar já para além do Renascimento, mesmo para uma modernidade plenamente madura que tardará até o século XVIII a comparecer. No Canto I, na terceira estrofe, Camões verbaliza o que se tornará a polémica dominante da cultura europeia no século XVII, a Querelle des Anciens et des Modernes (Querela dos antigos e os modernos), e verbaliza-a a decantar-se pelo lados dos modernos. De quem são maiores os méritos artísticos, dos autores clássicos ou dos atuais? É possível para as letras e artes de hoje superar as obras canónicas do passado? Não há arrogância em pretender dizer, pintar, esculpir etc. algo que não fosse já dito, pintado ou esculpido de jeito modelicamente melhor? Os intelectuais e artistas do Renascimento, embora de facto já a irem além do exemplo dos antigos sem darem por isso, ainda se achavam imitadores e continuadores dum mesmo ideal que era preciso recuperar. É só a partir do Barroco que se abre a veda a falar abertamente de ir além de Grécia e Roma, superando-as, ou, ao menos, de fazer algo diferente que possa comprazer as modas da época (NB: digo “modas” à mão-tente). Lemos:

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexando e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano;
A quem Neptuno e Marte obecederam.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

(I, 3)

As explorações modernas superam as façanhas dos antigos; valem mais as experiências da navegação pelos altos mares do que toda a erudição dos anciãos livros. Esta é uma ideia reiterada, que age como tema central de toda a epopeia. Olhamos o passado como exemplo a superar; conhecemo-lo, mas não ciframos o avanço cultural na sua ressurreição filológica e arqueológica, antes nos deixamos guiar pela experiência real do domínio destes mares (Neptuno) e destas campanhas de conquista (Marte). E ainda assim não podemos deixar de nos proclamar herdeiros da mesma Grécia e Roma que dizemos querer exceder em fama. A despeito do aparente, esta modernidade da épica lusitana está prenhe de reação à modernidade, pois não excretou ainda do seu interior a ideia medieval de em que consiste essa superação dos antigos. Persiste o mesmo desapego medieval pela Grécia e Roma pagãs, mas esse desapego aprendeu a falar a linguagem da época e, quiçá, pode ser, o próprio Camões nem seja ciente da contradição em que incorre quando departe sobre musas e divindades olímpicas, mas assenta, na realidade, no conceito de Roma da translatio imperii. A questão de fundo não é quem pode igualar a Grécia e a Roma em mármores e hexámetros, mas quem se pode erigir em sucessor legitimo da Roma de Constantino e de São Pedro.

O cavaleiro da mão no peito, El Greco, c. 1580, Wikimedia commons

Por outra banda, é de notar o papel que joga aqui e, de resto, em todo o Renascimento ibérico, o ideal cavaleiresco. O cavaleiro ideal do Renascimento conjuga a pena e a espada, a letra e a guerra, num equilíbrio virtuoso em que erudição e furor caminham pelo mesmo trilho. Aliás, uma das notas distintivas do cavaleiro renascentista na Ibéria é que nele sempre foi mais forte o segundo termo deste par. A pena foi exercitada, mas um tem a sensação de que sempre como adobio dum carácter bélico mais persistente, como um ornato seguidor das modas da época que logo esmorece. Vê-se nos méritos louvados ao longo d’Os Lusíadas: a conquista, o domínio, a expansão, o pequeno grupo de cristãos errantes que emerge vitorioso contra o infiel… Entre a pena e a espada, a escolha é sempre pela espada.

Articulado com o anterior, e para mais sinais, as figuras da tradição clássica (divindades, heróis, tropos…) são recursos retóricos e narrativos duma historia com sabor ainda intensamente senhorial: a da cruzada dos cristãos contra os infiéis. A maior glória do “peito lusitano”, em comparação com os antigos, mas também em comparação com o resto duns modernos entregados à disputa religiosa intestina, é a de expandir as fronteiras da fé por meio das armas, especialmente na humilhação do “mouro”. O espírito cruzado em que fé e armas em aliança pesam mais do que a aliança de qualquer uma delas com as boas letras próprias do humanismo ou com o refinamento criativo próprio dos renascimento das artes visuais é uma marca inconfundível das culturas dirigidas por esses dous projetos políticos ibéricos de expansão católica: a portuguesa e a castelhana. Em geral contrastamos nisto a “particularidade ibérica” a respeito da centralidade europeia: a de ser esta península uma marca militar e religiosa durante toda a Idade Media, o qual veio reforçar uma nobreza belicosa cujo êthos e cujo projeto político repousou sobre a expansão militar sancionada pelo papado. As explorações no além-mar, começando pelo norte da África, apenas podiam ser vividas e pregoadas como uma continuação natural dessa “tarefa sagrada”, conquanto as classes a dirigirem essa expansão fossem as classes nobiliária feudalizantes, medradas tanto na conquista da Península quanto na aplicação da mesma lógica aos impérios ultramarinos.

Eis o grande factor diferenciador do êxito e fisionomia dos Impérios coloniais ibéricos e daqueles de Estados em que a burguesia, a única classe propriamente moderna, tivo um papel dirigente em maior medida: a Inglaterra, os Países Baixos e, em menor medida, a França. Eis portanto também o paradoxo d’Os Lusíadas: a sua modernidade é autófaga, pois repousa na traição àquilo essencialmente moderno: a inauguração da acumulação originária do capitalismo, e não a exportação das relações feudo-vassaláticas e do reino de Deus às costas infiéis.

E no entanto, o discurso laudatório da “nação lusitana” firma-se sobre a reinstituição de Roma. Vénus, mãe de Eneias e, portanto, semente da genealogia épica de Roma, erige-se em protetora da povo português, o qual constitui um espelhamento, ainda que “com pouca corrupção”, da própria latinidade:

Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingintana
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.

(I, 33)
Frontispício da Instauratio magna de Francis Bacon, 1620, Wikimedia commons

Há então uma relação ambivalente com o ideal de Roma, com o antigo Império: a um tempo exemplo e modelo, a um tempo antiguidade a superar. E, contudo, esta superação é nomeada como uma translação, como uma substituição na mesma cadeira. Os descobrimentos portugueses parecem indicar que «Via estar todo o Céu determinado/De fazer de Lisboa nova Roma.» (VI, 7). Nesse sentido, seria conveniente fazer balanço do papel que Roma tem tido como símbolo e título das aspirações de grandeza imperial (direta ou indiretamente) dos Estados europeus sucessivos, começando pelo movimento carolíngio e seguindo pelo Sacro Império, pelo Kayser-i Rum otomano e pelos distintos títulos formados sobre variações da palavra “César” (Kaiser, tzar e demais). Não obstante, há aqui uma pequena diferença que faz com que esta ressuscitação de Roma não seja mais uma iteração medieval da tentativa de recuperar o perdido. Aqui há uma vontade explícita de superar, de ir plus ultra, se bem quantitativamente, e não qualitativamente. Visa-se legitimar um domínio maior do mundo e da natureza através da exploração. Este afã de descobrir e dominar um império maior ao maior império já visto chega a fazer afronta ao divino —certamente não ao Deus cristão mesmo, que celebra os novos alcances do seu domínio, mas sim aos transuntos retóricos que fazem mais permissível a hýbris a olhos da Inquisição e da fé do tempo: as divindades clássicas. Baco torna-se antagonista dos exploradores portugueses porque estes ameaçam com assombrarem o seu domínio sobre o Oriente. Esta retórica da superação orgulhosa e efetiva da hierarquia divina condiz com a exposição, umas décadas mais tarde na Instauratio magna de Francis Bacon, do espírito de desvelamento de todos os mistérios e de submetimento da Natureza à vontade de poder do Estados europeus. Esta arrogância iconoclasta é expressada por Baco a Neptuno, cujos mares as naves fendem:

Vedes, o vosso mar cortando vão
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.

(VI, 30).

Não obstante, entre Camões e Bacon medeia a mesma distância que a existente entre o vate português e o prosista castelhano: umas poucas décadas decisivas. O elogio do conhecimento pela experiência, por oposição aos enganos retóricos da letrosidade antiga, não segue ainda a lógica das ciências empíricas guiadas pelo método experimental, senão a anterior sede renascentista de se reencontrar diretamente com o maravilhoso da obra divina. É assim que o verbaliza um pouco antes, em relação aos incríveis fenómenos meteorológicos e às paisagens nunca imaginadas de que os navegantes vão sendo testemunha direta:

Se os antigos Filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influïção de sinos e de estrelas!
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.

(V, 23)

Este espírito de captar e representar a natureza tal como ela é, esta admiração à procura de uma nova olhada limpa sobre o belo milagre do real, são o que animam os pintores do Renascimento desde um começo a recuperar a elegância dos antigos. Os Lusíadas querem superar os antigos, mas querem superá-los nos seus mesmos termos —não em elegância, sim em audácia, sim em poderio— ampliando as explorações e as extensões do Império muito para além do que as levaram Alexandre ou Trajano.

Doutra parte, e continuando com a leitura, vemos no episódio interpolado dos “Doze de Inglaterra” (VII, 42-69) tomar a palestra um romance de cavalarias, género humilhado e enterrado às poucas décadas —dizia— por Miguel de Cervantes. A fábula levanta as ações duns cavaleiros portugueses na sua defesa da honra dumas damas inglesas, seguindo o conceito medieval da cavalaria: os cavaleiros portugueses, logo, os primeiros e os melhores de todos quantos houvo ou há.

Detalhe do fresco da biblioteca da Catedral de Siena, pintada por Pinturicchio c. 1507 e que representa o Papa Pio II (1458-1464), promotor da unidade europeia para a retoma de Constantinopla; Wikimedia commons.

Aparece ao pouco, no início do canto VII, um alegado contra as guerras intestinas entre os reinos cristãos que parece apoiar na noção tão frequentemente renascentista da res publica christiana, segundo a qual os distintos Estados unidos pela fé cristã deviam fazer a paz entre si e a guerra contra os infiéis (os muçulmanos, principalmente, e em especial os otomanos), pois este rei ou aquele grande-duque, no fundo, fariam parte duma mesma comunidade de interesses, duma mesma comunidade política cuja fragmentação seria mais que nada circunstancial. Contudo, a ideia camoniana desta união política internacional é ainda medieval, porquanto a imagina e defende sob o primado da Sé de São Pedro: «no amigo/Curral de Quem governa o Céu rotundo.» (VII, 2)., diz, em alusão ao Papado. Lança de facto uma invetiva a continuação contras alemães pela sua grande belicosidade mal dirigida, não contra o perigo otomano, «mas por sair do jugo soberano» (VI, 30) da Igreja. Continua nas estrofes a seguir a fazer mesmo um chamado insistente às partes da Europa sumidas nas Guerras de Religião para se unirem num frente comum contra «o superbíssimo otomano.» (ibidem) e retomarem Jerusalém e o santo sepulcro (VII, 9). Continuando no esquema de afinidades, achamo-nos aqui mais perto das Cruzadas do que da Paz de Westfália.

No décimo canto, a partir da estrofe 76, é descrita a visão pelos navegantes de um portentoso modelo do Universo, o qual segue ao detalhe o modelo cosmológico aristotélico-ptolemaico. Resulta compreensível se tivermos em conta que na data de publicação da obra de Camões a revolução copernicana era ainda um primórdio arriscado. Contudo, não há visos do questionamento do imagem do mundo escolástica —as explorações ampliam quantitativa, não qualitativamente, o conhecimento e domínio dum mundo que se concebe ainda essencialmente igual, com a ressalva de agora ter um continente novo para leste. Aqui Camões demonstra estar mais perto de Tomé de Aquino do que de Galileu ou Descartes no que à conceção da razão e da ciência diz respeito. Chega de facto mesmo a suster o mistério último, a incognoscibilidade impenetrável do divino por parte do ser humano: «mas o que é Deus, ninguém o entende/Que a tanto o engenho humano não se estende» (X, 80). Maravilhoso, milagroso e secreto são consignas duma mundividência renascentista, que, sim, começa a tirar centralidade ao magister dixit em benefício da experiência direta da realidade, mas que mantém a mesma conceção da realidade como uma obra divina em que o extraordinário pode coar-se por qualquer esquina em qualquer momento, se um estiver disposto a procurar os sinais ocultos. Para uma melhor comparação das epistemes renascentista e medieval, recomendo a leitura do já clássico As palavras e as cousas, de Michel Foucault.

Na alocução final que o vate faz, endereçada ao rei Sebastião (X, 145-156) é exposta de jeito exemplar a ideologia monárquica e legitimista dos reis portugueses como representantes de Deus ad maiorem gloriam sui. Assim, toda a odisseia dos “cavaleiros” portugueses e do herói, Vasco da Gama, é justificada pela exaltação do “reino sublimado” do trono de Lisboa e, por ele mediante como primeiro pendão da res publica christiana, do reinado celestial de Deus e da fé católica. É louvado o “bom vassalo” (custa não ouvir cá um eco da exclamação do vigésimo verso do Cantar de Mio Cid, «Dios, que buen vassalo, si oviesse buen Señor!»), vassalo que é bom porque não procura mais riqueza ou glória que bem servir senhor e igreja, e são dirigidas ao monarca estas palavras:

[…] vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

(VI, 146)

E ainda estas outras:

Os cavaleiros tende em muita estima,
Pois com seu sangue intrépido e fervente
Estendem não sòmente a Lei de cima,
Mas inda o vosso império preminente.

(X, 151)

O serviço do poeta com as suas palavras é, logo pois, elevar os feitos dos portugueses como primeiros cavaleiros da cristandade e colocar na alta memória os largos feitos, as obras valerosas, de jeito a se manterem como exemplo sempiterno do que Portugal puido e poderá.

III

Que conclusão tirarmos disto tudo? Quiçá a sempre insatifatória certeza, mas sempre empolgante repto, de que não é possível concluir a pergunta que nos trouxo ate aqui. É Os Lusíadas uma épica? É uma épica moderna? É uma épica medieval? É e não é todas essas cousas ao mesmo tempo, e o que ela seja reside exatamente em compreender a tensão dinâmica entre todas essas possibilidades. Toda resposta à pergunta sobre a interpretação da obra de arte pode ser seguida duma nova matização que abra novas vias para o pensamento. Assim e tudo, embora a não possamos resolver, começar a compreender as contradições que palpitam na épica camoniana e já o começo da sua compreensão e da nossa própria. Pois em definitiva, e como já sentenciara Adorno na sua Teoria estética,«Os insolúveis antagonismos da realidade aparecem de novo nas obras de arte como problemas imanentes da sua forma.» As tensões que dificultam adscrever com claridade e distinção esta obra a um género ou uma época não são senão a reaparição no terreno da arte das mesmas tensões históricas que impedem fechar sem candor ou desistência a questão sobre os inícios da Modernidade e, de jeito mais específico, sobre o abanar das sociedades ibéricas no engonço da nossa época.

[Este artigo foi publicado originariamente no blogue do autor]

Máis de Daniel Barral