Carvalho Calero e a performance do Dia das Letras Galegas

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carvalho-calero-soft-queerCarvalho Calero é uma figura fundamental para entendermos o modelo vencedor do que se entende por cultura galega resistente no século XX, que não é outro senão aquele que aposta na institucionalização de uma alta literatura em galego. Em todas as áreas desse empreendimento (o esforço por estabelecer um registo culto para o idioma, a alta escrita literária, a consolidação da filologia galega na universidade, a historiografia literária nacional galega), Carvalho Calero participou, posicionando-se como especialista. Isso foi-lhe relativamente fácil em um contexto em que quase tudo ficava ainda por fazer. Mas também porque, como homem burguês e hétero-patriarcal, Carvalho Calero dava a medida perfeita para ao modelo de institucionalização cultural que ele e os intelectuais de sua geração consolidaram, em benefício do país e de si mesmos. Blanco Amor, por exemplo, não teria sido válido; nem Maria Silgar, dona de Carvalho e também escritora, para quem não houve mais papel na história do que o de uma ajudante invisível.

Carvalho Calero não é um pária da instituição cultural galega que este ano lhe presta homenagem, senão um dos seus arquitetos. Os gestos de silenciamento ou menoscabo que se lhe fazem ciclicamente a partir das instâncias da Cultura de Autonomia Galega, assim como o paroxismo de encômios com o qual respondem aqueles que afirmam reivindicar seu legado desde as margens, semelham mais uma espécie de performance feita para impedir uma crítica radical ao elitismo, classismo e sexismo inerentes à cultura institucional galega e aos seus debates constitutivos, incluindo o debate sobre a normativa linguística. Que a cultura popular feita desde os movimentos sociais do país entre nesse campo de atuação evidencia o pouco que às vezes se move fora dele.

Entendida deste jeito, como performance, a celebração do Dia das Letras Galegas aparece mais nidiamente como o dispositivo para fabricar consenso que também é. E o consenso na Galiza -e, num sentido Gramsciano, em todo lado- é todo aquilo que se pode enfiar polo buraco da agulha do Estado.

Entendida deste jeito, como performance, a celebração do Dia das Letras Galegas aparece mais nidiamente como o dispositivo para fabricar consenso que também é. E o consenso na Galiza -e, num sentido Gramsciano, em todo lado- é todo aquilo que se pode enfiar polo buraco da agulha do Estado. A compreensível vocação de institucionalização dalguns sectores do reintegracionismo fai difícil uma reflexão sobre que significa, de uma perspetiva crítica, que se lhe tenha dedicado finalmente o Dia das Letras a Ricardo Carvalho Calero neste ano 2020. Mais visto que há probabilidade de que tenhamos dous anos para cavilar nestas questões, velaí vai um feixe de perguntas para estender o debate: que significa para o reintegracionismo que uma administração galega cum projeto linguicida em fase mui avançada lhe esteja a fazer gestos de cumplicidade? E que significa que esse reintegracionismo (entendido como uma ideologia catch-all) tenha respondido a esta chamada com total prontidão, pondo ao serviço da administração toda a sua capacidade ativista e mesmo a potência simbólica da sua figura mais instrumental? Poderia-se pensar neste ponto que a pessoa e legado de Carvalho Calero som em realidade de transvasamento fácil, pois nom ponhem em risco a feitura duma institucionalidade cultural deferente co poder? Que transferências de favores, capitais e visibilidades se estão a efetuar, sobre tudo e visivelmente entre homens, na indústria anual de laudatórios que produz a celebração do Dia das Letras e que, no caso da celebração de Carvalho Calero, alcança níveis panegíricos? Qual é o possível efeito destes protocolos no avançamento dum entendimento (auto-)crítico da história cultural galega, projeto que entre nós foi encetado claramente desde o feminismo? E por que o ativismo sociocultural galego, aberto desde há anos a um entendimento interseccional da luita, nom mobilizou uma resposta contra-hegemónica a este respeito? A escrita carvalhocaleriana confronta-nos com um problema evidente de gênero. É mui difícil identificar um texto do autor que não esteja marcado por uma constante obsessão pelo ideal feminino patriarcal (às vezes odiado) e a onipresença dos valores da masculinidade hegemônica entendidos como regra única. É o papel do ativismo sociocultural e político do país involucrar à sociedade civil e às crianças na celebração destes textos apenas por estarem escritos em português?

Que significa para o reintegracionismo que uma administração galega cum projeto linguicida em fase mui avançada lhe esteja a fazer gestos de cumplicidade? E que significa que esse reintegracionismo (entendido como uma ideologia catch-all) tenha respondido a esta chamada com total prontidão, pondo ao serviço da administração toda a sua capacidade ativista e mesmo a potência simbólica da sua figura mais instrumental?

Os protocolos da Celebração do Dia das Letras Galegas forçam a ratificar a validade através do tempo de quem é o homenageado –fazer o oposto seria romper a baralha. Eu, desde a emigração, também me pergunto sobre a validade do legado dos homenageados (e da própria celebração) através do espaço. No Centro de Estudos Galegos em Gales, estabelecido na Universidade de Bangor, pensamos e ensinamos a cultura galega o ano todo, mas achamos realmente difícil aderir-nos aos protocolos e tempos exigidos pelo Dia das Letras (a lógica das unidades didáticas; o ensino de textos dos que não existem traduções; a celebração um tanto automática de figuras escolhidas a partir de lógicas que perdem muito de seu significado fora da Galiza). Este ano, desde o seu confinamento, a nossa aluna de galego Lily Cartledge leu em um vídeo o poema “Adios ríos” de Rosalia de Castro ao alunado do Colégio Quinhãos de Leão em Vigo. Leu-no em inglês (na extraordinária tradução de Erin Moure) e no original em galego. Ogalhá que a primavera da língua prenda nessas crianças, pois nenhuma delas (polo que me dizem as suas professoras) fala galego. Velaí o reto e o propósito último do nosso Dia das Letras. Assim, com certeza, o deveu entender também Dom Ricardo o professor.

[Retalhos deste texto foram publicados no artigo de Daniel Salgado “Ricardo Carvalho Calero, intelectual do século” publicado o 17 de maio 2020 em ElDiario.es Galicia ]

Máis de Helena Miguélez-Carballeira
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