Carta aberta a José Luís Rodríguez

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Caro Zé Luís:

nos-trilhos-da-linguaLi com fruição o teu livro-entrevista, Nos trilhos da língua (Compostela, Atra­vés, 2019). Gostei imen­so rememorando tempos idos e alguns muito presentes. Gostei e na releitura de algumas passagens, muito mais ainda. É por isso que me permito comentar notícias, que dás nele, sem maior ânimo do que singelamente comentar, só comentar.

Começo pelas referidas à tua tese. Perguntam-che: A tua tese consis­tiu, pois, na edição da obra de Joám Airas de Santiago: por quê finalmente Joám Ai­ras e não outro? etc.

Respondes: Na verdade, a escolha do tema proposto por Rodrigues Lapa foi devida também a ser umha espécie de ponto de encontro entre a fi­lologia e a his­tória literária, pois eu na altura leccionava gramática histórica (do espanhol) e lite­ratura portuguesa, e nom sabia ao certo o rumo que se­guiria a minha carreira académica. […] Ora, quando eu comecei com a tese […] a Galiza era um ermo neste campo, de facto só o trabalho de Méndez Ferrín, de 1966, sobre Pero Meo­go se podia considerar universitário. A pró­pria biblioteca da Faculdade, por exem­plo, carecia de livros específicos, de maneira que, em breve, a minha biblioteca pessoal era bem melhor. (pp. 55-56)

Tenho diante a edição da tese (El Cancionero de Joán Airas de Santia­go, Universidad de Compostela, Verba, anexo 12, 1980, 407 pp.) que defen­deste em 14 de junho de 1976, em castelhano. A inércia universitária impe­diu usares a lín­gua da Galiza, apesar de já em 1970 ser permitido o apren­dizado das “lenguas nacionales” (sic) em âmbitos do en­sino, em virtude da Ley 14/1970, de 4 de agosto, General de Educación y Financiamiento de la Reforma Educativa, do mi­nistro (de Franco) Villar Palasí1, que na realidade, com maior ou menor acerto e não muitas mudanças, foi mimetizada nas su­cessivas Leyes de Educación da de­mocracia plena: 1 de UCD, 3 do PSOE, 1 PP, 1 PSOE, 1 PP, 1 PSOE … por ago­ra, 8 em 40 anos. uma cada cinco. A do Villar era Ley General; as seguintes, de­mocráticas, não chegam a Ley Coronel.

Lembrarás aque­las sessões de sába­dos em que me tomaste como assessor hispanófono, por aquilo de ser valhisoletano, para perfilares a tra­dução castelha­na das cantigas do Joán Airas. Vistos hoje e mesmo então, esses labores e lavra­gens sobejavam: é impensável que os integrantes do tribunal, sábios sem dúvida, precisassem de tradução nenhuma para julgar o teu trabalho.

Lembrarás aque­las sessões de sába­dos em que me tomaste como assessor hispanófono, por aquilo de ser valhisoletano, para perfilares a tra­dução castelha­na das cantigas do Joán Airas.

Contudo, sim é pensável … Sei de tese, defendi­da em castelhano, sobre te­mas galegos, no mês de julho de 2.000 em Universidade da CAG. Neste caso, segundo parece, a opção foi por prudência para evitar objeções de algum tribuní­cio.

Anedóticas, mas algo tristes, são as tuas apreciações sobre o catedrá­tico de Galego, por carambola, Ramón Lorenzo Vázquez (p. 68). Meu sogro (dep) tam­bém tinha por nome Ramón Lorenzo, mas Focinhos e com ele sempre me levei bem. Não é o caso, todo o caso, do catedrático. Lembro dele duas anedotas, se­paradas por bastantes anos, que em parte corroboram a tua opinião.

A primeira, nos meus tempos de estudante, aconteceu na aula de Lin­guística Geral que ele ministrava. Eu redigira em castelhano um soneto, ou parecido, que mostrava a uma companheira. Ramón Lorenzo ob­servou-o e pediu-me que lho mostrasse. Seja como for, aconselhou-me que o seguinte o elaborasse em gale­go. Já vês que segui o seu conselho, por­que me pareceu muito razoável.

A segunda foi bastantes anos depois, definidos uns e outros quanto à Ortho­graphia do Galego. Eu já era PN de Secundária, na Crunha, mas quis completar os estudos de Galego-Portugués (acho que ainda era essa a titu­lação) na USC, única existente na CAG. Enquanto Ramón Lorenzo me viu na aula, deveu de sen­tir um impulso estranho, porque sei que, acabada a sessão, baixou veloz à Secre­taria para comprovar se eu estava legalmente matriculado. A anedota tem uma segunda parte. Casualmente coincidimos no elevador, penso que em ocasião pr­óxima, e falamos. Ele me reprovava que não escrevesse em galego. Eu já cola­borara em El Ideal Gallego, na secção “Lapela”, de crítica mais ou menos literária, e em A Nosa Terra. Se­guiu a conversa, breve, e num momento perguntei-lhe, já que me propunha ser fiel a Rosalia: A que Rosalia devo seguir, à que escreve de­lor, a que es­creve dolor ou a que utiliza dor? Logicamente optou por esta. Repus que eu estava de acordo e que por isso escrevia em reintegrado.

Houve algum outro episódio universitário que evidencia a existência de al­gum (só?) contubérnio contra o lusismo e os lusistas e comple­menta os episódios prévios e contrários à implementação (diz-se assim?) da Cátedra de Português ao teu nome e méritos (pp. 123-135 e mais). Aquele intento de conseguir o título de licenciado em Galego-Português deu-me ocasião de conhecer os textos cientí­ficos citados pela Prof.ª Rosário Álvarez para as suas aulas. Citava o meu “Co­mer o caldo ou come-lo caldo“, publicado em O Ensino, (vol. 2, maio-agosto 1981, pp. 39-43), mas curiosamente omitia-o no seu “O artigo en galego. Morfolo­xía” (USC, Servicio de Publicaciones, Verba, 1983, pp. 169-182). Curioso e mes­mo di­vertido é o facto de ela ad­mitir a terceira forma do artigo (-no, -na, -nos, -nas), mas entende improdutivo grafá-lo. Por quê?, não mostra a riqueza do galego?

Houve algum outro episódio universitário que evidencia a existência de al­gum (só?) contubérnio contra o lusismo e os lusistas e comple­menta os episódios prévios e contrários à implementação (diz-se assim?) da Cátedra de Português ao teu nome e méritos.

A Prof.ª Vázquez Cuesta foi a primeira presidenta da Assoc­iação / Asocia­ción de Amizade Galiza-Portugal, de que abjurou em car­ta muito triste, acho, en­viada ao ativista persistente José Luís Fon­tenla. Talvez essa fosse uma das con­dições, ainda remotas, para ela passar a Catedrática de Português na USC. Seria bom contrastar datas. Apesar de tudo, os Ra­món García (que re­colhes de Car­valho Calero), mais os García do que os Ra­món, porque nos feitos controlavam de mais as movimentações galeguis­tas desde a políti­ca nacional mais do que desde a estritamente autonómi­ca e sobretudo desde os jornais so­brealimentados com os nossos impos­tos.

Rafael González (DEP), diretor de El Ideal Gallego (entre 1972-1980), em que eu colabora­va na secção Lapela, comentou-me que recebera pressões para eu ser … reduzido. E assim acabou sendo até ser de facto demitido. Tivemos con­versas justamente sobre língua e sobre ortografia. Ele era anda­luz, de Osuna, disse-me, confessou-me que os filhos, quando iam à Anda­luzia natal do pai, se queixavam porque não entendiam a fala da gente. Por sinal, foi Moncho Pena, que fora estudante meu no C.U. da Crunha e amigo então, quem me indicou que colaborasse nesse jornal, pois ele passava a La Voz de Galicia.

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José Luís Rodríguez em Dezembro de 2021 durante o 40 aniversário da AGAL.

Permite que, à margem, lembre que, ao dia se­guinte das manifestações ma­ciças contra o aldraxe (4 de dezembro de 1977?) da elaboração do Es­tatuto de Autonomía para Galicia, o jor­nal El País, BOE oficioso, lançou um escla­recedor artigo editorial, em que ad­vertia às fuerzas vivas do Reino del Bourbon que o na­cionalismo galego era po­tencialmente muito mais perigoso do que os ou­tros na­cionalismos, dado que a Galiza já tem conformado e instaura­do o seu es­tado na­tural, que é a Repúblic­a Portuguesa. Não o dizia assim, mas dizia-o2.

Continuemos com a AGAL e com o reintegracionismo que enrai­zas em Car­valho (Ideal, patriotismo, amor à verdade, eis as linhas progra­máticas grava­das no seu ADN, p. 71) e em Lapa (O que Lapa nunca foi: um oportunista. […] No fim de contas, um perfil, o de Lapa, nom tam diferente ao de Carvalho Calero, cada um segundo a sua idiossincrasia evidente­mente, ambos insubornáveis, mas só subordinados ao império da verdade […] mais frontal Lapa […]: ambos profundam­ente idealistas, e portanto radi­cais, no sentido etimológico de ir à raiz, desconsid­erando as conseqüên­cias. (pp. 74-75) Excelente programa que guiou, ape­sar de todos os pesa­res, a organização e atividades da AGAL, pelo menos, du­rante o tempo em que eu participei nela. Confio em que continue pelos mesmos trilhos.

Deixo de parte outros comentos teus e vou ao grão que acho muito pertinen­te. Dizes (p. 140): Neste sentido fundacional, sim me reconheço umha espécie de pai da AGAL, reconhecendo contudo que tem mais de um. Tens toda a razão, embora com bastante fre­quência, desculpa, te retraísses, recuasses … ou mo parecesse. Seja como for, ha­via pessoas como tu que estima­vam urgente fazer como uma divisão de ativida­des e atuações, umas teorizantes (digamos), outras práticas e mesmo catequéti­cas (sic). Mas não se logrou. Acaso nestes tempos …

Continuas: Quanto ao cenário de atuaçom da Associaçom, o preferencial é, logicamente, a Galiza, porque o proble­ma crítico da língua está aqui […] A AGAL contou desde os eus inícios com umha Comissom Lin­güística. à qual pertencim sempre, cujo primeiro trabalho foi elaborar umha crítica dos pontos em que dis­crepávamos da normativa do Instituto da Lingua Galega e da Real Academia Ga­lega, as Normas ILGA-RAG. Daqui saiu o Estudo crítico das Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego, publicado em 1983 (p. 140)3. Foi quase um ano de tra­balho sabático , sábado trás sábados, no local que nos cedia, da sua livra­ria, a excelente pessoa de Je­sus Couceiro, na Rua de EL Salvador, da capitalina Compostela de Pris­ciliano.

Tenho à vista a primeira edição. A capa foi de Amado L. Caeiro, como o foi a de Dialéctica do Desenvolvimento: Naçom, Língua, Classes Sociais, do Prof. Lo­pes-Suevos. Conhecerás que o Conselho tentou daquela começar as publi­cações da AGAL por Da Fala e da Escrita, do Prof. Carvalho Calero, em Ga­liza Editora. Mas não pôde ser, após episódios tristes que não vale a pena recor­dar.

O Estudo Crítico (1983), segundo lembras, nom pretendia ser umha contra-normativa, mas tornou-se tam exaustivo que se acabou por ver como umha pro­posta alternativa, a normativa da AGAL. Nas suas páginas desenvolveu-se umha crítica da filosofia isolacionista, como se dizia entom, e ao mesmo tempo umha crítica técnica, quase parágrafo por parágrafo, dessa normativa. Foi um esforço encomiável, em circunstâncias muito adversas, físicas e psicológicas, mas tam­bém um genuºino produto do entusiasmo que nos possuía. Aprendemos muito uns dos outros, e entre todos fomos desvendando, aos poucos. o que nos parecia ser o autêntico rosto do idioma dos galegos, o galego-português. (pp. 140-141)

Permite duas precisões, a meu ver, da minha só colheita:

1. O idioma das pessoas galego-utentes hoje deveria ter o nome de Portu­guês galego ou Português da Galiza, dado que o Galego nascido na Gallæcia acabou sendo língua da Corte Portuguesa e daí o Português extenso e útil, como tal idioma e como base de muitos dos crioulos espalhados por mares dantes co­nhecidos.

2. Na realidade, nos feitos, a crítica à filosofia isolacionista, que dizes, foi e é tão certa, do lado da teoria e da história e mesmo do folclore, que os isoladores ILGa-Ragaeiros sempre se negaram a confrontar a sua ideologia (mais política do que filo­lógica ou mesmo linguística) com as razões reintegracionistas. Cobardia? Soberba?

Em junho de 1983, aos Primeiros En­contros Labaca (Crunha), sob o título Que galego na es­cola?, nenhum membro do ILG nem da RAG se atreveu a discu­tir perante um gru­po de mestres sobre Or­thographia e, em particular, sobre as NOMIGa que eles, ILG e RAG, aprovaram em reunião anti-estatutária no ano 1982. Só as de­fendeu um segundo deles e a título oficio­so, o Sr, Ferro Ruibal, pouco depois pre­miado com uma ca­deira na RAG. Presencialmente sustivemos a Tese reintegra­cionista Maria das Dores Arribe Dopico (DEP), Joám Carlos Rába­de Castinheira e mais eu. Pode ler-se a minha intervenção em academia.e­du.

Como bem afirmas, [a] publicaçom do Estudo crítico das Normas ILGa-RAG, em 1983, por parte de Associaçom Galega da Língua (AGAL) foi a primeira res­posta organizada à onda de oficialismo monolítico imperante a partir da jubilaçom do Prof. Carvalho Calero. (p. 141) Organizada e bem formulada, ainda que em aparência os frutos não foram muitos, só em aparência. Por quê?

Porque desde então as/os isoladora/es, “bien pagás y bien pagaos” começa­ram a viajar mais ao Brasil do que a Portugal para neutralizar en tierra extranjera o reintegracionismo. Começaram por insultar e manobrar dentro da CAGa, mas não lhes bastou. Viajaram e viajam ao Brasil, faziam e fazem anti-a-boa-nova de o Galego ser língua transmacional.

E porque, quando souberam, por sopro de alguma gente portuguesa, que os reintegracionistas da Fundação Academia Galega da Língua Portuguesa (F-AGLP) já foram admitidos como observadores consultivos da CPLP, houve ime­diatamente um espantoso contubérnio que logrou desaprovar o acordo já aprova­do. E persistiram no intento de apagar qualquer presença de reintegracionistas na CPLP, introduzindo-se o ConCulGa, entidade oficial no RbE, entre as entidade não governamentais, observadoras consultivas na CPLP.

Apesar dos seus intentos, a F-AGLP já é observadora consultiva junto da As­sociação de Professores de Português.

Penso, José Luís que por hoje pode valer. Prometo continuar esta carta aberta em breve tempo e com a permissão do PGL, cuja acolhida agradeço imen­so. Nela comentarei como é que os Países de Língua Oficial Portuguesa convida­ram e receberam os delegados da Galiza.

Abraço, António Gil Hernández

1 Villar Palasí, el padre de la EGB, hablaba 15 idiomas. // Valenciano de Ruzafa, el ministro que creó la «valiente» Ley General de Educación se opuso a los sectores más conservadores tras una «feroz crítica» al sistema de enseñanza del régimen. // “No, no hablaba 8 idiomas; hablaba 15 ó 16: chino, japonés, árabe, polaco…», explica José Luis Villar Ezcurra, hijo de José Luis Villar Palasí, el ministro de Educación y Ciencia que escribió, literalmente, la Ley General de Educación de 1970. / El padre de la EGB, a diferen­cia de la mayoría de ministros y presidentes posteriores, gozaba de «una facilidad innata para los idiomas. Era un autodidacta, se aprendía los diccionarios». Entre las lenguas extranjeras «normales» su hijo incluye el holandés, «la primera que aprendió en Valen­cia porque no encontraron profesor de las otras: inglés, italiano, alemán…». Usaba el valenciano, «no sólo con la familia, sino tam­bién en discursos. Su madre, mi abuela, hablaba mal el castellano».

2 Isso eu tinnha escrito. Consultei ao José António Gaciño que me responde:

O 4 de dezembro do 1977 celebráronse manifestacions pola autonomía. As mobilizacions polo aldraxe foron no 1979 e promo­vidas principalmente desde os concellos progresistas, nos que se fixeron encierros na noite do 21 ao 22 de novembro. O 22 pola tar­de houbo manifestacions, que se repetiron o 4 de dezembro, por aquilo de aproveitar a conmemoración da manifestación do 77. Creo que en novembro do 79, nos momentos mais polémicos do debate sobre o proxecto de Estatuto, El País si publicou informacions e un editorial, no que creo recordar que cualificaba as protestas como maniobras caciquiles.

Se alguma pessoa pode e quiser precisar datas e dados, agradecer-lho-ei bem. Obrigado!

3 A AGAL (Associçom Galega da Língua) continua co Estudo crítico das Normas ortográficas e morfolóxicas do Idioma Galego (ILG-RAG), preparado pola Comissom Lingüística da Associaçom, as publicaçons que, sob o nome genérico de “Univesalia”, procu­ram contribuir à normalizaçom da cultura galega.

A seguir assinala:

Para informar-se sobre a AGAL, pode acudir-se a … E dão-se os endereços da Presidéncia, em Ourense; da Secretaria, em Corunha; e da Tesouraria, em Ferrol.

Máis de António Gil
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