Enquanto houver força…

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Enquanto há força no braço que vinga

que venham ventos virar-nos as quilhas,

seremos muitos, seremos alguém.

Cantai rapazes, dançai raparigas

e vós altivas cantai também”.

Zeca Afonso, 1978.

 

 

A primeira imagem que me vem à cabeça do Zeca Afonso é uma pintura pendurada num dos andares da Casa da Juventude de Ourense, na metade dos oitenta. A Casa da Juventude está hoje num lamentável estado vegetativo pola péssima gestão a que a submeteu o Partido Popular depois da morte, em 2011, do saudoso Benito Losada, que a dirigira durante muitos e frutíferos anos em que chegou a converter-se em referente na Espanha e mesmo em Portugal. Lembro -um exemplo entre muitos- as Jornadas de Banda Desenhada de Ourense, onde pola primeira vez se encontraram jovens autores das duas bandas da raia e onde se criaram as primeiras relações galego-portuguesas neste campo artístico.

Aquela imagem a branco, preto e cinzentos do Zeca com a sua viola, com os seus enormes óculos, os seus cabelos crechos e a sua camisa de quadros ficou na minha retina para sempre. Por cima do desenho estavam pintadas as míticas palavras “…o povo é quem mais ordena”.

O Zeca passou por Ourense nos anos setenta. Cantou um par de vezes na nossa cidade e mesmo há quem defenda que foi aqui e não em Santiago de Compostela onde pola primeira vez cantou ao vivo o “Grândola, vila morena”. A fita de cassette das “Cantigas do Maio”, com uma mão a se agitar na capa, era um símbolo imprescindível na casa de qualquer antifranquista galego/a da época. Foi, acho, o meu primeiro contacto com as músicas daquele cantor “de intervenção” português chamado José Afonso.

Lembro também o primeiro CD que comprei dele. Era o “Enquanto há força”, de 1978, com aquela curiosa capa do homenzinho a voar num estranho artefacto, metade pássaro, metade aeroplano dos irmãos Wright, obra do José Santa-Bárbara. Desde a primeira vez que a vi até hoje, sempre me pergunto aonde é que aquela pessoa vai com o seu aviãozinho. Foi em Braga, nos começos dos noventa. Naquela altura não existia isso que chamamos “autoestradas” para ir de Ourense a Braga. Aquela estrada terrível, estreita, feita só de eternas curvas, ligava a Galiza com Portugal de muita má vontade. A viagem levava longas, longas horas. Não existia a internet e conceitos como “lusofonia” ou “galeguia” estavam ainda para nascer. O “reintegracionismo galego” era questão de fé e de pioneiros/as.

Não lembro bem quando foi a primeira vez que cantei o Zeca em público. Provavelmente foi na mítica “Associação Cultural Auriense”, talvez na metade da década de noventa. A iniciativa foi do meu amigo Bernardo Marques, músico de ouvido perfeito e de voz brasileira. Nos locais daquela humilde associação cultural nasceu um grupo amador (amador do Zeca) que logo se completaria com a imprescindível participação do Heitor Real, com a sua viola e a sua irredutível vitalidade.

O nome, Terra Morena, demorou alguns anos. Surgiu daquela cantiga chamada “Mulher da erva”, que diz: “Velha da terra morena, pensa que e já lua cheia…”, um tema que, como tantos do Zeca, sempre me emociona, porque essa velhinha é galega. É a mulher enlutada, viúva de vivos, emigrantes que antes cantara a genial Rosalia: “Este vai-se, aquele vai-se, e todos, todos, se vão; Galiza, sem homens quedas que te possam trabalhar. Tens, em câmbio, órfãos e órfãs e campos de solidão, e mães que não têm filhos e filhos que não têm pais”.
Desde aquela “já choveu!”, como dizemos nestas terras. Mas de então até hoje, cada ano, infalivelmente, por volta do 25 de Abril, o grupo amador “Terra Morena” se reúne para fazer uma humilde homenagem àquele professor de Aveiro, cantor de intervenção, fadista, poeta, preso político, artista e músico incomparável…

os “Terra morena” (2016)

Com o passo dos anos já levamos o Zeca a diferentes locais de Ourense, Lugo, Corunha… E, cada ano, infalivelmente em abril, temos atuação reservada na “Arca da Noe”, a mítica taverna limiã da Noemi Nogueiras, que, junto com a Irene Veiga, com o seu incansável trabalho de dinamização cultural e colaboração com todo tipo de projetos e associações, tornaram realidade o sonho de um reencontro galego-português nestas terras enfermas de estrangeirice e abandono.
Temos levado as músicas do Zeca mesmo ao sul, desfrutando do privilégio único de o poder cantar com as nossas galegas vozes em Amarante ou em Montalegre.

O último concerto foi na casa de um dos maiores poetas galegos contemporâneos: Uxío Novoneyra. Nas sacras montanhas do Courel, nas margens orientais da Galiza, ele escreveu uma obra prima da poesia lusófona, “Os Eidos”. Como acontece com outro grande, o Miguel Torga, este livro do Uxío pode ser lido em qualquer parte do mundo, mas só cobra o seu pleno sentido quando recitado na terra para a que foi composto. “Courel dos tesos cumes que ollan de lonxe! Eiquí síntese ben o pouco que é un home…”

Aquele dia, na aldeia de Parada do Courel, na mesminha Parada do Courel, entre tesos cumes e soutos centenários, nós, os “Terra Morena” cantamos o Zeca na varanda do casa do Uxío. Nem o senhor Novoneyra nem o doutor José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos estão já nestas terras. Mas eu acho que aquele dia cantaram alguma connosco.

O Zeca tem algo especial para muitas e muitos galegos. Só que como bons celtas não sabemos ou não podemos dizer o que é. Por isso cantamos as suas músicas, que continuam e continuarão vivas nos nossos corações…

Enquanto neles houver força…

Máis de Francisco Manuel Paradelo Rodrigues
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