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Vítor Vaqueiro: «A distinção entre ‘galego’ e ‘português’ depende da posição em que se colocar quem observa»

Na Galiza de 2014, muitas pessoas ainda são discriminadas polo simples facto de pretenderem viver em galego. Porém, as pessoas que concebem o galego como algo inseparável do português, costumam sofrer uma dupla discriminação. Vítor Vaqueiro é uma destas pessoas; aliás, num gesto pouco frequente, atreveu-se a denunciá-lo publicamente. Publicou um alargado artigo em que, explica, foi discriminado num certame literário, o Victoriano Taibo, concurso que, paradoxalmente, recebe o nome de um dos precursores do reintegracionismo.

Vítor Vaqueiro atendeu amavelmente o convite do Portal Galego da Língua para se debruçar mais devagar sobre os pontos mais quentes da sua denúncia sobre uma situação «injusta», que, no entanto, é similar à de pessoas que levam décadas a sofrerem-na, gentes «imensamente brilhantes que vem muito limitada a sua carreira pessoal e profissional», salienta.

Segundo explicas no teu artigo para o Sermos Galiza, a tua obra, Palavras a Espartaco, foi considerada a de maior qualidade, mas no final não foi a ganhadora por se considerar que está redigida «em português». Isto, apesar de que nas bases do certame Victoriano Taibo só se especificava que as obras deviam estar redigidas em galego. Defendeu de alguma maneira o júri que a tua obra não estava em galego? Achas possível argumentar que algo é ‘português’ em lugar de ‘galego’?

Em realidade, eu não conheço as deliberações do júri, já que, segundo assinalo no próprio artigo, a notícia chega por uma via e numas circunstâncias excecionais, quase incríveis, porque o acaso existe e, como diria um conhecido matemático, John Allen Paulos, «é improvável não ocorrerem cousas improváveis». Quero dizer com isto que a pessoa que me informava mesmo desconhecia a minha participação no certame e nem sequer era integrante de dito júri. Acho, porém, que se julgou antes bem o texto pola sua aparência gráfica. Ora, estou totalmente certo de que nem todos os membros do júri pensam que o livro não está escrito em galego.

Quanto à segunda questão: não sei se é possível argumentar que algo é ‘português’ em lugar de ‘galego’. Sei, porém, uma cousa: que é impossível demonstrar que Palavras a Espartaco, o livro que concorre ao prémio, não é galego. A distinção entre ‘galego’ e ‘português’ depende da posição em que se colocar quem observa. Se considerarmos galego o que se fala na rua, então carretera, a leite, naranxo ou o ponte é galego. Às avessas, muitos textos publicados na norma ILG não são ‘galego’, porque a gente não diz prognóstico, nem árvore, nem luvas, nem hepatite, nem centos de vocábulos ou expressões que estão padronizados como galego.

Vítor Vaqueiro foi desqualificado num certame por apresentar uma obra redigida «em português»

É pouco frequente as pessoas decidirem fazer públicas este tipo de situações de discriminação; muitas vezes imperam a dor, quiçá uma certa vergonha, desconcerto… O que te motivou a alçares a voz?

Devo dizer que duvidei muito antes de publicar o artigo. Em primeiro lugar, porque dou munição a quem, a partir duma postura de defensa do padrão ILG-RAG, não entra no fundo da questão e adverte que o texto é simplesmente um desafogo da minha frustração por não ter ganhado. Por sorte, que eu saiba, ninguém utilizou este argumento —que qualificaria a quem o utilizar—, mas provavelmente haja quem o pensou. Em segundo, porque existem pessoas amigas que vão ser afetadas, cousa que, de verdade, me dói. Em terceiro, porque, se queira ou não, vemo-nos situados no olho do furacão e como tu bem dizes, aparece o desconcerto, a vergonha, enfim, sensações que não é fácil evitar. Embora estas considerações, achei que devia fazer pública uma situação que eu vejo injusta. Dito isto com grande humildade, já que há pessoas que levam décadas a sofrer esta situação, gentes imensamente brilhantes que vem muito limitada a sua carreira pessoal e profissional.

Polo que explicas, a tua obra foi censurada unicamente pola aparência, isto é, por empregar termos como coruja por curuxa ou carvalhal por carballal. Da mesma maneira, achas que seria banido um trabalho por usar o castelhanismo pulpo em lugar da voz correta polvo (ou ‘polbo‘) ou mesmo termos inventados?

Bom, é um feito sobejamente conhecido a atitude hostil relativamente a tudo o que supuser qualquer achegamento à Lusofonia por parte do ILG desde as suas origens. Num texto de há quarenta anos proclama-se, numa obra dirigida por Constantino Garcia e editada polo Instituto, o «antilusismo linguístico», dito literalmente, que anima a instituição e mesmo a sua vocação «separatista» [sic]. Essa hostilidade ao português é possível pesquisá-la nas próprias Normas de 1982, porque, como nos ensina Lacan, a verdade sempre emerge, ainda através das fendas mais estreitas. Se essas normas se olham com imparcialidad,e vê-se com clareza, na sua redação, o prejuízo a respeito do português e a tolerância com o espanhol. Pode-se olhar a insistência em sublinhar as diferenças entre galego e português, mas não entre galego e espanhol. O campo semântico que atinge o português vem temperado com termos que quase antropomorfizam a língua pejorativamente. Assim, o português qualifica-se como una língua insolidária, inconsequente, vacilante, incoerente, estruturalmente estranha e outros muitos qualificativos difíceis de entender se não se parte dum apriorismo. Repito que todos esses termos que che venho de comentar existem exatamente assim nas Normas, para além doutros que agora não lembro. Nada disto se pode detetar no caso do espanhol. É notável o labor de roça que se desenvolveu desde há quarenta anos no que diz respeito à Lusofonia comparado com a tolerância com tudo o que procedesse do castelhano. Existiam e existem duas formas de medir. Se tu escreves ‘rumo’, vás ter problema por seres ‘lusista’ mas se escreves pulpo sempre poderás dizer que é a forma que se usa na tua aldeia ou a maioritária da Galiza. Tenho uma longa experiência de as cousas serem assim. Os resultados dessa política estão, acho eu, às vistas: um processo do galego rumando para um dialeto do espanhol.

Até aqui a minha opinião, que pode ser parcial ou equivocada. Ora, no caso concreto de que falamos, e mediante umas declarações escritas, um membro do júri do prémio Victoriano Taibo afirma, com efeito, que Palavras a Espartaco foi «desqualificada». Eu não sei se Ramón Sandoval, autor dessas declarações, é consciente da transcendência das suas palavras que, do meu ponto de vista, têm um valor extraordinário, histórico, já que penso —corrige-me se me enganar— que é a primeira vez que sai à imprensa algo que todo o mundo sabia. Agora, ademais de conhecermos que falar galego implica não poder entrar a trabalhar em grandes empresas, também sabemos que escrever na grafia histórica do galego implica ser «desqualificado».

A sociedade avança porque existe a divisão,
a contradição e o confronto de ideias

Com esta interpretação das bases, nem sequer o próprio autor que dá nome ao certame, Victoriano Taibo, poderia participar…

Pois não, seria também desqualificado. A questão essencial é, ao meu ver, que se está a levar desde há quarenta anos um processo de ocultação, de mascaramento da verdade. O Hino muda-se, um autor é marginado, uma autora esquecida. E, contando com os meios de comunicação afins, que são a maioria, repetem-se, teimuda e incansavelmente várias ideias.

A primeira, que ‘galego e português são línguas diferentes’; num tempo foram a mesma, mais isso mudou. Neste sentido é muito interessante pesquisar na opinião de Ramom Pinheiro, que defende, durante toda a sua vida, a identidade radical das línguas e que começa a descrever uma mudança a partir dos anos 70 do século passado.

A segunda é postular que os lusistas querem que todo o mundo ‘fale’ português. Imagina-te que agora mesmo em Espanha começas a dizer em Castela-e-Leão que todo o mundo tem de falar como se fala em Andaluzia, ou em Canárias que cumpre falar como em Extremadura. A reação seria arrepiante. Não se menciona a questão da ‘escrita’, mas da ‘fala’. Por isso essa ideia penetrou, como penetrou a da ‘imposição do galego’; as duas, falsas.

Estas duas ideias vão dirigidas à imensa maioria da população. Mas fica ainda um setor importante: o que se define como galeguista, nacionalista, soberanista, independentista, etc., que possui, em geral, um grau de informação superior sobre questões da língua e que, portanto, sabe que toda uma linha de defensa da terra, da cultura e do idioma que começa no século XVIII defende a identidade fundamental entre ‘galego’ e ‘português’. Para este setor é preciso, portanto, elaborar um discurso específico que, por dizê-lo com Barthes, ‘fira’ a sua sensibilidade. Esse discurso alicerça na ideia de ‘patriotismo’. Segundo esta noção, quem não seguir o padrão oficial não é um patriota, porque tende a ‘dividir’ a sociedade. Compreenderás que esta argumentação é delirante, mais rende eficazes resultados, porque aquelas pessoas que defendem/defendemos, o país é mui difícil assumirem/assumirmos que laboramos em prol do inimigo. Olha a eficácia deste discurso que eu, que escrevi entre 1986 e 1992 no que se chamavam os ‘mínimos’, tardei quase trinta anos em tomar uma decisão.

Logicamente, a ideia da identidade entre galego e português ‘divide’ a sociedade, é certo. Também a dividem as questões do aborto, da soberania, da normalização linguística, do ambiente, das touradas ou do matrimonio homossexual, mas não por isso vamos ter de deixar de defender o direito da mulher a decidir sobre o seu corpo, a lutar pola soberania nacional, pola nossa língua, pola conservação do meio ambiente, contra o mau trato dos animais ou polos direitos de gays e lesbianas. Justamente, a sociedade avança porque existe a divisão, a contradição e o confronto de ideias.

Penso que o problema [normativo] é político
e, se desejarmos resolvê-lo, politicamente
será como se tem de enfrentar

Portanto, a interpretação das bases do certame não é apenas uma decisão técnica das pessoas responsáveis pola interpretação das bases, mas doutro teor…

Volto ao que venho de dizer sobre as palavras dum membro do júri. Existiam umas Bases do prémio que poderiam ser interpretadas de duas maneiras, já que não se especificava nada em volta da questão normativa. Essas duas maneiras poderiam nomear-se a posição Cameron ou a posição Rajoy. A primeira diz: posso impedir que este texto se tenha em conta, mas sou um democrata e não o vou fazer. A segunda afirma: vou entender que ‘galego’ é igual a ‘galego escrito na normativa vigente’ e, assim, impedirei que mesmo se chegue a discutir a sua qualidade.

As pessoas reintegracionistas costumam sofrer uma dupla discriminação
As pessoas reintegracionistas costumam sofrer uma dupla discriminação

Dito isto, devo dizer que conheço algumas pessoas das que formaram o júri e posso dizer que o seu comportamento, comprovado durante décadas, é duma insubornável defensa da língua, do país e da democracia, pessoas com atitude militante e ativa no que atinge os direitos nacionais e sociais da Galiza. Mas essas pessoas estão inseridas numa situação anormal, uma situação que eu definiria como de ausência de liberdade.

Direi, em primeiro lugar, que acho que não vivemos numa democracia. Vivemos, sim, num sistema de liberdades formais no qual os direitos ficam restritos ao voto e pouco mais. Fraga condecora um narco, Rajoy sobe a um barco dum narco, Feijoo aparece fotografado com um narco e nenhum deles é sequer investigado; enquanto sindicalistas como Serafin Rodríguez e Carlos Rivas são condenados com penas de cárcere por defenderem direitos elementares. Se isso é assim socialmente, por que ia ser distinto no que atinge à língua? O Partido Popular proclama sem vergonha que há que espanholizar o rural, enquanto no Carvalhinho o Concelho começa um projeto bilinguista espanhol-inglês. Na Galiza, em questões linguísticas, nem existe democracia, nem as leis estão para ser cumpridas. Lembremos as palavras do próprio Fraga Iribarne quando afirmava que a Lei de Normalização Linguística tinha só caráter indicativo. Que ia acontecer se alguém dizer que a Lei de Sucessões ou a Lei de Ajuizamento Civil têm apenas caráter indicativo?.

Esta situação de anormalidade linguística alarga-se no que se refere ao padrão. Eu continuo a acreditar no feito de que, para além de decisões pessoais que um pode ou não partilhar, que se pode ou não compreender, existe um problema político. Esse problema, no que ao padrão linguístico atinge, tem origem há mais de quarenta anos, como acabo de dizer, com a criação, no franquismo, duma instituição que se chama exatamente Instituto de la Lengua Gallega, nome que é imensamente sintomático e que só mudará oito anos mais tarde, se mal não lembro. Deve-se pensar que o ano anterior à fundação do ILG promulgara-se uma lei, a Lei Geral de Educação, conhecida como Lei Villar Palasí, que regulava o ensino do catalão, euskera e galego. Outorgar a essa instituição um nome em espanhol e pôr á sua frente uma pessoa que não tem nem uma soa publicação em galego, acho que é muito eloquente. Por isso penso que o problema é político e, se desejarmos resolvê-lo, politicamente será como se tem de enfrentar.

No alargado artigo que publicas no Sermos Galiza assinalas numerosos casos desta discriminação nos últimos 30 anos. Alguns são verdadeiramente surpreendentes, como o de uma revista trimestral que permite a publicação na sua ortografia original de pessoas lusófonas de países como Angola, mas não da Galiza.

Sim, a revista a que me refiro é Grial, que tomara a decisão há algum tempo de aceitar artigos e colaborações em português. Acolhendo-me a essa situação, eu enviara um artigo semelhante aos que vinha publicando desde havia vinte anos que tratavam em geral sobre história da Fotografia, estética fotográfica ou questões semelhantes. E, com efeito, a casa editorial responde-me dizendo que não se visa a hipótese de aceitarem em português autores ou autoras da Galiza. Para sermos estritos, portanto, o critério seguido dever ser ‘aceitar artigos escritos em português por pessoas não galegas’, o qual, sinceramente, penso que se trata duma clara discriminação por razões de nacionalidade.

O reintegracionismo está presente em cada vez mais espaços. No entanto, os certames literários que não discriminam por razão de normativa são ainda um número muito reduzido. A que se deve?

A todo o anteriormente comentado: marginalização da discrepância e controlo ferrenho por parte do ILG-RAG-Junta da Galiza para que ninguém possa expressar-se na maneira em que desejar.

Por último, como deve um autor ou autora reintegracionista enfrentar a hora de decidir participar num certame? Deve começar por contatar a organização e perguntar explicitamente se as pessoas reintegracionistas estão vetadas?

Bom, desejaria dizer antes de mais que eu decidira há uns 25 anos deixar de participar em certames, cousa que cumpri até este ano. Se concorri a este foi, em primeiro lugar, porque, por primeira vez depois de 35 anos, via-me sem editorial, tinha um texto de difícil publicação e as Bases do prémio mesmo garantiam a edição da obra ganhadora. Em segundo lugar, porque essas mesmas Bases não enunciavam, como ocorre na maioria dos prémios, nenhuma restrição normativa e achei que não se iam produzir critérios de exclusão e poderia ter alguma possibilidade de ver publicado o meu livro duma maneira quase automática. Se eu não decidisse há um ano e meio abandonar a norma ILG-RAG ou se o prémio Victoriano Taibo especificasse com claridade que só poderiam participar aquelas pessoas que seguissem o padrão ILG-RAG, neste momento não estaríamos a falar tu e mais eu.

Respondendo a tua pergunta: uma pessoa reintegracionista tem, do meu ponto de vista, que enviar o texto e aguardar a resoluçãp, se é as Bases do prémio não proibirem a participação de quem não siga o padrão atual. Se o proíbem, então deve escutar a sua consciência, que lhe indicará abster-se ou participar, concorrendo para dar conta, no próprio interior do júri, da existência duma discrepância.

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