Bóveda ré-fuzilado

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alexandre-boveda01A sociedade civil, o povo, vai-se manter alerta em defesa da Memória Histórica da que tu, Alexandre Bóveda, és cerna acesa na madrugada do dia 17 de agosto”

Xosé Ma Alvarez Cáccamo

– I –

Se alguém me perguntasse o que foi a vida de Alexandre Bóveda, dizer-lhe-ia que foi a labarecente vivência luitadora da Galiza ensonhada. E se me perguntar o que foi a sua morte, dizer-ia que foi a feroz imolação da inocência. Vida e morte, em Bóveda, são a terra e mais o céu dum fulgente e fugidio trânsito existencial tão breve coma intenso e indelével, um se ser e um deixar de ser, dotados dum mesmo e único senso que qualquer ser humano e qualquer povo lúcidos gostariam para si.

Mais uma vez, a presença de Bóveda no meu magim e no meu coração tem-me feito evocar a Antígona de Sófocles recriada por Anouilh num contexto histórico e cultural bem afastado em aparência do grego: inocência, pureza e determinação imoladas em aras do absurdo. Autêntica inocência, que não ingenuidade; pureza de lei, que não candidez; determinação, que não cega teimosia. A inocência dos justos, a pureza dos bons e generosos, e a determinação dos ousados: as virtudes que cumpriam para ser, nas ideias e na conduta, nacionalista galego, cerne na circunstancia de Bóveda, e mais tamém depois.

Na farsa de juízo que lhe fazem para assassiná-lo, Bóveda diz: “Tocantes aos carregos falsos, injustos, infundados e fora de cacho do fiscal, feitos coa teima de me considerar um criminal da pior caste, quando nenhum crime cometim, remeto-me à opinião pública”. Cousa que faz resmungar ao títere-presidente do tribunal fascista: “La opinión pública no tiene nada que ver con este asunto, además de que está al lado del glorioso movimiento y em contra de sus enemigos”. E di-lhe Antígona ao tirano Creonte em Sófocles, ante a presença medonha do Coro: “Todos estes dizer-iam, que o que fixem é do seu agrado, se o medo não lhes pejasse a língua. Porém os tiranos tenhem esta e muitas outras vantagens, e é-lhes permitido fazerem e dizerem quanto quiserem.

Bóveda espeta-lhe ao títere-presidente do tribunal fascista: “A minha pátria natural é Galiza. Amo-a afervoadamente. endejamais a atraiçoaria, ainda que me concedessem séculos para viver. Adoro-a até além a minha morte. Se entende o tribunal que por este amor entranhável deve-me ser aplicada a pena de morte, receberei-na como um sacrifício mais por ela”. Antígona, em Sófocles, matina de voz alta: “E no entanto, por que te honrei (ao seu irmão Polinizes) por cima de tudo, considerou Creonte que eu cometera um delito, e que o meu atrevimento merecia terrível castigo”. E a Creonte bota-lhe em cara: “E se agora che parece que são néscia polo que fiz, posso dizer que de néscia são acusada por um néscio”

Bóveda espeta-lhe ao títere-presidente do tribunal fascista: “A minha pátria natural é Galiza. Amo-a afervoadamente. endejamais a atraiçoaria, ainda que me concedessem séculos para viver. Adoro-a até além a minha morte. Se entende o tribunal que por este amor entranhável deve-me ser aplicada a pena de morte, receberei-na como um sacrifício mais por ela”.

Bóveda, perante o tribunal fascista, reanima-se: “Fixem quanto pude por Galiza e mais faria ainda se puder. Se mais não posso, até gostar-ia de morrer pola minha Pátria”. Antígona, em Sófocles, diz à sua irmã Ismênia: “Se faço isto, formoso ser-me-á morrer”. E a Creonte, em Anouilh: “Eu estou aqui para te dizer não é para morrer”. E acrescenta esta cousa tremenda: “Eu faloche desde muito longe, desde um reino onde tu não podes entrar”, Bóveda escreve, na carta à sua mulher pouco antes de o levarem a execução: “Faltam uns minutos e tenho valor, por vós, pola Terra, por todos. Vou tranquilo. Lembrarei-vos sempre, velarei por vós”. E Antígona, em Sófocles, murmura para si: “Quem sabe se acolá a baixo (no reino de Hades) estas minhas obras são santas”.

Brecht, em Grand-peur et misère du III Reich assim de expressivamente traduzido na versão francesa, encabeça o brevíssimo esboço satírico “Ao serviço do povo” com estes versos: “Voici les gardiens des camps, les bourreaux,/ toujours prêts à servir le peuple,/ ils oppriment, ils torturent,/ ils fouettent, ils empalent, /tout ça pour um salaire de misère“.

E noutro dos seus esboços, “Em procura do direito”, o juíz berra, desbordado: “Estou disposto a tudo, meu Deus, compreendei-me! Decido dum jeito, decido doutro, tal como se me exige, porém com tudo compre saber que é o que se me exige. Se não se sabe, daquela já não há justiça”. Eis a aberrante noção da justiça que deu morte física a Alexandre Bóveda. Eis tamém os carrascos que a executaram, em nome dum Reichimpério de “Atila em Galiza’”.

-II-

Bem pode ser que estes traços expressionistas fossem de abondo para desenharem a imagem do homem que foi Alexandre Bóveda. Também o suporte humano do mito que ele encarna frente à tirania da sem-razão e da injustiça, ou seja, da barbárie. Pero Bóveda é algo mais e outra cousa do que um símbolo, um mito e unha bandeira envolta em lapas todos os 17 de agosto num campo-santo pontevedrês. É um imenso labor criativo sem protagonismos, uma luta fecundadora, uma mente cristalina e unha visão antecipadora e premonitória, que imprimem consistência tangível à sua presença avivada entre nós, sob a sua constante reencarnação entremeias dum povo que luita por ser ele próprio até o cabo da presença humana no planeta.

– III –

Se há alguma antítese do entendimento da política como cousa ruim e avulsa, da política como angariação sórdida e contaminante, como ermo a caído só para a ruindade dos famintos de poder pessoal que tanto aninham aqui hoje como anteontem, essa antítese está mesmamente na conceção, na vivência e na prática da política que Bóveda encarnou. Contava Xosé Sesto, amigo que fora intimo dele, que Bóveda acostumava relatar como, estando com seu pai, carpinteiro, ao pé duma obra, e o pai a ler um jornal, passara a carão deles alguém com aquele ar de estúpido janota abastado que rosnou “Que tempos, que até os operários leem o jornal”, e que o Bóveda comentava: “Ali começou a minha vida política”. Fosse ou não desse jeito, o acontecido ilustra bem o sentido, motivações e alicerce popular, é dizer, cívica, do compromisso político de Alexandre Bóveda, crente cristão progressista de raiz e sem melindres, três décadas antes do hoje atraiçoado e esquecido Vaticano Il.

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Castelao

Em rigor, não é atributo dele só. Castelão, que chamava a Bóveda o meu irmão menor, é de essa mesma raça. Eram-no também, polo geral, os demais irmãos galeguistas do seu tempo e não em balde assim se chamavam e como tais se tratavam uns aos outros. E não podia ser doutro jeito: o ideário e o labor políticos, quando se decantam polo bando das gentes maltratadas pela história e o poder, mancadas material e culturalmente nas suas dimensões individuais e coletivas, são não só uma angueira nobre, dignificante aquecedora para quem a assume, senão uma tarefa dura que exige dar sem esperar contra-prestação, e mesmo uma pinga de heroísmo, que chegado o caso devém heroísmo absoluto. São também um labor que exige lucidez e saberes que só com esforço se adquirem. Exige dar uma dimensão social coletiva ao quotidiano da vida em todos os seus campos, desde o trabalho até a cultura ou mesmo o lazer. É uma profissão, ou seja, algo que cumpre professar -todo o contrário dos mal chamados profissionais da política ao uso-.

Assim era a política para o Bóveda, assim era o Bóveda na política, desde bem novo, necessariamente: Não lhe deram tempo de chegar a velho- Aos vinte quatro anos ganha oposições a Fazenda, com destino em Pontevedra. Ali vai-se converter em empregado público, contra-tipo do funcionário característico da administração, nesta colónia: Vai derramar a sua generosidade a prol das malpocadas gentes chamadas, não sei se por definição ou por sarcasmo, administrados. Ali vai tirar da experiência profissional as suas conclusões para uma reformulação progressista do sistema tributário e financeiro em versão ajeitada às necessidades da economia e o povo galegos. Ali vai coincidir com Castelão, compartir com ele anseios e trabalho político, e se converter em discípulo mais também em mestre, pois que a Bóveda e a Gallástegui vai dever-lhes mor mente Castelão as ideias mais atinadas sobre economia e as condições materiais de existência do povo galego. Ali vai se converter em primeiro tenor da popular e irreplicável Polifónica. Ali vai arder durante meia dúzia de anos num enorme labor gerando ideias e organização do nacionalismo ao longo da existência do Partido Galeguista. Ali, enfim, vai ser fuzilado por obra dos fascistas no trinta e seis, colado a um pinheiro manso da propriedade da Caeira dos marqueses de Riestra, -um pinheiro que ainda ali pude eu ver erguido na companha do meu pai e do ‘Padre Luís’, o frade humilde, sábio e rejo que casara meus pais, batizara-me a mim na Corticela compostelã, e assistira ao crente Alexandre Bóveda desde que o prender até que o mataram. E quero aqui resgatar do esquecimento coletivo, e deixar testemunho de honra e gratitude para aquele franciscano genuíno, Frei Luís Maria Fernández Espinosa, galego por opção que não pela origem, amigo fidelíssimo dos nacionalistas galegos de Ponte Vedra, musicólogo insigne, autor do primeiro cancioneiro popular galego editado no século XX, quem, no seu silêncio, nunca perdoou aos assassinos de Bóveda, porque nunca fizeram ato de contrição por seu crime.

– IV –

Para pôr um rótulo definitório da sua ideologia a um homem cumpre, por suposto, analisar e definir o seu ideário. Porém cumpre, tanto coma isso, analisar a avaliar a sua prática de jeito ajustado ao contexto da sua circunstância sócio-histórica, -e vem-me a memória neste intre Luís Seoane, que sempre o repetia, ele tão confinado hoje por alguns no Olimpo da criação artística-.

Na boa jeira do nacionalismo galego, Bóveda e mais o Partido Galeguista formam uma simbiose, unha amálgama indiscernível nesses dous elementos. O celme vital de Bóveda vazou-se até tal ponto no partido que ele não deixou virtualmente obra pessoal individualizada e, reciprocamente, o PG não teria sido o que foi sem o incrível esforço criativo e a alucinante atividade realizadora de quem foi o seu secretário de organização desde a sua constituição até a levante militar fascista que acabou, por algum tempo, com tudo.

O celme vital de Bóveda vazou-se até tal ponto no partido que ele não deixou virtualmente obra pessoal individualizada e, reciprocamente, o PG não teria sido o que foi sem o incrível esforço criativo e a alucinante atividade realizadora de quem foi o seu secretário de organização desde a sua constituição até a levante militar fascista que acabou, por algum tempo, com tudo.

Os valores democráticos e republicanos, o igualitarismo, a defesa primordial das gentes exploradas e espoliadas, o bem-estar social, a identidade nacional, o status social do idioma, a dignidade coletiva, a prática da fraternidade e a solidariedade, está a abrolhar constantemente no ideário e no combate político de Bóveda ao longo de toda a sua trajetória, e deixou impressa a sua pegada em todas as criações que ele alumiou, em todas as angueiras que se levaram a fim, em todas as iniciativas que achegou ao trabalho coletivo. Desde o primeialexandre-boveda-carnero programa do Partido Galeguista até a organização da resistência ao levante militar golpista do fascismo em Ponte Vedra que lhe custou de jeito irremediável a vida. Não me consta de Bóveda que postulasse nunca explicitamente o socialismo, porém adiantou-se ao desenho duma Fazenda Pública ao serviço do social welfare que impulsionariam as democracias europeias posteriormente. E todavia na altura de hoje, com quase decénio e meio de governos que se reclamam socialistas no Estado espanhol não deram construído um sistema tributário de progressividade e justiça distributiva comparáveis aos do modelo desenhado e proposto para Galiza por Bóveda na altura do 1935, nada menos.

– V.

Por isso o mataram. A tragédia pessoal de Bóveda está inscrita na dimensão coletiva da tragédia dum povo inteiro brutalmente esmagado, com milhares de mártires, o mor deles anónimos que ele amava mais do que a si próprio. A imolação da inocência: O crime mais feroz e nojento que a sem razão da barbárie pode cometer. O crime, porém, que a barbárie mais contumaz comete na história contemporânea da humanidade. Um crime que transmite a culpabilidade por herança. Por isso com a lembrança de Bóveda arreguiçamo-nos e estarrecemos tanto a tantos ainda hoje. Por isso, ainda hoje, fazer pública lembrança de Bóveda constitui unha transgressão que espanta aos herdeiros ideológicos e políticos dos autores materiais do crime ainda hoje impune. Bóveda é sangue nas mãos e nos focinhos dos que inconfessavelmente pensam, e disfarçadamente agem desde o poder como os que outrora cometeram o crime de assassinarem à inocência. Um poder político que ainda há pouco rejeitou nas Cortes espanholas condenar, em nome da democracia, o levante fascista do 36. Um poder eclesial que se negou até agora a pedirem perdão pelo holocausto de milhares de democratas cristãos, nacionalistas (do povo(s) submetido) ou não, vítimas do genocídio que a hierarquia católica do então santificara como ‘Cruzada’. Contara-me há bem anos Ramiro Isla Couto que, quando do processo de Bóveda, um fato de católicos galeguistas acudiram a Eijo Garay -bispo franquista de Madrid-Alcalá quem o fora primeiro de Tui, nascido em Vigo – para suplicarem-lhe que intercedesse por Bóveda. A gélida resposta do pastor católico fora: “el mal está muy hondo y hay que meter el bisturí a fondo”.

Ainda hoje, fazer pública lembrança de Bóveda constitui unha transgressão que espanta aos herdeiros ideológicos e políticos dos autores materiais do crime ainda hoje impune. Bóveda é sangue nas mãos e nos focinhos dos que inconfessavelmente pensam, e disfarçadamente agem desde o poder como os que outrora cometeram o crime de assassinarem à inocência. Um poder político que ainda há pouco rejeitou nas Cortes espanholas condenar, em nome da democracia, o levante fascista do 36.

Constituída no post-franquismo a Autonomia galega pela que Bóveda dera a vida cinquenta anos antes, os nacionalistas levamos ao Parlamento da Galiza, por duas vezes consecutivas com um intervalo duns poucos anos, uma mesma proposta legislativa para a revisão reabilitadora do processo que condenara a Bóveda e mais para institucionalizar o dia 17 de agosto como Dia da Galiza Mártir -que os nacionalistas do Partido Socialista Galego (PSG) instauramos na prática quando ainda reinava o franquismo na Espanha. Por duas vezes, a maioria da Câmara legislativa da democracia autonómica que os assassinos de Bóveda sequestraram durante meio século aos cidadãos galegos, por duas vezes, digo, rejeitou essa proposta de lei. Por duas vezes negou a Bóveda, meio século após de morto, a justiça e a honra que lhe tinham roubado em vida. Por duas vezes os herdeiros ideológicos dos criminais, os estigmatizados pela herança do crime, volveram fuzilar a Bóveda, desta vez nas instituições disque democraticamente representativas da cidadania pola que Bóveda deu a sua vida. Ainda o ano passado, às portas deste centenário do Alexandre, entanto o Concelho de Ponte Vedra governado por democratas nacionalistas honrava postumamente a Bóveda em nome dos cidadãos livres, a Deputação da província refugava fazer outro tanto. Ainda hoje, enquanto os ‘bons e generosos’ do nosso hino nacional pondaliano teimamos em relembrar e proclamar a honra de Bóveda no seu centenário, como temos feito toda a vida, o vergonhoso e culpável silêncio institucional proclama clamorosamente a assunção da herança do crimei: até esse ponto o simples nome de Bóveda delata ainda hoje a transmissão histórica dum crime cometido oito decénios atrás. A história seica não buligou. A historia do crime seica não é historia ainda: é presente vivo. Bóveda. uma presença que acusa, como o espectro do pai de Hamlet em Shakespeare. O coração de Bóveda segue a delatar o crime cometido, como o “tell-tale heart”, o “coração delator” no fantástico relato de Edgar Allan Poe. Por isso, ante a presença de Bóveda, os morgados disparam outra volta. Bóveda reaparecido, volvem-no fuzilar. Bóveda ré-fuzilado: retrato descarnado do poder atual.

Reboraina de Aguiar, maio coberto de rosas do 2003.

iNo ano 2017, foi atacado o monumento e apareceu profanado por vários grafite procazes. Um deles significativamente proclamava “viva españa”

[A adaptação ortográfica do texto é de Alexandre Banhos]

Máis de Xosé Manuel Beiras Torrado
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