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‘Ana de Amsterdam’ de Ana Cassia Rebelo, a anti-ela

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Sou Ana de cabo a tenente. Sou Ana de toda patente, das Índias. Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada. Sou Ana obrigada. Até amanhã, sou Ana. Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos. Sou Ana de Amsterdam.

 

Os acordes daquela canção de Chico Buarque, Ana de Amsterdam, ecoam na narrativa do mesmo título que Ana Cássia Rebelo assina e que a editora Quetzal publicou em 2015 parcialmente, porque procede dum diário ainda aberto e ao dispor no blogue do mesmo nome.

O diário é fulcral na hora de analisar a literatura escrita por mulheres. É certo que muitos autores masculinos escreveram também diários: homens já escreveram tudo e fizeram cânone de tudo. Porém, inúmeros diários de autoria feminina foram resgatados pela historiografia como únicos indicadores onde ler a vida quotidiana e daí cobraram inusitada relevância: o relato dos afetos, as decisões familiares ou o devir dos pequenos negócios, as contas onde tudo deve quadrar, no económico e no pessoal, tornaram esses diários em material lido com avidez por quem quiser conhecer o passado. Mas esses não eram literatura; apenas fragmentos de vida sem intenção estética, concluem especialistas. Talvez, nessas rígidas categorizações, nem sequer fosse literatura o de Ana Frank, a sua única obra, catalogada dentro da literatura juvenil apenas pela idade da autora que, na realidade, está a descrever o holocausto entre a dor de quem o sofre e a ingenuidade de quem luta para se salvar: os protagonistas duma história nunca podem perceber todo o seu horror. Frequentemente, no entanto, reconhecidas escritoras −como Virginia Woolf com os seus vários volumes de diários íntimos ou Maria Bashkirtseff, com o seu nutrido catálogo emotivo− fizeram público o privado. Dizer que agiam sem intenção estética seria injusto. Anotavam o que podiam entrever da existência sem quarto próprio, anatomizavam sentimentos, enchiam páginas com a única experiência que era permitida, a do interior de si, visto que estavam excluídas do território público. Griselda Pollock tem insistido muito na exclusão das artistas plásticas dos espaços públicos para entender as estampas da vida doméstica refletida insistentemente, por exemplo, nas pinturas de Berthe Morisot ou Mary Cassatt. Qualquer coisa semelhante é que observamos nos diários para a literatura.

Contudo, a incógnita literária que abre qualquer diário fica ainda sem resolver. Porque o diário é em si próprio um desafio, um jogo de espelhos. Dificilmente poder dar-se por completamente veraz o que lá foi escrito. Quem expõe à vista pública a sua intimidade não tem de dizer verdade: toda autobiografia está condenada ao exagero e à desesperação; é pura subjetividade. O sujeito tende a se retratar com traços excessivos. Ao imaginar um recetor do outro lado tencionará seduzir, deixando ver os aspetos mais atraentes da própria personalidade, as anedotas onde pode luzir no seu melhor, ou talvez prefira imolar-se exagerando as eivas. Portanto, quando um autor, em particular uma autora, dá ao prelo o seu diário, também é possível que não seja exatamente um retrato fiel; é possível que goze connosco, que disfarce com uma depressão crónica as tendências autodestrutivas para as colocar em foco, para se pungir no relato do feio, o sórdido e o escuro. Ana Rebelo delicia-se em nos mostrar o que raramente os escritores, e este masculino não é um genérico, expõem: a gula, a lascívia, a frigidez, a masturbação continuada e agónica, muitos pensos e sanitas, muitos coágulos quando é menstruada. O súcio dá nas vistas. Para nos repugnar ou para nos estremecer. E lá é que temos a personagem e já não a pessoa.

“Voltei a roer as unhas até ao sabugo, ando com as polpas dos dedos inchadas e cheias de feridas. Tenho um molar estragado que, deixando um sabor fétido na boca, larga uma halitose potente. Cortei o cabelo tao curto, já não o consigo apanhar. Os meus pés, por causa das sabrinas baratas que uso sem meias, cheiram a chulé, e os meus sovacos, apesar do desodorizante, não aguentam até ao final do dia sem libertar um cheiro recozido de suor. E […] este mês, o meu fluxo menstrual voltou a ser diluvioso e inconveniente: largo golfadas de menstruo coagulado, mas dum vermelho intenso, muito bonito” (2005:173).

Não me interessa absolutamente nada, como leitora, se a voz que sofre nesse diário responde inequivocamente à da autora. Não me importo com satisfazer a curiosidade de se realmente ela é assim, quando fico surpreendida com esses pormenores obscenos, repetidos, calculados, esse abrir a porta da casa de banho para nos contar o que lá permanece. O narrar despudorado. O medo. E a sua tensão.

No entanto, a crítica usa o seu escalpelo ao serviço das vendas ao salientar que a autora e a voz protagonista respondem à mesma identidade. No prólogo, João Pedro Jorge fatiga-se, inutilmente a meu ver, para nos demonstrar que o relato é autobiográfico: as duas Anas têm três filhos, as duas trabalham como juristas, as duas partilham chaves como a origem em Goa e, portanto, as duas são a mesma, uma perspetiva que se observa também nas entrevistas à autora. Evidentemente, esses dados podem ser estritamente certos; o assunto é que essa identidade é irrelevante. Supérflua. Qualquer coisa deixou de funcionar bem no artefacto literário no momento em que se comenta que “Ana interpreta a condição de muitas mulheres que coabitam com a frustração, asfixiadas pela casa, pelos filhos, pelo trabalho, pela falta de apoio”. Porque esse comentário, dedicado a captar leitoras −e o feminino cá também não é um genérico dissidente, mas uma perspetiva do marketing editorial− vira para um folheto ideológico, na linha desse feminismo conforme com tudo que qualquer um pode abraçar, o da mulher esmagada na sua realização pessoal que não pode desenvolver-se plenamente.

Essa perspetiva reducionista desentende-se da beleza imensa do relato, da sua potência poética: “Bebi um café pela manhã e veio-me à boca um sabor estranho. Um sabor adocicado, perfumado, a fazer lembrar o da flor de anis. Bebi um café e veio-me à boca o sabor das pastilhas de alcaçuz que um dia a minha mãe comprou por engano. […] Bebi um café e senti no corpo a mornidão dos lugares da minha primeira infância […] Bebi um café e veio-me, não sei de onde, uma vontade grande de chorar.” (2015: 69).

Uma leitura tão simples, aliás, omite a intencionalidade punk e subversiva do texto que, necessariamente, some se a autora estiver simplesmente a narrar o seu dia-a-dia:

“Faz hoje precisamente seis anos que tentei matar-me e, hoje, o médico da medicina do trabalho disse que eu era uma mulher bonita. <<Tem três filhos>>, disse, <<uma profissão, mas tantos nós por desatar>>. Aconselhou-me psicanálise. Não quero desatar os meus nós, gosto deles assim, cegos, brutos, alimentam-me” (2005: 163).

Um dos problemas que afetam à receção da literatura escrita por mulheres é que tudo quanto escrevamos tende a ser interpretado como pura matéria biográfica. Se assim for, haverá que concluir que não temos imaginação e, portanto, não verdadeiro ofício literário. Não é preciso ter matado numa guerra para descrever uma guerra. Não é preciso ser operária têxtil no Manchester de finais do século XIX para descrever ajustadamente as condições de vida do proletariado urbano na revolução industrial. Escritores enchem com documentação e com empatia o não experimentado; e na escrita confessional também talvez sejam capazes de imaginar. Ou, dito noutras palavras, não estou certa de que seja a autenticidade (a correspondência com o real) o mérito de Ana Rebelo, que eu situaria mais bem na coragem de expor uma intimidade feminina duma fereza radical porque, após tantas leituras e tantas vanguardas, ainda ficam espaços não enunciados, não ditos.

“Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimento. Partilho com eles, para horror de muitos, a solidão e a angústia” (2005: 115). Gosto especialmente dessa maneira de tratar a maternidade, fora de toda convenção moralizadora. Entregue, mas não sacrificada, sem abnegação, a voz narrativa escapa nas horas do almoço para ter com amantes, ou comenta ao filho maior que os homens “são merdosos e cobardes”, que “não valem um pirolito”, um tipo de pedagogia da vida alheio à correção política. É a mesma voz que se preocupa muito com a sexualidade, com os orgasmos que rebentam como petardos, os troféus que toda mulher deve obter para demonstrar o bem-estar atingido na vida. Porque a Ana de Amsterdam arranja tempo para analisar o desejo em três graus: muito, assim-assim e pouco e, com evidente humor, e sem se preocupar por melindrar ou não os demais, assiste ao crescimento desse desejo primitivo, espontâneo, que entra na vida e faz com que, ao banhar o filho, imagine as mãos do homem que o produz a descer pelo seu próprio corpo.

É precisamente neste ponto que Ana Rebelo consegue uma voz feminina própria, afastada da narrativa tradicional da boa cidadã e mãe abnegada, mas também dos estereótipos vinculados mais recentemente ao feminismo. Com essa voz própria escreve (2005: 145):

“Suspirava de alívio por não ter herdado as características físicas da minha avó paterna, Maria Aninhas Valadares, mas estranhava a importância que a minha mãe dava ao torneado das nossas pernas. Vivíamos num mundo de mulheres recentemente emancipadas -na certeza da legalidade escrita, as mulheres eram iguais aos homens. Proibia-se a discriminação. As mulheres tinham exatamente os mesmos direitos que os homens. Bastava-lhes o seu trabalho, o seu valor e a competência para serem reconhecidas. As mulheres haviam de ser amadas apenas pelas suas ideias, pela firmeza do seu carácter, pela sua sensibilidade. A conversa da minha mãe, dando importância ao corpo, antecipando um tempo de volúpia e desejo, ofendia, e de que maneira, o meu precoce feminismo, era um retrocesso intolerável, um sinal de atavismo e ignorância. Havia, porém, muito acerto nas suas palavras. Sei-o agora, o corpo é uma arma, e uma mulher deve usá-lo em todas as ocasiões: fazer pontaria, olhar pela mira telescópica e puxar o gatilho sem misericórdia ou piedade”.

Se a crítica não a protege, uma leitura feminista de catálogo, poderia desinteressar-se do relato também e declarar que é excessivamente complacente com os homens, excessivamente condescendente nas suas lutas, excessivamente mãe, excessivamente ela.

Ana Rebelo retrata uma mulher em luta artística com a sua psique, uma mulher feroz duma energia esquisita, com raízes asiáticas e passado moçambicano que a blindam num universo exótico, capaz de deliciar-se nos pormenores da existência, como todos os autores de diários. Porém, ela não pretende escrever um guia para a mulher atual, não está para produzir panfletos, mas apenas para passar o escalpelo pelas feridas. Se curarem, voltará a furar nelas para sangrarem de novo, como todos os escritores com vocação pornográfica. Ana de Amsterdam constrói-se como uma anti-mãe, uma anti-amante, uma anti-companheira, uma anti-formosa, uma anti-mulher atual. É tão rebelde, tão extraviada nas decisões, tão sincera que consegue pôr às avessas todas as cínicas que nos habitam. Uma anti-ela. Se o trabalho literário consistisse em descrever o novo e o não trivial, em não se resignar a repetir as pautas do género (também do género confessional), o livro seria catalogado de original. Inquietante. Um livro que dói.

* Texto publicado no blogue A Tecer Aranheiras

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