Na mitologia da nossa época não faz sentido a procura da verdade; apenas é aceite a existência de pontos de vista. Teimamos em multiplicar a confusão. No entanto, deveria ser proibido pronunciar parvoíces contraditórias como declinar verdade em plural, verdades, para lhe negar a singularidade, esse fulgor. O pessoal ofusca-se com a ideia de que tudo vale e instala-se na ficção de que a verdade é uma noção rígida, autoritária. Dessa maneira tira valor às referências que se mantêm independentemente de vaivéns (2+2 sempre somam 4), hipoteca o futuro, desalenta a transformação (que implica reconhecer o falso para o emendar) e privatiza a história (que será, quer a dos vencedores, quer a dos vencidos), renunciando ao relato fiel da opressão. A ideia de múltiplas verdades coexistentes evita o conflito de decidir e, portanto, mata a política e a criatividade. Perpetua a dor. Para além da inconsistência lógica: quem afirmar que todas as verdades são relativas, deverá concluir que essa, pelo menos essa, é absoluta.
Por gentileza da magnífica equipa da Através editora, a quem agradeço a sua dedicação e carinho, hoje apresentamos Um elefante no armário, um romance sobre a figura de Ana Brouwer, que escreveu a sua tese de doutoramento sobre a Verdade, com maiúsculas, ainda que, exausta, abandonasse logo toda atividade intelectual. Decidida a proletarizar a filosofia, abriu uma loja de trabalhos manuais, onde confecionava peças artesanais, sobretudo diários. Às vezes na capa escrevia essa frase que é igual em todas as línguas (um pronome, um verbo, outro pronome) e significa entrega; eventualmente substituía o verbo por um coração. Tal frase é emitida no planeta a cada dia com graus de veracidade relativos e variáveis, mas ela, a escrever isso na capa dum caderninho, julga que prostitui o seu valor porque está a usá-la como reclamo: o caderno vende-se melhor com a frase na capa; quem a escreve não sente nada por quem compra o caderno. Quando Ana Brouwer era estudante teve um caso com um dos seus professores, Simon Hertzberger, quem, quinze anos depois, reaparece na sua vida. As duas vezes que Simon se instala na vida de Ana, as duas, abandona-a. Não há histórias sem feridas. Isto, infelizmente, é verdade, verificável empiricamente, contrastada.
A palavra Schuld em holandês significa culpa e dívida. Ana acha que quem se vê dominado pela culpa, como Simon, atua como se devesse restituir um velho empréstimo. Acaba de nascer o elefante. Isso obriga Ana a regressar para a atividade filosófica, que não pôde abandonar nunca. Porque
os factos insistem em estar lá, à nossa vista, independentemente de opiniões dos relativistas. Constituem a história. Ou a biografia.
O que agora mesmo estou a contar desenvolve-se nas partes quarta a sexta do romance. Talvez seja raro começar pelo final. Ou talvez não, visto que a verdade exige, como Ana. Exige ir para o final e exclamar “Eureka. Cá está, encontrei-a”. Para nos apercebermos de que temos um elefante no armário, primeiro temos que o desvalijar; tirar as roupas da estação anterior, arrumar tudo. Só nesse momento é que vemos as orelhas imensas do elefante a se agitar no ar. Os armários ventilam-se mal e frequentemente animais inesperados coam-se lá dentro: aranhas, carunchos, polilhas, por que não elefantes? Porém, se o romance apenas contasse o caso amoroso da Ana, não deixaria de ser uma história sentimental, como tantas outras, com o seu vago elogio da vítima. Alguém que tivesse conhecido a vontade e a coragem de Ana Brouwer, o seu interesse em dar profundidade à existência, procederia como eu tentei fazer: envolvendo a cerna filosófica, o verdadeiro texto, em vários invólucros.
Na primeira camada, abrimos a caixa dum narrador cínico; um voyeur que espreita Ana. Trata-se de Maurício Almeida, um famoso escritor que não quer escrever mais. Às vezes sinto como ele a tentação de abandonar a literatura e dedicar-me a outras artes, porque já ninguém acha tempo para ler uma história cumprida. Maurício desenvolve uma teoria sobre a morte do romance, que teria sucumbido frente às inúmeras aventuras e prazeres que nos oferecem as redes sociais: o seu barulho, a exposição despudorada da intimidade. É possível que o público leitor se desespere com ele, com a sua perspetiva machista da realidade. Só um olhar atento verá que está a exagerar para melhor se ocultar; para não ser visto de tudo. O desespero terá a ver com algo especialmente turvo: ele observa a intimidade da protagonista sem o seu consentimento, convicto de que o voyeurismo é uma arte. Venera o que vê. Sem culpas. Elefantes, por estes pagos, só aparecem nos documentários televisivos, separados de nós pelo ecrã; selvagens, mas distantes.
O voyeur com as suas nano-câmaras permite que assistamos fielmente ao que se passa na vida da Ana, na sua cama. Visto que a verdade exige tomar corpo, tomamos o corpo da Ana como pretexto; um corpo assediado por ejaculadores precoces e outras formas de infortúnio sexual. A partir daí, na segunda camada envolvente, as suas amizades narram como a vêem, segundo a própria mochila de crenças, num puzzle de verdades parciais e múltiplas. Natália, a amiga professora, julga que a Ana quer vingar-se planificando um assassinato e por um momento o romance promete tornar-se policial, mas
isso, claro, é mentira. Ingrid, a amiga psiquiatra, obriga-a a confessar. Apesar de que tenciona curar a sua dor, Ingrid pressiona Ana para participar numa denúncia coletiva contra um suposto agressor. Dizer que Ana não dá a resposta esperada seria inexato. Ela sabe que está indefensa porque o privado e o público tecem redes no corpo e porque apenas somos o que temos padecido. Por alguma razão o corpúsculo que anda à volta de Ana em Lisboa, o que deixou na Holanda, o ex-marido amável, a filha, todas as personagens que ela toca colaboram na tarefa inquietante de dar o seu testemunho sobre ela. Deve ficar despida, analisada, anatomizada para dar com a verdade, embora seja a única que ainda acredite num tal conceito.
Na terceira envoltura Ana expressa-se através da sua obra filosófica Instruções para redigir pós-escritos e duma coleção de materiais diversos que inclui os apontamentos de cada personagem, a versão do que aconteceu segundo Ana e segundo Simon, uma teoria sobre como assassinar elefantes, e até um poemário obsceno que Simon subiu ao seu blogue para todo o pessoal saber o que fazia com Ana e presumir das suas habilidades de sedutor. Assim surge um romance de falsa autoria coletiva publicado em homenagem a tantas filósofas bem formadas nas universidades que, nestes tempos de precariedade, acabam afastadas da sua dedicação. A filosofia é um pensamento que transforma a vida; um conjunto de conceitos e teorias, mas também, não esqueçamos, uma atitude. Se a filosofia não discorre como atividade académica reconhecível, com o seu catálogo de publicações periódicas e as turmas abafadas, acabava ocultando-se nalgum outro sítio, nalguma dimensão mais humilde, invisível. Camufla-se porque as questões fundamentais não podem ser abandonadas.
De todos os textos que tenho publicado, este é o mais lírico porque renunciei à escrita barroca doutras entregas e deixei as personagens desprotegidas a expor a sua vulnerabilidade. Mas também, noutro sentido, é o mais complexo. Poderia anunciar agora que será o último que eu escreva, assimilando a prevenção de Maurício, se não fosse que o acaso veio jogar comigo. Quando já estava finalizado, apanhei algumas das reflexões da Ana, demasiado poéticas para serem verdadeira filosofia, demasiado toscas para serem verdadeira poesia, no poemário, O dia em que comprei mentiras por catálogo. O amigo Antón Lopo decidiu publicar 8 desses poemas, numa escolha pessoal. É para mim um grande prazer apresentar Um elefante no armário ao mesmo tempo que vêem a luz os poemas da Ana Brouwer, nessa seleta que se intitula Não tenho culpa de viver. E ainda há mais. Uma das editoras da Através, a minha cara Sabela Fernández, ofereceu-me uma crítica tão sincera quanto potente: por que matar o elefante como faria um Borbón
aborrecido? Não seria melhor tentar libertá-lo? Para explicar-me, escrevi uma sequela sobre a arte de matar os nossos elefantes que, ainda inédita, indica que este não é o último. Não é bem assim, não verdadeiramente, mas quase. As palavras carinhosas e imerecidas que Armando Requeixo acaba de dedicar-me, embora deva eu entender que vêm ditadas pela amizade e, portanto, sejam excessivas, aninharam já na minha cabeça e no meu coração e podem fazer-me modular essa decisão; bem sei: a verdade só pode ser conhecida ao final.
Mais uma confissão: hoje, ao me erguer, vi no meu próprio armário um elefante que trazia, embrulhada na tromba, algumas roupas que tinha eu perdido de vista, como se estivesse a morar lá, nesse particular isolamento, nos últimos meses. Poderia entregá-lo nalgum zoo, como preferiria a Sabela, mas penso assassiná-lo. Com as minhas próprias mãos.
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Texto lido pela autora na apresentação do livro no CULTURGAL.
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Título: Um elefante no armário
Autora: Teresa Moure
Data de impressão: novembro 2017, 1ª edição
Edita: Através Editora
Descrição: 328 páginas, 14 x 21 cm
Encadernação: brochado
Coleção: Através das Letras, 29
Diagramação e capa: Miguel Durán
ISBN: 978-84-16545-14-8
Depósito legal: C 1824-2017
Preço Clube: 14,40 €
Preço Livrarias: 18 €