A relação com a alteridade encarnada no tratamento dos seres animais e como esta constrói a sua e a nossa subjetividade são algúns dos temas que trata Rebeca Baceiredo neste estudo que é “Animais de estimação e bestas de companhia“. Teresa Crisanta Pilhado, codiretora de Através, conversa com a autora para debulhar as questons principais que analisa esta obra.
Animais de estimação e bestas de companhia é um ensaio sobre ética animal. Qual é a base do pensamento antiespecista?
Que a espécie humana não ostenta legitimamente nenhuma superioridade relativamente a outras formas de vida já que essa conceção está fundamentada em falácias de petição de princípio, em apelações a traços ou essências que, a priori, se concebem como superiores ou especiais. Portanto, trata-se de ultrapassar o paradigma do humanismo, mas não perdendo determinados valores, que podem ser interessantes se são ampliáveis a outras formas de vida e não se reduzem a um determinado sector dos animais humanos. Também não se trata de passar do humanismo a um pós-humanismo que continua sem assumir uma horizontalidade ontológica, dos seres, mas que simplesmente anseia a produtividade das máquinas.
A capacidade de sentir —a senciência— é um dos argumentos antiespecistas por excelência que justifica o tratamento igualitário entre animais humanos e não humanos. Podes explicar-nos em que se fundamenta?
Realmente já estava em Aristóteles o reconhecimento da capacidade de sentir em qualquer modo de vida animal: era a alma sensitiva o que outorgava tal capacidade de sentir. O que se passa é que se primava a capacidade racional, o logos. Mas com a pós-modernidade, com o seu imperativo do sentir frente ao pensar, o foco situa-se no plano do sentimento, relegado durante séculos. É importante o sentir e eles também sentem, é claro. Porém, é relevante não só isso, mas as variações nas propostas éticas, que bem podem centrar-se no desenvolvimento ontoético do próprio sujeito, como ter em conta também os efeitos das ações desse sujeito nos demais.
Precisamente, nos inícios de Modernidade, Locke não considera que se deva permitir exercer crueldade sobre outras espécies porque isso provoca que o sujeito humano vire um sádico e procura-se, como já aconteceu na Antiguidade, uma certa excelência desse sujeito humano. No entanto, no desenvolvimento do utilitarismo ético, passa a ser relevante assegurar o maior bem-estar para o máximo número de membros da sociedade, o que se passa é que há muitos seres, alguns deles humanos, que não fazem parte dessa sociedade, do contrato social.
“Locke não considera que se deva permitir exercer crueldade sobre outras espécies porque isso provoca que o sujeito humano vire um sádico”
Por isso a questão não é apenas a capacidade de sentir, de uma ótica meramente ética, senão que também se trabalha no âmbito jurídico: é preciso que esses seres façam parte da sociedade no âmbito político, quer dizer, que sejam sujeitos de direito. Como em princípio as espécies não humanas não podem comunicar as suas perspetivas políticas, trata-se de permitir-lhes que façam parte do âmbito de proteção jurídica.
Isto não pode ser impedido por uma questão de capacidades intelectivas, da mesma maneira que não se tem em conta para humanos que não desenvolvem, pelo motivo que for, determinados estándares cognitivos, intelectuais ou racionais. Ainda assim, com certeza existe um certo capacitismo latejando aí, pois o grau de consciência dum sujeito agravado por outro pode ser um paliativo para a pena que recai sobre o agressor. Vimo-lo com a diferença legal entre abuso e agressão: se uma pessoa está inconsciente por uso de drogas, ou se lhe pressupõe uma certa inconsciência por diversidade funcional, não pode dar-se a agressão e sempre é abuso, pois não oferece resistência, quer dizer, não sofre, segundo esses parâmetros jurídicos, tanto como quem é consciente até ao ponto de poder resistir-se.
Pressupõe-se que a consciência da dor implica sofrimento, dor continuada ou mais intensa. Mas, essa perceção da consciência está ligada a certos padrões cognitivos capacitistas. Será que um determinado tipo de memória, que se supõe que te permite antecipar a duração da dor, te faz mais consciente dela? Ou essas coisas das dores, dos traumas e da possibilidade de antecipar perigos é algo que tenha a ver exclusivamente com o raciocínio, que é uma forma determinada do pensamento?
A ética animal é tratada também do ponto de vista dos estudos feministas por considerar que a igualdade que o feminismo procura deve incluir qualquer ser numa situação desigualitária. Que pensas deste jeito de focar o antiespecismo?
Penso que pode estar bem demandar em bloco por parte de toda a subalternidade o direito à existência —que também não tem que coincidir com a mera sobrevivência—, e de algum jeito em diferentes momentos já se fez assim. Tratava-se de atualizar os enunciados ilustrados que não abarcavam todxs, mas apenas de éticas utilitaristas, mas também de ontologias horizontais que insistem no valor de qualquer forma ou modo de vida e no seu direito a viver a sua diferença.
Mas está bem, penso eu, que se faça mantendo e promovendo a pluralidade, a multiplicidade —das vozes, das situações, das demandas—. Está claro que as outras espécies não podem fazer demandas sociais no nosso tipo de sociedade e portanto se houvesse que fazê-lo por elas, nesse caso… Mas, voltando ao núcleo da questão, as diferenças deveriam deixar-se e conceitualizar desde a oposição ao princípio de identidade e começar outra relação com elas. Esse é o problema epistemológico e ontológico e, portanto, social e político ainda muito presente na atualidade: não somos capazes de entender uma multiplicidade fluida, diferenças positivas. Ainda não somos capazes de deixar de pretender impor-nos, lutar, ganhar. E vemos como este tipo de discurso ontopolítico volta a estar cada vez mais presente…
Estar na posse duma alma, as capacidades intelectuais ou as relações de afeto que se dão entre os seres humanos foram alguns dos argumentos dados para justificar as relações de poder, o maltrato a animais não humanos e, em definitivo, o especismo. É válido algum destes argumentos?
Para manter relações de poder a espécie humana procura razões peregrinas ou de ‘senso comum’, coisa perigosa. A Terra, para alguns sensos comuns, parecia plana e imóvel —para outros já não—. Aliás, torna-se muito simples remitir-se ao ser, obviando as diversas possibilidades do ‘dever ser’ que tem, sim, a nossa espécie por isso de nascermos neonatos, e suster esses discursos na biologia, num darwinismo tosco.
A questão da alma é um conceito substancial duma unidade transcendente que, especialmente, o cristianismo em Ocidente, repartiu ao seu gosto entre os seres. Essa unidade transcendente do ego só era concedida aos homens que possuíam o logos, a razão, a mente, a psyché, portanto. Depois se estendeu a outros varões e, finalmente, às mulheres. Mas não a outras espécies, claro. Porque carecem, dizem, de logos, de racionalidade e linguagem. Porém, essa alma, como substância, também não existia nos humanos para diferentes posições filosóficas da Antiguidade ou do Helenismo, como os atomistas ou epicúreos, nem para os empiristas modernos…
Quanto à inteligência, continua-se no âmbito do logos, da capacidade racional, que se assimila a ela e, consequentemente, continua-se no capacitismo. A definição mais padrão de inteligência é uma sorte de faculdade dianoética que permite ‘saber escolher’. E se nos remitirmos, sem questionar, a tal padrão, as demais espécies também sabem escolher, sabem sobreviver. Mas é que a inteligência é múltipla, tem diferentes formas e eu, pessoalmente, ligo-a com a potência de Spinoza, quer dizer, com a capacidade que tem o modo —do ser— para afetar e ser afetado. E esse modo de ser, que é um modo no ser, faz parte dos atributos desse ser, que são, a saber, matéria e nous e com certeza alguns mais que não conhecemos os humanos porque não os reconhecemos… A inteligência, portanto, não é o cogito, não é a razão, a racionalidade linguística é mais sofisticada do que isso e também não tem a ver com a importância de uma vida.
Quanto aos afetos, são de sobra conhecidas as relações entre diferentes espécies, e não por causa de instintos baixos, mecânicos (como Hobbes, por outra parte, atribuía às associações humanas, ao pacto social humano). A questão é que ontologicamente os seres não se desenvolvem linearmente da potência ao ato, como dizia Aristóteles, senão que há arranjos mais rizomáticos, há aberturas ontológicas também no resto das espécies, nem só em nós —que, por outro lado, não as praticamos nem desenvolvemos—. Falava Deleuze dos casamentos contra natura…
Partindo da base de que a consciência é um algoritmo ainda não conhecido, pensas que num futuro onde se criar inteligência artificial com consciência ela será tratada de um jeito similar aos animais não humanos?
A Declaração Transhumanista de 1998 pedia que essa consciência artificial do futuro fosse tratada como os animais humanos —dos Primeiros Mundos, sobreentenda-se—. Parece-me, sem ser tecnofoba, um modo de niilismo, de auto-ódio, uma permanência na negação da vida e na idealização da máquina, tão produtiva ela… é um bom modelo para o neoliberalismo, por isso falava antes de um pós-humanismo nada emancipador, frente ao outro que sim o pode ser. Deleuze falava no maquínico frente ao mecânico, de arranjos ontológicos fora das linearidades, mas isso tem pouco a ver com o que se está atualizando ou capturando por parte do sistema.
Como imaginas o estado de coisas em relação com a ética animal num futuro em que já não estaremos?
Gosto de falar de como imagino o futuro nas conversas privadas, assim que acho que devo conter-me um bocado… Sou de tendência otimista e tenho certas crenças, quero tê-las: espero que o futuro não seja a consequência mais baixa deste presente e que saibamos e saibam escolher as possibilidades que na realidade existem mas não estamos vendo, demasiado cegadxs pelas paixões pouco nobres e as subjetivações reativas…