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A moderna literatura brasileira de horror: Rogério Silvério de Farias

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Nascido na região Sul do Brasil, no estado de Santa Catarina, o escritor Rogério Silvério de Farias, conforme ele mesmo nos conta, “fez quase de tudo na vida, antes de finalmente conseguir se formar em História (Licenciatura) e se decidir a ser escritor de verdade. Até os 20 anos de idade, já tinha feito de tudo um pouco: foi operário de uma cerâmica; eletricista (abandonou este ofício após ver um colega eletrocutado); colaborador de uma editora de contos eróticos (era bem remunerado com esses escritos); roteirista de histórias  em quadrinhos de terror (rendia um dinheirinho). Trabalhou numa central de óbitos; foi funcionário público. Chegou a iniciar uma segunda graduação no curso de Letras, mas não a concluiu por falta de dinheiro e ânimo. À maneira dos primeiros gnósticos, acredita num Deus Verdadeiro e na missão plenipotenciária do Espírito, e crê que este mundo material é o Inferno (o Paraíso corresponde ao mundo espiritual para onde todos iremos no dia de nossa morte)”.

Um dos mais fecundos escritores da literatura fantástica brasileira da atualidade, Farias é autor de vários livros de contos de terror, horror e fantasia, dentre os quais Aqueles que Vieram com as Névoas, Descansa em Paz, A Procura de Stevatas, A Estrela e os Sonhos e O Ultimato de Oannes.

Apraz-nos, pois, apresentar ao público galego um conto de autoria do profícuo autor catarinense. Nele, um narrador do século XVII, conservando o espírito de sua época, conta-nos o confronto de uma jovem mulher, em plena puritana Salém, Massachusetts, com a inutilidade da fé, em face da morte lenta e cruel de seu amado:

COMO NASCEM AS BRUXAS

 

Quando o fel amargo da sina e a bílis negra do rancor brotam como ondas flamejantes nos mares tempestuosos da alma e do coração de uma mulher, tome cuidado homem, anjo ou deus!… Porque a mulher é uma criatura misteriosa e estranha, muito além de santa e demônio ─ mata com o olhar e com o sentimento! Flui em suas veias o místico e rebelde sangue de Eva e em sua boca escorre a saliva peçonhenta e luxuriosa de Lilith. Carrega dentro de si o Céu e o Inferno, e sua capacidade de amar e odiar é infinita. Portanto, tu, que estás a ler estas linhas, teme a mulher quando ela te odiar! A mulher é enigma e labirinto, amor e morte, paixão e ódio, arco-íris e relâmpago, poesia e cólera, luz e sombra, berço e túmulo!

Machucaste uma mulher? Se tu fores um homem, sofrerás; se tu fores um deus, perderás um seguidor.

São muitas as histórias de mulheres e muitas as de bruxas. Esta é uma delas. De bruxa e de mulher. Se tu, cristão, estás a ler estas linhas, é melhor persignar-te antes de continuar a leitura desta sombria e metuenda história!

Rebecca tinha dezoito primaveras naquele ano de 1692, em Salém. Mas, para ela, então, não eram primaveras, mas sim outonos – outonos de tristeza, de ódio, de ojeriza ao seu fadário de réproba.

Ela sabia que, se continuasse com a vidinha estúpida que levava em Salém, nunca seria nada na vida. A vida é assim, mormente para os miseráveis: as portas só são abertas para os fortes, pois aos tíbios é dado o veneno negro da vida e o labirinto da mediocridade. A porta do Inferno é ampla e fica aberta noite e dia, por ela passam os fortes e ousados. A outra porta, mais estreita, é a do céu: passam por ela os que suportaram o sofrimento nos braços de Jesus, sem venderem sua alma e sem sucumbirem à angústia do fracasso. Mas Rebecca não queria o infortúnio como ingrediente básico do crescimento espiritual – queria a vida sem dor, a paixão, a lascívia sem sofrimento, no prazer, no gozo da carne.

Passaram as estações da existência, e logo o outono imperava na vida de Rebecca. O outono do infortúnio e da danação. Rebecca estava agora junto ao leito de seu amor, Joshua, já quase morto por uma doença terrível, algo muito pior que a lepra! Joshua parecia um morto-vivo. Sua aparência física era pior do que uma pessoa privada de alimentos em estágios finais. Joshua, o amor de Rebecca, que sempre rezara, sempre semeara o amor e o bem, agora estava morrendo. Os ossos pareciam querer furar a pele branca, cadavérica. A carne começava a ficar pútrida, fétida. Era praticamente um nauseabundo esqueleto vivo, e o olhar perdido, embaciado, fitava o nada da vida e sonhava com uma libertação na morte. A dor era tanta, que Joshua não mais falava, mas trauteava algo como um cântico profano em repúdio à dor excruciante da enfermidade satânica.

Rebecca tentava consolar Joshua, mas era inútil. O Deus que Joshua adorara durante toda a sua vida agora o premiara com a negação de ajuda ante a terrível doença.

Rebecca ia perdendo a fé, mas num último hausto de esperança, olhou o crucifixo na parede. Ali estava Cristo, o crucificado. Uma prece, a última, a derradeira desprendeu-se dos lábios de Rebecca, como num murmúrio, como uma pétala da flor negra do desespero caindo, açoitada pelos ventos do destino cruel.

─ Jesus, não o deixe morrer! Por favor, não deixe meu amor morrer!… Eu o quero perto de mim, preciso de Joshua, do seu amor e seu corpo, ao meu lado, tirando-me da solidão da vida… Não, Senhor!… Não deixe que o levem… não me deixe sozinha neste mundo de sonhadores e desgraçados!

O amor de Rebecca. O sofrimento de Joshua. O fardo da enfermidade consumindo-o como um veneno lento e inexorável. Joshua macilento, lúrido, às portas da morte, nas vascas da agonia. Rebecca desesperando, perdendo as ilusões, as esperanças do auxílio da mão divina…

Os olhos de Joshua pareciam dizer a Rebecca:

“Rebecca… estou caindo na escuridão… faz frio, agora… Ouve-me, querida… estou morrendo… é um vácuo a morte, e nele não há o fim, mas o começo de uma nova dor…

Rebecca, salva-me do Inferno!”

Ao que Rebecca respondia, desesperada:

─ Não morras , meu amor! Oh, não morras!

O último suspiro quase coincidiu com o trovão da tempestade, lá fora, na noite, que chegava como o veredicto da morte.

Logo, o temporal. A chuva. Lágrimas nos olhos de Rebecca.

Rebecca ainda tentou manter Joshua, seu amor, amarrado à vida, mas já era tarde. Sacudiu-o no leito, mas ele morria, ele morria! Estava agonizando, descendo ao reino das sombras, ao país dos mortos. A respiração cessava. O coração parava de bater. Uma frieza cadavérica apossava-se do corpo esquálido, carcomido pelo mal que lhe consumia.

Então sobreveio o horror. Uma coisa tenebrosa aconteceu! Joshua, agonizando, expeliu um grito final, de desespero e medo, que retumbou no quarto como retumbam os trovões do Inferno, e concomitantemente, o corpo esquelético de Joshua começou a tremer, como que atravessado pela eletricidade estranha e medonha da morte. Uma baba ou gosma sanguinolenta escorreu pela comissura da boca. A carne pútrida foi-se desprendendo como que a derreter sob sóis infernais calcinantes, invisíveis ao olhar humano são. E os olhos saltaram das órbitas, e um cheiro nauseabundo evolou da pele lívida de Joshua, como uma emanação mefítica de mil carniças nas pradarias ardentes do Inferno, até que o paroxismo do horror veio na forma do silêncio sepulcral e do rigor mortis.

Rebecca baixou a cabeça, vencida pelo horror, pelo medo, pelo desespero… E pelo ódio! Sim, ódio do destino, do descaso de Deus… Pois, onde estivera Ele, enquanto Joshua morria, engolido pela morte?

Rebecca soltou um grito histérico, insano. Depois, parecia estar catatônica. Olhou o patético crucifixo na parede.

A ira. A loucura. O desespero. Ingredientes sinistros para uma transformação diabólica de alma. Tudo a envenenar a alma da jovem.

Rebecca apanhou a Bíblia e alguns frascos de remédios de sobre o criado-mudo e, num ímpeto de selvagem loucura e ódio, pôs-se a atirá-los furiosamente sobre o crucifixo na parede, gritando blasfêmias e impropérios.

─ Maldito sejas tu, ó Deus dos desgraçados! Porque deixaste meu amor morrer, Deus inútil? Por que não o salvaste? Eu respondo: porque és o Deus dos tíbios!

Com o estrondo do trovão da tempestade lá fora, um pacto parecia selar-se nos recônditos da alma de Rebecca. E ela comemorou com uma gargalhada insana quando a luz súbita do relâmpago atravessou a vidraça da janela e iluminou-lhe o cenho rancoroso, antes de murmurar para si própria:

─ Doravante terei mil razões de vingar-me do destino, por mil eras eu te odiarei, ó Deus inútil dos fracos!… A magia do meu ódio será o legado que deixarei sobre esse vale de lágrimas, a Terra, de onde me tiraste aquele a quem amei, o meu querido Joshua!

Assim nascem as bruxas ─ nascem do desespero incoercível, do ódio contumaz e da rebeldia ante o corte dos liames da paixão pelas mãos divinas!…

Caso queiram saber mais sobre o autor, acessem aqui a sua página na internet.

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