A última novidade da Através Editora é A imagem de Portugal na Galiza, da autoria de Carlos Quiroga, escritor e professor de literaturas lusófonas na Universidade de Santiago de Compostela.
A obra foca as representações, imagens, estereótipos, opiniões e pareceres sobre Portugal e os portugueses na Galiza. Inácio Prada e Valentim Fagim entrevistam o autor para o PGL.
**
A imagem de Portugal na Galiza aparece, se calhar, num momento muito oportuno para o interesse do país; envolvidos em projetos como a ILP Paz-Andrade ou Cultura que une, em novas tentativas de conectar ambos os países. Achas que estes projetos ajudarão a reconectar a Galiza com Portugal?
–Tomara, mas a adversidade estrutural continua no ar. O presidente da Junta estremenha explicava em 2002 que se multiplicavam iniciativas em colégios de primária, centros de secundária, escolas de idiomas e centros privados, e Ibarra anunciava que queriam ser “a interface de Portugal na Espanha, o lugar por excelência de comunicação entre os dous países” (A Nosa Terra, nº 1016, p. 3). Alguém ouviu/viu algo parecido na Galiza, a quem cabia o papel por mil motivos? A Estremadura galopa ao encontro, a Galiza esforça-se por tentar caminhar. Lembre-se que a Paz-Andrade foi ILP, Iniciativa Legislativa Popular. Lei sensacional que devia ajudar, mas quando, a que ritmo e como se leva realmente a efeito? E o sinal tuga da tv onde está em 2016…? O Cultura que une e outros projetos continuam o voluntarismo –que o livro, voltado para a explicação de um relacionamento de séculos, justifica. Nesse sentido sempre será oportuno.
É habitual a percepção de que a imagem que temos na Galiza do país vizinho foi, e é, fundamentalmente negativa. É isto certo?
–Relativamente. O que se pode constatar é uma polaridade acusada. O livro arranca deformando metaforicamente uma cena de Rastros, que pode ilustrá-la: uma suicida, que sempre almejou ser livre como os pássaros, podia representar a Galiza exausta de desejar e fracassar; Iago, o preso do Exército Guerrilheiro que gosta de «portuguesadas», é um dos terço da sociedade que tal impaís é capaz de convocar na sala de hospital; e para Moncho e Xan, que representam os outros dous terços da sociedade, ou mais, qualquer fascínio por Portugal é capricho inútil, passa desapercebido ou é até mal visto. Mas no devir histórico deram-se lógicas mudanças na perspectivação de Portugal por parte da Galiza, tanto ao nível da sociedade em geral como por parte das elites políticas e intelectuais em particular. E deve enfatizar-se que, de qualquer modo, a imagem tem estado mediatizada sempre por circunstâncias históricas que se prendem fundamentalmente com a dependência política da Galiza a respeito do estado espanhol e da sua cultura centralista. Uma maioria social galega pode ver Portugal de modo negativo, porque não o vê, porque se acha conformada com o devir histórico, julgando irrelevante tanto Portugal como qualquer aprofundamento em marcas distintivas ao respeito do Estado em que se integra. Essa seria a chave, Portugal recorda-lhe demais as marcas de galeguidade em que já não está interessada.
Contudo, é inegável que, polo menos para certa parte da população, Portugal tem significado um fetiche de cultura e custódio da língua. Poderíamos falar de termos pecado de certo sebastianismo?
–Certo. Os ‘Iagos’ da peça, a outra ponta da polaridade, é a minoria que gosta de «portuguesadas» e para quem Portugal tem sido uma espécie de Paraíso perdido. Parte da consciência da Galiza, pequena, teima em reverter as consequências de circunstâncias históricas concretas que a separaram de Portugal. Uma minoria que tem achado nessa ligação um ponto de apoio fundamental para construirmos a nossa identidade. E aí ativa-se realmente e de novo, mas à inversa, a mesma chave: Portugal recorda para essa minoria a ancestralidade das marcas em que está interessada, e talvez tenha esperado de Portugal cumplicidade, entendimento, olhar redentor. Mas obviamente o estado lusitano está noutra, esquecediço de um passado histórico e ciente dos seus problemas atuais –que qualquer iniciativa de proximidade da sua parte à Galiza, fora do quadro euro-regional, só poderia incrementar!
E falando de sebastianismo, porque julgas que o grupo Siniestro Total , um ícone da dita Movida viguesa, decidiu intitular o seu terceiro álbum como «Menos mal que nos queda Portugal»?
–Ahh haveria que perguntar para eles… O punk-rock costuma antenar com brincadeira o solene que anda no ar. O título dos vigueses talvez se inscreva, na linha irónica das suas letras, no contexto da altura. Já Ana Kiro, a figura da música popular mais conhecida no tempo – por certo mais admirada por um amigo nosso! – cantava o «Se vais ao Brasil ou a Portugal/ Verás uma gente que tem quase, quase o teu mesmo falar». Portugal estava no ar do discurso galeguista histórico, e durava, e Siniestro gravou em 84 um disco em que, viguês que era, aborda com sarcasmo alguns tópicos. Em espanhol, claro, que já era o mais contextual, mas até com os usos linguísticos chegam a ironizar: eis o «Miña terra galega –Sweet Home Alabama» do disco, que até ganhou estatuto de «hino não oficial da Galiza», como se recorda no livro (Pondal, natureza, emigração, gaitas, luta armada). Também se recorda que na época Os Resentidos editavam Vigo, capital Lisboa, e no estranho tema «In The Ghetto» se inclui o estribilho «dunha puta e un portugués, naceu o primeiro vigués» –que no estádio corunhês serve de apupo quando o Celta vai em visita. Para ambos grupos o sentido do humor e a irreverência eram marcas distintivas. Que Portugal apareça nas suas letras é sintoma que de que também nas ruas e nas cabeças.
Dadas estas relações, que lugar ocupa hoje Portugal no imaginário galeguista?
–Portugal foi um signo potente no imaginário galeguista, talvez fundamento até da própria natureza dele. Mas temo que hoje, se ocupa algum lugar –no que seja possível chamar de galeguismo atual– é apenas retórico ou residual, zero.
Neste sentido, o galeguismo histórico, antes do regime franquista, tinha com Portugal as mesmas relações que apresenta agora?
–Um século atrás, como já apontaram bastantes trabalhos sobre o assunto e se resume na epígrafe “Portugal redentor na lusofilia de princípios de século”, o galeguismo incipiente entusiasmou-se com Portugal. É o tempo das «Irmandades da fala» (1916), de Nós (1920), do «Seminário de Estudos Galegos» (1923), é a altura de Risco, Viqueira, Vilar Ponte, Pedrayo. O movimento procede de finais do século XIX e podem-se discutir intensidades, mas todos os estudos coincidem em que nunca como neste momento se tinha feito um esforço deste tamanho. As duas primeiras gerações de intelectuais galegos do século XX voltam os olhos para Portugal encarado em prolongamento fraterno. Nesta altura histórica existe ademais reciprocidade, por coincidir e sintonizar com a geração portuguesa organizada à volta da A Águia, que acaba por gerar o movimento Renascença Portuguesa de grande amplitude. A correspondência intensa entre Teixeira de Pascoaes e Risco, as visitas, o saudosismo, representam não só afinidades individuais, pois a proliferação de declarações públicas a favor da aproximação e conhecimento das duas culturas, a organização de eventos conjuntos, as homenagens cruzadas a personalidades galegas e portuguesas, os atos de confraternização, o estabelecimento de intercâmbios e acolhimento de intelectuais como membros de número em instituições de um e outro lado, ilustram o início de uma aventura de entendimento coletivo inédito entre os dois povos. Jornais e revistas portuguesas recebem colaboração galega e o mesmo acontece nas publicações deste lado. Enfim, uma época seguramente irrepetível.
Que vai encontrar uma pessoa portuguesa neste livro? Julgas que ficará surpreendida nalgum momento?
–Vai-se ver recantos da cara que desconhecia, talvez até alguns que nem queria conhecer. Vai saber mais sobre si própria, vendo-se no espelho da Galiza, com dados representativos mas nunca asfixiantes, e um estilo sumarial de linguagem clara, concisa e acessível. O livro está realmente pensado para essa pessoa. Assim se explica, por exemplo, um maior investimento em esclarecimentos históricos. Que se inscrevesse, em origem, num quadro conjunto de estudos para a “reflexão crítica sobre a identidade de Portugal” foi absolutamente determinante da natureza da obra. Nesse quadro pediu-se a diferentes investigadores dos países lusófonos para condensar o que se disse e se pensou no seu país, de maneira representativa e ilustrativa, sobre Portugal ao longo dos séculos. Que se lembrassem da Galiza é espetacular. Ora, alguns pormenores desta recolha deveriam chocar o/a tuga, pois a história que conhecem tem, em primeiro lugar, elipses e amnésias. Todos os estados são centralistas, chauvinistas, egoístas, e a sua historiografia está ao serviço da sua construção nacional. Que no século X a palavra ‘Galiza’ tenda a «aplicar-se a todo o espaço ocidental dominado pelos cristãos, nomeadamente até ao Mondego», como reconhece em alguma ocasião tal historiografia, ou esclarecer quando e como nasceu realmente Portugal, poderiam surpreender nalgum momento. Depois, certos entusiasmos enternecidos por parte da Galiza e habitantes, de que ainda ficam sinais patentes e surpreendentes, para turistas e antropólogos, serão bastante mais entendíveis depois de acompanhar a caminhada conjunta que o livro ilustra. O modo sintético de buscar a História, procurar representações e ordenar a visão de Portugal desde a Galiza no tempo, em resposta ao esforço que me fora solicitado, creio que podem resultar altamente digeríveis neste livro, para afixar um mínimo conhecimento cabal sobre o tema.