Por Rudesindo Soutelo
Era uma vez um país que, não estando nos mapas, todos sabiam que ele existia e mesmo onde se encontrava. Chamavam-lhe o País da Música e obviamente estava habitado por músicos, gente muito consciente da importância da sua arte. A perceção, a razão e a emoção eram os alicerces da sua criatividade.
Mas num mau dia a sua história mudou.
Não querendo ser aborrecido, com pretensões de cientista historiador –mas também não querendo converter isto numa historieta, anedota ou facto pouco importante– vou contar o acontecido em forma de fábula, relato ou estória.
O País da Música era uma terra muito harmoniosa e hospitaleira, sempre de portas abertas e muito confiante. Tão confiantes eram os seus habitantes que um dia chegaram lá os amusios –gente que odeia a música porque não tem a capacidade de apreciar os sons– e assumiram o controlo do país.
Os amusios não se interessavam pela visão mágica do mundo, apenas pela sua dimensão económica. Assim, do País da Música, levaram tudo e mais alguma coisa, nomeadamente o que mais brilhava, como os instrumentos de metal, que os amusios penduravam nas suas casas para fazer ciúmes aos vizinhos, que pensavam que eram de ouro.
Entre as muitas coisas que os amusios levaram do País da Música, havia uma pequena caixa, sem valor material, mas que na confusão também foi apanhada. Era uma caixa cheia de laços como os que vestiam os cidadãos do País da Música.
Pelo caminho, o amusio que levava a caixa, decidiu aliviar a sua carga deitando fora as coisas de menos valor. Foi assim que a Caixa dos Laços se perdeu num lugar desconhecido.
A Caixa dos Laços era o bem mais apreciado no País da Música, muito mais do que o próprio rei –afinal, qualquer cabeça servia para levar uma coroa. A Caixa dos Laços guardava o maior tesouro do País da Música, que era o segredo da inspiração musical. Quando os habitantes do País da Música queriam fazer uma música nova, iam ter com o guardião da Caixa e pediam-lhe um laço que os inspirasse, que lhes abrisse a mente para perceber o ser, que lhes aguçasse o seu juízo para pensar o mundo e que avivasse a chama do espírito com emoções profundas.
Havia laços destinados a inspirar músicas brincalhonas e laços para inspirar melodias de amor; laços para inspirar músicas de crianças e laços para inspirar sinfonias. Cada música precisava de uma inspiração própria e cada laço era único, sendo devolvido à caixa mal o compositor acabasse a sua nova obra. Também havia laços para inspirar os intérpretes, laços para inspirar os maestros diretores e, ainda, laços para inspirar os cientistas da música. Para fazer música inspiradamente, os habitantes do País da Música sempre acudiam ao segredo da Caixa dos Laços, porque os laços que eles punham, diariamente, não eram mais do que uma evocação ou sacralidade estética do mistério da inspiração. Os autênticos laços da inspiração guardavam-se naquela caixinha que, para os músicos, era uma caixa sagrada, um sacrário.
Só não havia laços para fazer musiquetas porque, como acontece com as historietas, são de moda passageira, anedóticas, pouco importantes e de valor artístico muito ligeiro. Não se ia malgastar a inspiração em banalidades porque a inspiração era um bem precioso, muito escasso, que se poupava para as coisas importantes.
Sem a Caixa dos Laços, os músicos não conseguiam transmitir o sentimento oceânico, que era a comunhão do espírito com a imensidão e a sensação de eternidade ou plenitude. Sem os laços da inspiração tudo se tornava superficial e a arte musical esmorecia, enquanto os amusios iam controlando o país inteiro.
Os amusios consideravam que essa moda dos laços era uma extravagância algo esquisita e antiquada. Para eles, que já tinham substituído a política por mercado, a cultura por espetáculo, as catedrais por centros comerciais e de ócio e até a educação tinham substituído por informação fragmentária, o modelo de elegância era o desarranjo.
Para controlar os países, os amusios não precisavam derrubar governos nem mudar autoridades, pois, privados de perceber as categorias musicais, culturais e artísticas, pensavam o mundo em categorias económicas –mercancia, valor, dinheiro, capital, mais-valia, lucro, custo, salários e produção. Era o mercado que ditava as leis aos governos e este estava nas mãos dos amusios.
Diferenciar o canto de um passarinho do mugido de uma vaca era tarefa impossível para os amusios puros ou congénitos. Não eram surdos mas, para eles, ambas as coisas eram uma barulheira desconfortável. Alguns nem sequer conseguiam distinguir os ritmos mais simples, pelo que não podiam dançar, nem cantar, nem emocionar-se com as belezas da música. Isso também os impedia de aprender línguas, pelo que, com o seu poder económico, obrigavam, todos os que queriam entrar no mercado, a falar o amusianês.
Os amusios puros ou congénitos não eram assim tantos mas geriam as grandes corporações transnacionais. Para controlar efetivamente o mercado eles tinham uma enorme rede de ajudantes espalhados por toda a parte. Estes ajudantes eram colaboracionistas dispostos a trair o seu país, a sua cultura e a sua língua para assumir, como própria, a língua e a cultura invasoras.
O amusianês começou assim a espalhar-se pelo País da Música e muitos, mal aprendiam a dizer quatro palavras, iam velozes vender o seu saber musical aos novos poderosos, mas os amusios, como não percebiam patavina de música, não confiavam naquele entusiasmo prematuro. Então, o apetite económico destes colaboracionistas levou-os a planear uma arma secreta para oferecer aos amusios e, assim, serem aceites no clube dos poderosos. Depois de algumas tentativas, acertaram na fórmula e, finalmente, os amusios decidiram testar a arma secreta que lhes era oferecida. Os resultados pareciam promissores.
As musiquetas entontecedoras, concebidas pelos perversos colaboracionistas, começaram a ouvir-se nas lojas, nas ruas, nos elevadores, nos telefones, nas escolas. Foi uma invasão em massa! Até mesmo nos conservatórios de música se ouviam aquelas musiquetas amusianesas. O silêncio desapareceu do mundo e já ninguém conseguia pensar direito com tanta musiqueta entontecedora à sua volta. Nunca antes se tinha conseguido algo assim. Só a utilização habilidosa dos desportos passivos de massas atingira, pontualmente, quotas entontecedoras igualmente destacáveis mas que nada tinham a ver com o entontecimento contínuo das musiquetas. A adoração que os amusios tinham pela tecnologia contribuiu, grandemente, para o êxito daquela invasiva reprodutibilidade técnica das musiquetas.
Os amusios estavam felizes mas queriam algo mais. Queriam ter controlo sobre como e quanto entonteceriam as musiquetas. A arma secreta foi aperfeiçoada e apareceram as musiquetas subliminais para manipular a curva de rendimento laboral, de consumo, de submissão. Havia musiquetas com mensagens subliminais para fazer a guerra, fazer o amor, fazer a política, fazer que se fazia. E ainda musiquetas para manipular as crenças, as ideologias, e as paixões primárias do baixo-ventre. As musiquetas subliminais promoviam o consumo compulsivo e garantiam um ótimo rendimento dos mercados amusios. O amusianês era a língua franca das musiquetas mas, para obter ainda mais rendimento económico, permitiam a babelização das traduções traidoras.
A fórmula secreta das musiquetas era a reprodução, a cópia, a repetição do já dito, a memória acrítica, a fragmentação. Mas essa constante confusão entre memória e repetição, sem capacidade de renovação, gerava decadência e irrelevância porque a originalidade, a autenticidade, a criação era algo que não se podia copiar. O ser e o não ser eram antagónicos. A cópia desencorajava a criação.
Revestidos da falsa autoridade musical que lhes proporcionava o êxito económico das musiquetas, começaram a disseminar a ideia de que já não havia categorias musicais, que todas as músicas eram boas, que todas as músicas eram agradáveis, que já não havia valores, só havia prazer, e que as musiquetas eram a música moderna, a nova música erudita. Doutores, licenciados e analfabetos num discurso ecuménico de ignorâncias plurais confirmavam a antiga sentença: “Quem não ama a música ofende a verdade e, também, a sabedoria”.
Os músicos que se mantinham fiéis à ética do País da Música foram postos de parte, sendo vistos como sonhadores à procura dos laços perdidos. Obviamente, que a ética não se podia pôr em palavras, era transcendental. Ética e estética eram as raízes da autêntica diversidade musical que, em lugar de fragmentar, atuava como força de coesão dos valores comuns. A herança e a memória eram preservadas por aqueles músicos para construir a realidade do futuro. Recordavam, consideravam e esperavam, porque o tempo estava nas suas mentes.
Como não colaboravam com o inimigo, a sua insubmissão era duramente castigada com difamação e descrédito. Os amusios sabiam que a música inspirada e criativa movimentava emoções profundas e que podia neutralizar as musiquetas. Os músicos não colaboracionistas eram, pois, os piores inimigos dos amusios, que começaram a criminalizá-los por tudo, mesmo por querer viver do seu trabalho intelectual criador. Quando eram levados ao tribunal amusio, ainda que tivessem a razão, saíam sempre a perder.
Os amusios chegaram a fazer crer que a culpa de todos os males residia nos direitos económicos que as leis concediam aos compositores e intérpretes pelo uso, cópia e reprodução do seu trabalho e, assim, incitando ao roubo do labor criador, impediam os músicos insubmissos de sobreviver. Essa estratégia perversa também diminuía grandemente as receitas das musiquetas, mas os amusios que controlavam esse mercado, eram os mesmos que fabricavam a tecnologia para copiar e reproduzir a música roubada. Era um negócio rápido e redondo. A cultura da cópia contra a criação, a destruição da imaginação, o triunfo da ignorância, eram processos que se consolidavam e nos quais, sem o saber, toda a sociedade colaborava.
Já todos se tinham esquecido que, no País da Música, existira uma Caixa dos Laços, antes da chegada dos amusios –essa gente que odeia a música porque não tem a capacidade de apreciar os sons. Só um velho e faminto compositor guardava memória dessa caixa mas ninguém acreditava nas suas fantasias. Consideravam-no um tolo. Todos os dias, punha o seu laço, mesmo sabendo que aquilo não era mais do que uma evocação do mistério da inspiração. Como não há mal que sempre dure, ele esperava, considerava e recordava. A memória devia, no seu entender, ser preservada em ligação com a esperança presente das coisas futuras. Tão só a magia da música poderia anular a arma secreta dos amusios, mas a Caixa dos Laços estava perdida e sem a inspiração musical não era possível enfrentar aquelas musiquetas entontecedoras.
Mas, havia de surgir o ‘dia feliz’ em que a história do País da Música teria de mudar.
Duas crianças –uma menina e uma menino irmãos– aborrecidas de tanta musiqueta e de tantos brinquedos tecnológicos, foram para a floresta à procura de aventuras mais estimulantes. E lá, brincando na natureza, encontraram uma pequena caixa cheia de laços. Eram tão bonitos aqueles laços que decidiram averiguar de onde vinham para os devolver ao seu dono. Enquanto pesquisavam, puseram a caixa num lugar seguro e secreto.
Perguntavam pela vizinhança se alguém sabia algo sobre laços, para que serviam, onde se conseguiam. Todos olhavam para eles com muita estranheza até que um velho lhes disse que, no País da Música, se utilizavam laços. Mas onde está o País da Música, se nos mapas não aparece? O velho afirmou que nunca estivera lá mas que, quando criança, ouvira dizer que fora invadido por pessoas que odiavam a música e que, talvez por isso, se teria apagado a sua memória pois nunca mais ouvira referir o nome do País da Música.
Ao ver que os meninos ficaram muito aflitos com a resposta, o velho perguntou-lhes porque tanto se interessavam eles por laços? Olharam um para o outro, como advertindo-se mutuamente que tinham de guardar o segredo, e responderam ao mesmo tempo, como se tivessem combinado: “É que gostaríamos de ter um laço”.
O velho percebeu que aquelas crianças tinham algo de especial e, talvez, fossem a esperança presente das coisas futuras. Perguntou então se, de verdade, queriam ir até ao País da Música para conseguirem o seu laço. Sim, responderam os dois com determinação. Mas o caminho não seria fácil e, para além de terem de se esquivar das armadilhas dos amusios, seriam submetidos às doze provas musicais.
Desde que os amusios tinham entrado lá e controlado o país, todos desconfiavam de todos e até duvidavam se o rei seria também colaboracionista ou mesmo um amusio infiltrado, pois ninguém o vira a assistir a concertos. Não admirava, pois, que os músicos insubmissos tivessem de criar um sistema de autodefesa clandestina para não serem eliminados. Todas as precauções eram poucas.
Os caminhos que levavam ao País da Música eram múltiplos e muito ramificados. Não importava a direção escolhida mas antes a vontade e empenho para chegar lá. O velho, que na realidade era um músico insubmisso e clandestino, disse-lhes que, para se orientarem, deviam fazer uma pergunta a cada duodécima pessoa que encontrassem pelo caminho –como se fossem as doze notas musicais– mas, ainda assim, as respostas podiam ser falsas ou mesmo não dar qualquer informação. Quando fizessem as perguntas às pessoas certas, estas só responderiam depois de os pôr à prova para se certificarem de que estavam dentro dos segredos da música e que, portanto, não eram amusios.
Conseguirão os nossos meninos superar as doze provas musicais? A Caixa dos Laços voltará a inspirar os músicos para neutralizar as musiquetas entontecedoras dos amusios?
Esta estória duma história musical fica por aqui, com a mente aberta à visão mágica do mundo. As crianças mais baixinhas, as que gostam de ajudar os heróis, podem ainda introduzir-se no conto musical ‘A Caixa dos Laços’ e superar as doze provas –doze adivinhas musicais– que lhes permitirão salvar o País da Música e ganhar o seu laço de músico.
O autor sabe, por experiência de vida, que o poder dos amusios é imenso e ‘A Caixa dos Laços’ pode ser a sua última obra mas aqui fica a memória, ligada à esperança presente dum futuro inspirado.
(Vila Praia de Âncora: 8-I-2010)
© 2010 by Rudesindo Soutelo
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