Há alguns anos, dei uma mão numa mudança que fez a minha tia. O trabalho era grande e contratou uma empresa. Os três trabalhadores que vieram eram brasileiros e, logo, começámos a falar em português, após os esclarecimentos prévios que costumam preceder estas conversas lusófonas repentinas. Ao esclarecer eu a minha procedência galega, chamou-me a atenção a resposta dum deles: “ai, já sei. Lá falam mais à portuguesa do que à espanhola”. As conversas, já fora da questão lingüística, continuaram a manhã toda. Havia pouco que eu estudara no meu curso universitário a matéria de língua portuguesa por um ano letivo e queria mostrar os meus progressos na fonética e prosódia lusitana (o meu professor era de Coimbra). Porém, com a passagem das horas, pouco a pouco, fui abandonando essa pronúncia lusitana e acabei por falar quase totalmente à galega, fora algum traço pontual.
Acho que esta breve historia pessoal é ilustrativa a respeito duma questão fulcral em todo o debate existente à volta do relacionamento entre as diferentes variantes da língua comum, o conceito de comunidade linguística.
Francisco Fernández Rei, por sinal do ILG, na sua valiosa Dialectoloxía da lingua galega fala da relação entre as variantes linguísticas galega e lusitana e diz “desde (sic) o punto de vista estrictamente lingüístico, ás dúas marxes do río Miño fálase o mesmo idioma, pois os dialectos miñotos e transmontanos son unha continuación dos falares galegos […], pero no plano da lingua común, e desde (sic) unha perspectiva sociolingüística, hai no actual occidente peninsular duas linguas modernas.
Como filólogo, estou ciente de a sociolinguística e o conceito de comunidade lingüística terem um papel importante no que diz respeito à definição de língua, mas estes são conceitos socialmente subjetiváveis.
Como filólogo, estou ciente de a sociolinguística e o conceito de comunidade lingüística terem um papel importante no que diz respeito à definição de língua, mas estes são conceitos socialmente subjetiváveis. Quer dizer, a perda da nasal intervocálica latina -N- no sistema galego-português (a passagem do LUNAM latino para o lua galego-português) é um facto linguístico histórico, objetivo no surgimento do romanço do oeste ibérico frente a questões envolvidas com a sociolinguística, como a norma ou, nomeadamente, a comunidade linguística. A primeira tem a ver, definitivamente, com as instâncias de poder (político, académico) e é absolutamente dependente desses poderes (aí temos o caso do moldavo, variante do romeno que na época soviética chegou mesmo a ser escrita com alfabeto cirílico com o intuito de a tornar mais “russa” e, consequentemente, afastá-la das variantes da Roménia). O segundo, o conceito de comunidade linguística, é bem mais democrático, pois, acho, é a própria sociedade a que pode contribuir mais diretamente para a mudança.
É esperável que uma pessoa galega sinta a comunidade lusófona como alheia à sua, à comunidade linguística galega. Mas, onde é que se reflete essa comunidade linguística galega? Nos dous canais de televissão em galego frente às dúzias deles em castelhano? Nos quiosques do país? Nos usos da Internet? Fora a sinalética institucional, a comunidade linguística em que o galego médio está inserido é, indubitavelmente, a espanhola, pois os referentes dessa comunidade linguística galega são fracos demais frente à assovalhadora presença de sinais externos da comunidade linguística espanhola. No entanto, a afirmação de Fernández Rei poderá ser, no mínimo, precisada o dia que na Galiza circulem livros portugueses, angolanos, brasileiros… Ou quando, ao digitarmos Google, escrevamos depois .pt. A receção das televisões portuguesas e lusófonas na grade galega também pode ajudar a mudar este conceito. São horas de trabalharmos em todos os níveis, individuais e coletivos, neste amplo leque de ámbitos sociais.
É esperável que uma pessoa galega sinta a comunidade lusófona como alheia à sua, à comunidade linguística galega. Mas, onde é que se reflete essa comunidade linguística galega?
Na história pessoal trazida à tona, eu senti que a maneira de falar à lusitana ia naturalizar a comunicação ao identificar-me, “fazer-me” parte, do ponto de vista fonético e prosódico, da comunidade lusófona, por ter a ideia de as variantes lusitana e brasileira estarem muito mais próximas nesse ámbito. E suponho que isto foi assim polo facto de partilharem a ortografia, essa grande fronteira mental que é fundamental rompermos, transgredirmos para efetivar a nossa presença na comunidade linguística a que pertencemos, pois, certamente, de qualquer outro ponto de vista, as diferenças lexicais, fonéticas ou mesmo morfosintáticas entre as variantes da nossa língua não são qualitativamente maiores às de outros sistemas linguísticos espalhados polo mundo adiante. Se calhar, a outra barreira mental é o nome da língua.
Embora, pessoalmente, não julgue a questão nominalista como essencial, é também, como a ortografia, um sinal visível da língua e, aliás, para o comum dos mortais que não anda envolvido nestes debates, é fundamental, pois estabelece duma maneira simples a “realidade” da questão (“se chamarmos de X uma língua, a tal língua não é, não pode ser Y”).
Embora, pessoalmente, não julgue a questão nominalista como essencial, é também, como a ortografia, um sinal visível da língua e, aliás, para o comum dos mortais que não anda envolvido nestes debates, é fundamental, pois estabelece duma maneira simples a “realidade” da questão (“se chamarmos de X uma língua, a tal língua não é, não pode ser Y”). Gosto do nome de galego-português, mas há quem encontre oneroso este termo, por ter um ressaibo muito filologizante do estilo “asturo-leonês” ou “franco-provençal”. A solução a este sarilho ou, no mínimo, um bom conselho pode voltar a vir do além-mar, mais outra vez. Eis o comentário, fácil de adaptar à nossa realidade, que abre o muito interessante Viva a língua brasileira!, livro do jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues: “Este livro é uma declaração de amor à língua portuguesa brasileira. Sim, eu disse “língua portuguesa brasileira”. Portuguesa porque foi inventada lá, brasileira porque faz mais de cinco séculos que a falamos aqui”.