Czarnyprotest – O “negro” protesto das mulheres polacas

Partilhar

Antes de escrever as primeiras palavras, quero explicar que este texto é uma opinião pessoal. Não pretende ser reportagem nem estudo sócio-científico nem quer representar interesses de nenhum grupo organizado de pessoas. É uma opinião na maré das vozes e de pensamentos.

__

Entre vários nomes e adjetivos que poderia empregar para me autodefinir hoje escolho apenas dous:

Sou polaca e sou mulher (não necessariamente nesta ordem) e vou falar de ambas as cousas: da Polónia e de ser mulher.

protestos
Protestos ontem em Cracóvia (foto Marta Masłowska)

Que está a acontecer no meu país?

A Polónia é este país no centro-leste europeu que as pessoas na Península ibérica associam com o papa João Paulo II, com o movimento sindical Solidariedade de Lech Wałęsa que pôs fim à ditadura comunista, ou com experiências muito trágicas ao longo da 2ª Guerra Mundial.

A Polónia é um país membro da União Europeia a partir do ano 2004 e nesta última década está a gerar bastante interesse no oeste do continente.

Nas últimas eleições os polacos escolheram ser governados polo partido PiS, Prawo i Sprawiedliwość (Lei e Justiça), um partido conservador democrata-cristão. Tendo em conta a recente história da Polónia, nomeadamente o importante papel na oposição da Igreja Católica na defesa dos direitos do povo e na transição nos anos 90, tal decisão não parece estranha.

Até agora a decisão mais criticada internacionalmente do atual governo polaco foi o rejeitamento total ao acolhimento dos refugiados da guerra na Síria.

"Wolność wyboru zamiast terroru" : "Liberdade de escolher em lugar do terror" (em polaco rima)
“Wolność wyboru zamiast terroru” : “Liberdade de escolher em lugar do terror” (em polaco rima) (foto Marta Masłowska)

Nos últimos dias saiu à luz, no entanto, outro problema.

Em meados do ano 2016 a iniciativa cidadã pró-vida “Stop Aborcji” juntou assinaturas e apresentou no parlamento polaco o projeto duma reforma da atual lei de aborto. Segundo este novo projeto, a lei deveria ser mais estrita e abranger os casos em que até agora o aborto é justificado pola lei.

Neste momento o aborto na Polónia é permitido nos casos de graves complicações de saúde ou risco de morte da mãe ou da criança ou nos casos de violação.

A nova lei introduziria castigos e consequências legais, incluída a prisão, para quem provocar e participar no aborto: sobretudo os médicos e as mulheres que optarem por se submeter a esta traumática experiência. A exceção seriam os casos do aborto natural, involuntário. Mesmo assim a mulher que perdesse a criança poderia ter que chegar a provar ante os órgãos executivos que o aborto foi natural e que não foi um ato de livre vontade.

Pessoalmente li várias vezes o projeto da lei (disponível na Internet em polaco) e achei-o muito ambíguo. Mesmo vindo duma família de tradições católicas e sendo capaz de perceber onde nasce a ideia de querer proteger incondicionalmente todas as vidas, sei que a problemática das ambiguidades legais é muito séria. As leis que ora falam da prisão ora do perdão do castigo podem ser interpretadas sempre contra as vítimas. Vítimas que não só são crianças ainda não nascidas, mas também mulheres em cujas mãos e barrigas está a responsabilidade e a decisão sobre o futuro de ambas.

protestos2
(foto Marta Masłowska)

Várias mulheres (e homens também) polacas parece que chegaram à mesma conclusão, porque convocaram uma série de protestos e manifestações cidadãs contra esta reforma da lei, cujo percurso e amplitude podem ver-se na Internet com os seguintes motes / hashtags:

#czarnyprotest #czarnyponiedziałek #blackprotest (que podem ser acompanhados das palavras “polska” ou “poland”) ou o meu favorito que faz um jogo de palavras com o termo polaco “kraj” – “país”, que se pronuncia como a palavra inglesa “cry”: #nowomennokraj.

Seguindo o exemplo das mulheres islandesas que em 1975 se manifestaram abandonando por um dia a realização das tarefas domésticas e laborais e que conseguiram desta forma parar o país, mais de 40 anos depois, a 3 de outubro de 2016, várias mulheres polacas, em vez de se dirigirem aos seus empregos, saíram para a rua vestidas de preto para se manifestarem contra este projeto e a favor dos seus direitos. Neste caso dum direito muito concreto: a decidirem em liberdade o destino delas e das suas crianças e de não serem castigadas pola lei no caso de tomarem uma decisão considerada oficialmente como “errada”.

Os protestos desenvolveram-se na totalidade da Polónia e em várias cidades da Europa. Como costuma acontecer nestes casos, estão também a receber apoios internacionais.

Muitas pessoas, sobretudo mulheres, mas também homens em sinal de solidariedade, estão a colocar nas redes sociais fotografias de tipo “selfie” vestindo roupa preta e com os “hashtags” acima mencionados.

my-body-my-voice
My body my voice (foto Marta Masłowska)

Que é o que mais me entristece neste caso?

Ao tratar-se do meu país, e ao receber perguntas de vários amigos e amigas na Galiza, é-me difícil ficar calada ou não posicionar-me.

Poderia falar aqui mal dos governos, das políticas, dos e das nossas governantes; poderia escrever e fazer-vos ler outro inútil e repetitivo artigo a falar das esquerdas e das direitas, dos conservadores e dos “progres”, dos feminismos e dos machismos, mas… minhas senhoras e senhores, reparem que neste caso a iniciativa e a culpa (ainda) não é deles. Eles ainda não decidiram e vão ter que debater o assunto porque é o que lhes pede a cidadania, cumprindo com as regras de jogo da democracia e da constituição, simplesmente juntando um número suficiente de assinaturas. Reparem que estamos a falar aqui duma iniciativa cidadã!

Sublinho este detalhe porque para mim é importante. Este exemplo dos acontecimentos no meu país faz-me pensar. Pensar que de quem devemos ter medo não é do governo, não é deste Grande Irmão orwelliano, por mais conservador ou ditatorial que pareça ou seja. É das pessoas com que convivemos, as vizinhas e os vizinhos que querem… não, não só querem decidir quem vai ser o “alcalde”, querem poder decidir sobre o que devemos fazer nas nossas vidas privadas.

Conheço e percebo as razões das pessoas que nunca realizariam um aborto. O mais provável é que eu mesma não o viesse a fazer (e se Deus existe, que me guarde e que nunca tenha que tomar essa decisão!). No entanto, o facto de eu não querer isto, que poder e que direito me dá a impor o meu estilo de vida e as minhas decisões privadas sobre as outras pessoas? Como poderia eu decidir por todas elas? Por todas as mulheres do meu país? Por todas as mulheres do mundo? Quanta responsabilidade haveria em eu ser todo o mundo!

As vezes é surpreendente descobrir que os limites da nossa liberdade estão tão perto. Este amigo, este vizinho tão simpático, esta companheira da escola que não quer que eu decida, que tu decidas, que ela decida…